As semanas que se seguiram à revelação de seu pai e à sua nova missão noturna de ler para os vaga-lumes estabeleceram um ritmo reconfortante para Elara. Os dias eram dedicados aos livros e à companhia silenciosa de seu pai; os crepúsculos e as noites eram para a comunhão mágica com seus mensageiros de luz. O mundo exterior, com seus olhares de soslaio e sussurros cruéis, parecia mantido à distância, uma nota dissonante em uma sinfonia harmoniosa. Mas o mundo exterior tem o hábito de ser insistente, e suas marés, mais cedo ou mais tarde, sempre encontram uma forma de chegar até as praias mais isoladas.
A maré, desta vez, veio na forma de um boato.
Começou como um murmúrio, uma história contada em voz baixa nas tavernas e ao redor do fogo do ferreiro. Elara a captou durante outra de suas incursões necessárias à vila. Desta vez, armada com uma nova camada de indiferença tecida a partir da segurança de seu propósito noturno, ela se moveu pela praça do mercado com menos hesitação. Foi enquanto esperava na fila do açougue que ela ouviu pela primeira vez as duas palavras que fariam sua imaginação disparar: Mecanismo Astral.
Dois velhos, com rostos que pareciam mapas de suas próprias vidas longas, conversavam em tons conspiratórios.
— Eles dizem que a viúva está pensando em vender o solar — disse um, limpando o cachimbo. — Toda a propriedade. Diz que os fantasmas do passado são companhia demais para ela.
— Não são os fantasmas que a preocupam, é o Barão — respondeu o outro, baixando a voz — É o tesouro dele. Ela tem medo de que alguém tente invadir o lugar para encontrá-lo.
— O Mecanismo Astral... — o primeiro homem suspirou a palavra como se fosse uma oração. — Ainda acredito que é apenas uma história de lareira. Uma lenda para assustar as crianças.
— Lenda? — o segundo zombou suavemente. — Meu avô trabalhou na construção da torre do observatório. Ele viu com os próprios olhos. O Barão Valerius não era um homem de lendas, era um homem de ciência... e de algo mais. Ele dizia que o Mecanismo não era feito apenas de latão e vidro. Dizia que continha um pedaço do próprio céu noturno. Que, se ajustado corretamente na noite certa, podia mostrar não apenas onde as estrelas estavam, mas para onde o destino de um homem estava indo.
O coração de Elara começou a bater mais rápido. Aquilo não era um mero boato. Era o início de um conto, uma história de seu povo se desenrolando bem ali, no meio do cheiro de serragem e carne crua. Ela se inclinou sutilmente, fingindo examinar um corte de carne, mas seus ouvidos estavam totalmente sintonizados na conversa.
— Um mapa do destino... — o primeiro homem meditou — Que poder terrível. Não me admira que o Barão tenha enlouquecido. Ninguém deveria ter tanto conhecimento.
— É por isso que está perdido — continuou o segundo — Quando o Barão morreu, o segredo de sua localização e de seu funcionamento morreu com ele. Trancado em algum lugar naquele solar decadente. Um relógio sem relojoeiro. Dizem que é a máquina mais complexa já construída nestas terras. Tão delicada que apenas as mãos mais firmes e a mente mais brilhante poderiam sequer sonhar em desvendá-la — Houve uma pausa, e então vieram as palavras que fizeram o chão desaparecer sob os pés de Elara. — Na verdade, há apenas um homem em toda a região que teria uma chance. Apenas um artesão com a habilidade para entender tais engrenagens...
— Silas — o primeiro homem completou, com um aceno de cabeça. — O pai daquela jovem. O relojoeiro.
Elara sentiu um choque percorrer seu corpo. Orgulho. Um orgulho feroz e avassalador que aqueceu seu peito e baniu qualquer resquício da vergonha que sentira naquele mesmo lugar semanas antes. De repente, seu pai não era o 'pobre Mestre Silas', o recluso trabalhador digno de falsa pena. Ele era a chave para uma lenda. Suas mãos, que ela via todos os dias manuseando pequenas peças com paciência infinita, eram as mesmas mãos que as pessoas acreditavam ser capazes de desvendar o destino.
Ela pegou sua encomenda, pagou e saiu da fila, a mente girando mais rápido que qualquer mecanismo de relógio. O Barão Valerius. Ela conhecia a história, ou pelo menos as versões contadas às crianças. Um nobre excêntrico do século anterior, obcecado com astronomia e alquimia. Morava no grande solar no topo da colina com vista para a vila, um lugar que agora estava caindo em desuso, habitado apenas por sua neta distante, uma viúva idosa e reclusa. A lenda do Barão era uma das favoritas em seu exemplar de Contos do Povo da Meia-Noite, mas o livro falava apenas de sua loucura, de como ele tentou construir uma escada para a lua e acabou se perdendo nas próprias ilusões. Não mencionava nenhum 'Mecanismo Astral'.
O caminho de volta para casa foi uma jornada através de paisagens recém-descobertas. Cada sombra entre as árvores parecia esconder um segredo. A velha torre do solar do Barão, visível à distância, não era mais apenas uma ruína pitoresca; era o covil de um mistério. Sua mente, um terreno fértil para histórias, começou a cultivar as sementes do boato. O que seria o Mecanismo? Uma esfera armilar de complexidade impossível? Um astrolábio que media o tempo e a alma? Um autômato movido pela energia das estrelas? As possibilidades eram tão vastas e vertiginosas quanto o céu noturno.
