Sombras da Coroa

Sombras da Coroa

capitulo 1

Capítulo 1 — O Falcão

Narrado por Dante

A noite no Morro da Coroa nunca é silenciosa. É só o tipo de silêncio que engana. O poste apaga e reacende, o cachorro rosna sem ver, a garoa fina disfarça o cheiro de ferro do sangue antigo no asfalto. Aqui nada dorme. Aqui tudo vigia.

E no meio disso, eu.

Dante.

O Falcão.

Tenho trinta e dois. Fui forjado na fome, no ferro, na morte. Aprendi cedo que sentimento é vício caro — e eu não gasto. Não lembro a última vez que tive medo. Culpa? Essa eu nunca tive. Eu não sou o eco do morro, sou a voz que manda. Onde eu piso, o poder queima.

Boné baixo. Olhos frios. Tatuagem até o punho, cicatriz cruzando o rosto como assinatura. E uma regra que ninguém esquece: quem me trai, morre mal.

 

O pátio de concreto atrás do galpão é meu tribunal. Dois carros de farol aceso formando meia-lua. André ao meu lado, sombra inseparável. Tuca de guarda na entrada, fuzil encostado como se fosse extensão do braço. Pingo dissolvido no escuro, olhos sempre atentos. Duda em cima do contêiner, tablet na mão, fone no ouvido — a tecnologia é dela, o corte é meu.

No centro, de joelhos, está Ramos. Rato de dentro. Informante barato. O tipo que vende o morro por uns trocados e acha que vai viver pra gastar. Foi pego cuspindo segredo pro inimigo. Eu não perdoo rato.

As mãos dele estão presas atrás, plásticos mordendo a pele. O rosto suado, manchado de poeira. Tenta parecer forte, mas os olhos tremem. Quem vive da mentira nunca segura o olhar.

Eu me aproximo devagar. Bota riscando o chão. Faca descansando na bainha. O ar fica mais pesado porque todo mundo sabe: hoje é aula.

— Quem te pagou? — pergunto baixo.

— Ninguém… eu só… — ele tenta.

Estalo a língua. — Primeira mentira.

Faço sinal. Tuca traz a cadeira de metal e bate no chão com estrondo. O som ecoa no beco como sentença. Colocam Ramos sentado. Amarram tornozelos e peito. O pátio fica em silêncio — silêncio grosso, de respeito.

 

Começo simples. Pego o alicate. Uma ferramenta banal. A diferença é a mão que segura.

Seguro a mão dele. Puxo o dedo médio.

— Sabe o que eu gosto? — falo baixo, quase íntimo. — De começar devagar. Dor pequena. Dor que a mente acha que aguenta.

Aperto. A unha dele estala, racha, o sangue brota. Ele range os dentes, segura o grito.

— Respeito. — digo, e puxo o dedo inteiro pra trás até o estalo do osso encher o ar.

Ele grita. O eco bate nas paredes.

— Isso é só aquecimento, Ramos. — murmuro. — A verdadeira dor vem quando você entende que não vai morrer rápido.

Pego o segundo dedo. Faço o mesmo. O grito sai mais rouco. Ele tenta falar, engasga.

— Fala, então. Quem te pagou?

— Foi… foi… a facção do Galo… eles disseram que… que iam me proteger…

— Proteger? — rio curto. — Eles mal conseguem se proteger de mim.

Pego a faca. Encosto a ponta na bochecha dele. Corto devagar. Um risco fino, longo, sem pressa. O sangue escorre quente. O olhar dele se desespera.

— Eu te avisei: aqui não tem segunda chance. — digo no ouvido. — Traição não prescreve.

 

Agora a água. Pingo traz o balde. Eu cubro o rosto dele com um saco. Derramo devagar. O corpo dele se debate, pulmões gritando. Eu espero no limite. Tiro o saco. Ele puxa ar com desespero.

— Endereço. — exijo.

— Avenida Celso… sala 5… — ele tosse. — Quarta… duas da manhã…

— Quem mais sabia?

— Só eu… e… e o Galo…

Minto que acredito. Mas já basta.

 

Hora da execução.

Tiro a faca. Segura, longa, aço limpo. Olho pro meu povo: André, Tuca, Pingo, Duda. Todos firmes. O recado precisa ser claro.

Seguro a cabeça de Ramos pela nuca, puxo pra trás. O pescoço exposto. A lâmina encosta. Eu falo baixo, só pra ele ouvir:

— Você é a lição. O morro aprende pelo teu corpo.

E corto fundo. A lâmina abre a carótida como se fosse papel. O sangue jorra em arco, respinga no chão, na cadeira, no meu braço. Ele estremece, tenta respirar, mas só borbulha. Segura dois segundos, três, quatro. Depois cede. O corpo apaga. O olho fica parado, vazio.

Eu solto. O corpo tomba pro lado, o sangue se espalha pelo concreto, formando um rio escuro.

Pego a cabeça dele pelos cabelos, ergo pro alto. Mostro pro pátio.

— Este é o preço da traição. — digo firme. — Quem vende o morro, compra a própria cova.

Jogo a cabeça no chão. O som seco ecoa. O recado está dado.

 

André me olha e não precisa falar. Ele entende: ponto final.

