A revelação de seu pai havia mudado a arquitetura da casa. As estantes de livros, antes vistas como fortalezas de conhecimento e refúgios de imaginação, agora pareciam monumentos. Cada lombada era uma lápide para um dia de esperança, cada volume um tijolo no mausoléu de amor e desespero que seu pai havia construído para sua mãe. O ar, antes perfumado apenas com o cheiro de papel e poeira, parecia agora carregado com o peso de uma dor antiga e silenciosa. Elara sentia-se a guardiã não de uma biblioteca, mas de um coração.
Naquela noite, a quietude da casa era diferente. Não era a paz habitual, mas um silêncio denso, preenchido por palavras não ditas e por uma compreensão que a havia envelhecido em poucas horas. Ela tentou ler, pegando um dos novos contos resgatados da pira, mas as palavras flutuavam na página, incapazes de formar a ponte para outro mundo. Seu próprio mundo havia se tornado vasto e complicado demais. As engrenagens de sua mente giravam em falso, presas na história que seu pai lhe contara.
Inquieta, sentindo as paredes de livros se fecharem sobre ela, Elara soube onde precisava estar. Deixou o livro de lado e caminhou descalça até a porta dos fundos, que se abria para o jardim. O ar noturno a envolveu como um xale de seda fresca, um alívio instantâneo para a atmosfera carregada da casa. A lua cheia, pendurada no céu de veludo como um medalhão de prata, banhava o jardim em uma luz pálida e fantasmagórica, tornando as cores do dia em tons de cinza e prata. O perfume da dama-da-noite era intenso, uma fragrância doce e inebriante que parecia ser a própria respiração da escuridão.
E lá estavam eles. Seus verdadeiros confidentes. Os vaga-lumes.
Naquela noite, pareciam mais numerosos do que nunca, suas luzes esverdeadas pulsando em uma sinfonia silenciosa. Não era a dança frenética do início do verão; era um balé mais lento, mais deliberado, como se o peso do final da estação já estivesse em suas pequenas asas.
Elara caminhou até o centro do gramado, a grama úmida de orvalho fazendo cócegas em seus pés. Sentou-se, abraçando os joelhos, e esperou. Ela não os chamava com a voz. Chamava-os com o coração, com a quietude de sua alma, um truque que sua mãe lhe ensinara. Concentrou-se na saudade, na confusão, no amor avassalador que sentia por seus pais, e deixou que esses sentimentos irradiassem dela como calor.
Aos poucos, a dança deles mudou. Alguns vaga-lumes se destacaram do padrão geral e se aproximaram, circulando-a em órbitas lentas e curiosas. Eles eram sua audiência, seu conselho de anciãos luminosos. E, como fazia desde que se entendia por gente, ela começou a conversar.
— Ele me contou — sussurrou ela para a noite, sua voz pouco mais que um sopro — Ele me contou por que há tantos livros. Não era por ele. Nem por mim. Era por ela.
Um vaga-lume pousou em seu joelho, sua luz piscando suavemente. Acende. Apaga. Uma vírgula luminosa em sua confissão.
— Eu sempre pensei que os livros eram a nossa magia. Mas eles eram a arma dele. Uma arma contra o silêncio. Contra o fim. E não funcionou.
A verdade daquelas palavras a feriu. Ela havia passado a vida inteira acreditando no poder absoluto das histórias para salvar, para consertar, para transportar. Mas a história mais importante, a de sua própria família, tivera um final que nenhuma narrativa pôde impedir.
— Tenho medo — admitiu ela, a voz embargada.
Era um medo que ela nunca havia confessado a ninguém, nem mesmo a si mesma.
— Tenho medo de esquecê-la de vez. O rosto dela... já é como fumaça na minha mente. Lembro-me do cabelo dela sob a luz do sol, mas não do formato de seus olhos. Lembro-me do som de sua risada, mas não do contorno de seus lábios quando ela sorria. — Ela apertou os olhos, tentando forçar a imagem a aparecer, mas apenas fragmentos vieram — Vocês são tudo o que me resta dela. Esta conversa. Se vocês forem embora, se a luz de vocês se apagar... o que vai sobrar?
As luzes dos vaga-lumes ao seu redor pareceram vacilar, piscando de forma errática, desordenada. Para Elara, aquilo era a manifestação de sua própria ansiedade, um reflexo de seu coração em pânico. Eles entendiam seu medo. Eles o sentiam.
— E eu tenho medo por ele — continuou ela, pensando em seu pai. — Ele é como um de seus relógios, funcionando perfeitamente por fora, mas por dentro... acho que a mola principal dele quebrou há muito tempo. Ele continua funcionando por mim. Mas quando a noite chega, e ele pensa que estou dormindo, eu o ouço andando pela biblioteca. Apenas andando, em silêncio. Tocando as lombadas dos livros. Eu acho... acho que ele ainda está lendo para ela.
A confissão pairou no ar, pesada e iridescente como as asas de uma libélula. Os vaga-lumes ao seu redor se acalmaram. Suas luzes começaram a pulsar juntas, em um ritmo lento, forte e constante. Um batimento cardíaco coletivo de luz. Para Elara, era conforto. Era uma mensagem: Nós sabemos. Nós entendemos. Estamos aqui.
Encorajada, ela passou a compartilhar seus sonhos.
— Eu sonho em ver os lugares do Atlas. As Montanhas Sussurrantes, o Mar de Tinta... quero saber se o ar lá é diferente. — Ela riu um pouco, um som frágil na noite — Sonho em encontrar um livro que ela escondeu, um diário talvez, com todas as suas histórias. Todas as respostas.
Ela olhou para o céu, para a lua.