Ela chegou em casa com a respiração curta, a cesta de compras quase esquecida em sua mão. Seu pai estava em sua oficina, como sempre. A luz de um candeeiro a óleo projetava sua sombra concentrada na parede. O som suave de uma lima em metal era a única música no ar.
Elara parou na porta, observando-o. Ela olhou para suas mãos. As mesmas mãos que a seguraram quando criança, que consertaram seus brinquedos quebrados, que viraram as páginas das histórias que ele lia para ela. Eram também as mãos que, segundo a lenda, poderiam decifrar o destino.
— Pai? — disse ela, a voz um pouco mais alta do que pretendia.
Silas ergueu a cabeça, a lupa ainda presa ao olho, o que o fazia parecer um ciclope gentil.
— Elara. Já de volta? Conseguiu tudo?
— Sim, tudo. — Ela entrou na oficina, o cheiro de óleo e metal envolvendo-a. — Pai... ouvi uma coisa na vila. Uma história.
Ele pousou a ferramenta e removeu a lupa, dando-lhe toda a sua atenção.
— Histórias da vila, é? Geralmente são mais ficção do que fato. O que os bardos do mercado andam cantando hoje?
— Eles falavam do Barão Valerius — começou ela, tentando manter a voz calma. — E sobre um tesouro dele. Algo chamado... Mecanismo Astral.
Ao dizer o nome, ela observou o rosto de seu pai em busca de qualquer sinal de reconhecimento. Havia um brilho em seus olhos, mas era o brilho da curiosidade, não da memória. Ele franziu a testa ligeiramente.
— O Mecanismo Astral... — repetiu ele, testando o peso das palavras. — É um nome grandioso. Soa como algo saído de um de seus livros de fantasia. O que seria esse mecanismo?
— Dizem que ele pode mapear o destino. Que mostra o caminho das estrelas e das vidas das pessoas. Dizem que é a máquina mais complexa já feita por aqui. — Ela fez uma pausa, reunindo coragem para a parte mais importante. — E eles dizem... que o senhor é o único artesão na região com habilidade para entendê-lo.
Um sorriso lento se espalhou pelo rosto de Silas. Não era um sorriso de arrogância, mas de diversão e uma pitada de lisonja. Ele se recostou na cadeira, cruzando os braços.
— Então, o velho relojoeiro virou uma figura de lenda, é isso? Daqui a pouco dirão que eu posso consertar o tempo ou dar corda no sol. — Ele balançou a cabeça. — Elara, querida, eu sou um homem de engrenagens, não de encantamentos. Conserto o que está quebrado, meço as horas e os minutos. O destino e a magia... são matérias muito acima da minha classe salarial.
O coração de Elara afundou um pouco. Era apenas uma história, então.
— Então, o senhor nunca ouviu falar dele? Não é real?
— Eu não disse que não é real — corrigiu ele, o tom mudando de divertido para pensativo. — Já ouvi sussurros sobre o Barão e suas invenções, claro. Ele era um cliente do meu avô. Encomendava peças estranhas, engrenagens com um número ímpar de dentes, cristais lapidados em ângulos que desafiavam a lógica. Meu avô dizia que ele não estava construindo máquinas para o nosso mundo, mas para um outro. — Ele olhou para um ponto distante, perdido em pensamento. — Quanto a um mecanismo que lê o destino... isso eu não sei. Não lido com esse tipo de coisas que envolvem magia.
Ele se inclinou para a frente, e o brilho nos seus olhos se intensificou, mas agora era o brilho do artesão, do solucionador de problemas.
— Mas...— disse ele, e essa única palavra suspendeu todo o ar na sala. — Se tal artefato existisse... A complexidade dele... Imaginar as engrenagens, o sistema de escape, a fonte de energia... Seria o maior quebra-cabeça que um homem como eu poderia sonhar em resolver. Não pela magia, entende? Mas pela arte. Pela mecânica.
Ele olhou para Elara, e ela viu nele o mesmo fogo que sentia quando abria um livro novo e desconhecido. A sede de descobrir, de entender, de ver como as partes se encaixam para formar um todo.
— Se surgisse a oportunidade de vê-lo, de estudá-lo... — continuou ele, mais para si mesmo do que para ela — É claro que eu não a desperdiçaria — Ele sorriu para ela, um sorriso genuíno e cheio de vida. — Nunca fez mal a alguém buscar mais conhecimento, seja ele encontrado nas páginas de um livro ou nas entranhas de uma máquina misteriosa. O conhecimento é luz, não importa a fonte.
Elara sentiu uma onda de alegria. Ele não havia descartado a história. Ele a havia abraçado, mas em seus próprios termos. Ele havia traduzido a magia da lenda para a linguagem de sua própria paixão.
Naquela noite, enquanto lia para os vaga-lumes no jardim, a história que ela escolheu não foi de Botânica dos Sonhos, mas um conto de O Atlas dos Mundos Perdidos sobre uma cidade celestial construída com engrenagens de prata e pontes de luz estelar. Enquanto sua voz flutuava na escuridão, ela olhava para a torre distante do solar do Barão.
A lenda havia construído uma ponte. Uma ponte entre a vila e sua casa, entre o passado e o presente, entre a magia que ela tanto amava e a mecânica que seu pai dominava. O Mecanismo Astral podia ou não ser real, podia ou não ler o destino. Mas já havia realizado um pequeno milagre: havia dado a pai e filha uma nova história para compartilharem, um mistério para sonharem juntos. E na casa de Silas e Elara, as histórias eram a forma mais poderosa de magia que existia.
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Atualizado até capítulo 49
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