Tuca cobre a área. Pingo arrasta o corpo. Duda já marca no mapa a rota pra descartar sem deixar rastro. Tudo no lugar.

Eu limpo a faca na camisa ensanguentada de Ramos. Guardo na bainha.

— Hoje o morro aprendeu. — digo. — Amanhã a cidade aprende.

 

O celular vibra. Número internacional: +39. Itália.

Atendo. Não falo nada.

— Dante. — a voz vem firme, pesada. — Aqui é Lorenzo Vitale.

— Fala.

— Tenho um pedido. Uma dívida. Minha filha, Alessia. Quero ela sob sua proteção. Intocável. Respira por ela, se for preciso.

Eu sorrio curto. O sangue ainda fresco escorre pelo concreto. Ramos mal esfriou, e já querem me dar outro jogo.

Olho pro chão do pátio, ainda molhado de sangue fresco. O corpo de Ramos nem esfriou. O ferro da lâmina ainda cheira a morte. Eu sorrio curto.

— E se eu não quiser? — devolvo, voz baixa, firme, sem pressa.

O silêncio do outro lado da linha não é vazio; é cálculo. Consigo quase ouvir ele mordendo os próprios dentes.

— Dante… — ele solta, arrastado. — Você me deve.

— Eu não devo nada pra ninguém. — respondo. — Quem pisa no meu morro paga. Quem respira aqui respira porque eu deixo. Se você acha que vai me dar ordem, vai aprender rápido a diferença entre pedido e sentença.

Ele tenta manter o tom, mas a raiva vaza:

— Cuidado, Falcão. Você pode reinar no seu morro, mas fora daí…

— Fora daqui não existe pra mim. — corto seco. — Eu não saio, eu invado. E quando invado, não peço licença.

Respiro fundo, olho pra André, que me observa de canto, como sempre. Volto pra chamada:

— Se eu aceitar proteger tua filha, não vai ser por você. Vai ser por mim. Porque eu decidi. E, se for assim, ela não vai ser intocável porque você pediu. Vai ser intocável porque eu marquei ela como parte do meu jogo.

O velho respira fundo do outro lado. Eu quase sinto o peso do orgulho engolido.

— Então decida logo. — ele solta, frio. — Porque Alessia já está a caminho.

O velho inspira fundo do outro lado da linha. A voz vem firme, mas eu reconheço o cheiro da pressão quando ela transborda até pelo telefone.

— Eu não tenho muito tempo, Dante. — ele diz, arrastando o sotaque. — Estão tentando me matar. Cercaram por todos os lados. A Alessia… — a pausa é curta, quase engasga. — Ela é a minha herdeira. Se ela ficar aqui, vai ser morta junto comigo.

Fico em silêncio. O sangue ainda escorre devagar pelo concreto aos meus pés, o corpo de Ramos sendo arrastado por Pingo pro saco preto. O morro me devolve aquele murmúrio de sempre: ninguém é intocável.

— Então você quer me jogar no teu jogo de sucessão, Lorenzo. — digo calmo, voz baixa, cada palavra pesando como chumbo. — Sua filha no meu morro, cercada de inimigos que nem eu ainda nomeei. Quer mesmo isso?

— Não tenho escolha. — ele responde, firme, mas eu sinto a navalha da aflição raspando na garganta dele. — Ela carrega o sangue dos Vitale. Se morrer, meu império apaga junto.

Acendo um cigarro, trago devagar. Solto a fumaça pro vento noturno, que leva o cheiro de pólvora e ferro junto.

— Escuta, italiano. — digo, sem pressa. — Se a tua filha entrar no meu território, ela deixa de ser tua herdeira e vira minha responsabilidade. Isso significa que quem encostar nela, encosta em mim. Só que tem uma diferença: eu não negocio. Eu executo.

O silêncio dele dura um segundo, dois. Depois, vem o suspiro de quem sabe que já fez a aposta errada, mas não tem outro baralho.

— É exatamente por isso que liguei pra você. — ele solta, baixo, quase resignado. — Porque sei que você é o único que não falha.

Olho pro céu nublado. A garoa engrossa. Alessia Vitale. Herdeira de um império estrangeiro que já sangra. Mais um nome, mais uma peça no meu tabuleiro.

— Então que venha. — digo firme. — Mas entenda bem, Lorenzo: a partir do momento que ela pisar no Morro da Coroa, a vida dela não é mais tua dívida. É a minha lei.

A linha cai. Só fica o zumbido seco.

Eu puxo o cigarro de novo, encaro André, que me observa calado.

— O jogo ficou maior. — digo. — Agora não é só o morro. É sangue italiano misturado ao nosso.

André apenas assente. Não precisa dizer nada. Ele sabe: quando o Falcão abre as asas, é pra caçar até o fim.

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Comments

Rejane Tainan Santos Correa

Rejane Tainan Santos Correa

vc atualizou bem no dia que fiquei mais velha 🤣🤣 tomara que logo tenha atualizações 🙈

2025-08-30

0

Dilvana Camargo

Dilvana Camargo

top,top,top,minha Diva arrasando em TDS já amei

2025-09-12

0

Simone Freitas

Simone Freitas

Já começa com uma pegada intensa emmm

2025-09-09

0

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