— Mas, principalmente, eu só sonho em me lembrar dela com mais clareza. Só mais um dia. Uma hora. Para perguntar a ela... sobre vocês. Para saber se a magia era real, ou apenas uma história bonita para uma menina assustada.
Em resposta, os vaga-lumes se ergueram em uma espiral ascendente, um redemoinho de luz que subiu em direção ao céu, como se estivessem levando seus sonhos para as estrelas. Elara observou, com o coração apertado de assombro e amor. Aquela era a sua linguagem. Uma caligrafia de luz contra a lousa da noite. Um código morse da alma. Cada padrão, cada pulso, era uma resposta. Não com palavras, mas com sentimento, com luz, com presença. Era a felicidade de sua mãe, filtrada através do tempo e da natureza, respondendo a ela.
Enquanto observava o último brilho da espiral se dissipar, a revelação de seu pai e sua própria tradição noturna colidiram em sua mente, criando uma centelha de uma ideia. Uma ideia tão simples e tão poderosa que a deixou sem fôlego.
Seu pai usava histórias para tentar manter sua mãe ancorada a este mundo.
Ela usava os vaga-lumes para manter a memória de sua mãe ancorada a ela.
Os vaga-lumes eram os mensageiros de sua mãe.
O silogismo se completou em sua mente com a força de um relâmpago silencioso. E se... e se ela usasse a arma de seu pai para proteger os mensageiros de sua mãe?
A lógica era a de um conto de fadas, mas em seu mundo, era perfeitamente sã. Os vaga-lumes eram criaturas do verão e da primavera. Com a chegada do outono, eles desapareceriam. O frio e a escuridão levariam embora suas luzes, e com eles, a presença tangível de sua mãe. O jardim ficaria silencioso e vazio. A conversa terminaria até o ano seguinte. Essa perspectiva, este ano, parecia mais insuportável do que nunca.
— Se as histórias eram para mantê-la acordada... — sussurrou Elara para si mesma, levantando-se. — Talvez... talvez elas possam manter vocês aqui.
Uma nova determinação a preencheu, substituindo o medo e a confusão. Ela tinha um plano. Tinha uma missão. Não mais seria uma participante passiva, esperando que a magia viesse até ela. Ela a nutriria. Ela a sustentaria.
Com passos rápidos, ela voltou para dentro de casa. A biblioteca não parecia mais assustadora. Parecia um arsenal à sua disposição. Seus olhos varreram as prateleiras, passando por cima de aventuras e mistérios. Ela precisava do livro certo. Sua mão, como se guiada por uma força invisível, foi direto para a pequena cópia de capa azul de Botânica dos Sonhos. O livro de sua mãe. O livro com a alma dela em suas margens.
Com o tomo precioso em mãos, ela retornou ao jardim. Os vaga-lumes ainda estavam lá, pairando no ar como se esperassem por ela. Ela se sentou novamente no mesmo lugar, a luz da lua iluminando as páginas amareladas.
Sua voz, no início, era um sussurro hesitante, trêmulo pela magnitude do que estava tentando fazer.
— Eu... eu gostaria de ler para vocês — disse ela ao seu público cintilante — É um livro que ela amava.
Ela abriu em uma página aleatória e começou a ler.
— A Salgueira-das-Almas não possui folhas, mas sim finíssimos filamentos de prata que captam a luz da lua. Diz a lenda que cada filamento está conectado a uma memória feliz flutuando no mundo. Ao tocar em um, pode-se sentir o eco de um riso distante, o calor de um abraço há muito perdido...
À medida que lia, sua voz se tornava mais firme, mais clara, preenchida com a melodia da prosa e com a convicção de seu propósito. Ela não estava apenas lendo palavras; estava oferecendo-as. Uma oferenda de tinta e papel para criaturas de luz e ar.
E a magia aconteceu.
Os vaga-lumes, que antes mantinham uma distância respeitosa, começaram a se aproximar. Eles desceram de suas altitudes, formando um círculo apertado ao seu redor. Alguns pousaram no livro aberto, suas pequenas lanternas iluminando as palavras que ela lia, como se a ajudassem. Outros pousaram em seus ombros e em seu cabelo, transformando-a em uma constelação viva. Suas luzes, antes um ritmo constante, agora pareciam pulsar em sincronia com a cadência de sua leitura. Quando ela fazia uma pausa para respirar, as luzes diminuíam coletivamente. Quando sua voz se enchia de emoção, elas brilhavam com mais intensidade.
Ela continuou lendo, página após página, a história de plantas mágicas se entrelaçando com a sua própria. Leu sobre a Raiz-Sussurrante e pensou nas canções de sua mãe. Leu sobre a Flor-Lanterna e pensou na anotação dela sobre encontrar a luz na escuridão. Era um feitiço. Era uma oração. Era uma promessa.
Não sabia por quanto tempo ficou ali, com a voz tecendo histórias no tear da noite. Mas quando finalmente parou, exausta, a lua já havia se movido consideravelmente no céu. Os vaga-lumes ainda estavam com ela, um cobertor de estrelas silenciosas e vigilantes. Eles não haviam ido embora.
Uma nova esperança floresceu em seu peito, forte e resiliente. O outono podia vir, com seus ventos frios. O inverno podia chegar, com sua geada e seu silêncio de neve. Mas ela estaria lá, noite após noite, com um livro nas mãos e uma história em seus lábios. Ela os alimentaria com contos, os aqueceria com aventuras, os protegeria com poesia. Assim como seu pai tentou ancorar uma alma à vida com histórias, ela ancoraria o verão ao seu jardim. Ela não deixaria a luz se apagar.
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Atualizado até capítulo 49
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