— A Morte de Lorenzo Vitale e a Traição
Narrado por Alessia Vitale
Sou Alessia Vitale, 28. Cresci entre omertà e pólvora, e aprendi cedo que respeito não se pede — se impõe. Cabelos pretos como corredor sem luz, olhos castanhos que não tremem. Cicatrizes discretas onde a vida tentou me ensinar humildade; eu retribuí com estratégia. Meu pai me educou com um mantra simples: quem controla o tempo controla o mundo. Quando eu chego, mudo o compasso. E quando eu mudo o compasso, quem não dança cai.
Não sou princesa de quadro. Sou herdeira de aço.
Meu pai era Lorenzo Vitale — uma lenda entalhada à bala. Mestre em apertar mãos que cheiram a pólvora e perfumar o crime com ordem. Ele me criou longe do açúcar e perto do barulho. Aos dezoito, eu já rodava caporegimes, sentava em reunião de acerto e tirava gente da mesa com um levantar de sobrancelha. Não porque eu era a filha do chefe, mas porque eu sabia fazer o relógio andar.
Nada me treinou para a noite passada.
Meu pai foi morto. Não por um tiro honesto. Por veneno: crime de quem tem medo de olhar no olho. Não veio de fora. Veio de dentro — mão que brindou à nossa saúde, boca que disse “famiglia” com devoção de teatro. O veneno caminhou nele por semanas, mansinho como serpente bem-educada, até morder onde doía.
Na véspera, Lorenzo me chamou. O quarto respirava remédio e conhaque; a luz do abajur parecia segurar a casa de pé por vontade própria. Ele estava pálido, mas inteiro. Olhou pra mim e não vi derrota; vi cálculo.
— Alessia, — ele disse — Pacto de Ferro. Procura Dante “O Falcão” no Morro da Coroa. Ele protege o que decide proteger. E quando decide, vira lei.
Dante. O nome entrou em mim feito lâmina fria. O homem do morro, rei sem coroa de ouro, mas com trono de medo. Meu pai me entregou o anel dos Vitale e um envelope selado. Não pediu — determinou. Eu obedeci. La famiglia é verbo.
Na manhã seguinte, Lorenzo Vitale morreu. E o palácio ficou cheio de gente querendo segurar vela no velório e colher dinheiro no cofre. Eu conheço o cheiro da falsa devoção — tem nota grande misturada.
Quem veio “me levar pra um lugar seguro” foram dois homens que sempre estiveram por perto: Matteo Santoro e Ruggiero Santoro — primos, homens de mão, caras que seguraram guarda-chuva em dia de chuva e atiraram quando o sol pediu sombra. Matteo fala pouco e mira bem. Ruggiero fala demais e mira em quem paga. Os dois apareceram com carro preto, vidro fumê, promessa pronta.
Eu entrei. Sentei atrás, ao centro. Mão direita no colo, esquerda no casaco. Se tem algo que aprendi, é isso: quem senta atrás no centro manda — e quem manda sai viva.
A cidade correu pelos vidros como um filme barato. O silêncio dentro do carro era errado: silêncio de quem pensa alto. Matteo dirigia como quem evita câmeras; Ruggiero olhava pelo retrovisor como quem procura autorização num fantasma.
— Signorina, — Ruggiero disse, voz macia — a casa não é mais segura. Vamos pra residência do campo. O consigliere já—
— O consigliere vai me ligar, não você. — cortei. — E quando ligar, eu desligo primeiro.
Matteo pigarreou. A mão dele desceu dois centímetros sobre a perna, buscando conforto onde mora a arma. Ruggiero sorriu curto. Aquele sorriso, com canto de boca que sobe só um lado — quem sabe ler, entende: sentença assinada.
Meu pai morreu de veneno. Eles queriam que eu morresse de “acidente”.
A estrada estreitou, o bairro mudou de cara, e o GPS mental que Lorenzo me obrigou a decorar gritava dentro de mim: rota de descarte. As placas ficaram raras, os postes, mais baixos, a polícia, menos interessada. Quanto mais vazio, mais seguro… pra quem puxa gatilho.
Vi o movimento no reflexo: o ombro de Ruggiero tensionou, a mão desceu pro coldre na cintura, Matteo respirou mais curto. Eu baixei as pálpebras um milímetro — o suficiente pra ninguém perceber que meus olhos ampliaram o mundo.
— Alessia, — Matteo começou, sem me olhar — precisamos confiar um no outro.
— Confiar? — sorri, sem humor. — Eu confio em duas coisas: na gravidade e na conta bancária.
Ele entendeu. Ou achou que entendeu. Aí veio a parte em que os idiotas acreditam no próprio roteiro: Ruggiero virou meio corpo, arma já saindo do coldre, o cano buscando o meu peito como quem encosta copo na mesa. Matteo falou “mi dispiace” como quem pede desculpa por derrubar vinho caro.
Eu estava pronta antes deles nascerem.
Minha mão esquerda segurava o casaco. A direita já estava na Beretta curta que eu escondo onde ninguém ousa pedir revista. Puxei, dois passos mentais à frente: primeiro braço, depois motor.
Atirei no punho de Ruggiero — o disparo quebrou o gesto dele no meio, a arma voou girando como passarinho com asa quebrada. Gritei nada, mandei bala no ombro pra travar o tronco. O carro puxou de lado quando Matteo sacou que a coisa desandou; ele puxou o volante, eu puxei a verdade.
E a verdade é que eu não morro no carro de ninguém.
Joguei meu peso pro lado, chutei o banco da frente pra deslocar o cotovelo de Matteo, a Beretta veio de novo, dois tiros no painel — nada de filme: queria apagar o carro antes que eles apagassem a minha família da história. O motor tossiu, a direção endureceu, o cheiro de gasolina acordou.
Ruggiero, ensanguentado, ainda tentou pegar a arma do assoalho. Eu prendi o braço dele com meu salto, empurrei pra baixo, e sussurrei no ouvido:
— Famiglia não é cadeira vazia, Ruggiero. É maré. Quem tenta desviar, afoga.
Ele xingou, cuspindo sangue. Eu ri, sem dente.
Matteo, desesperado, puxou o freio de mão tarde demais. O carro beijou o muro de concreto com a delicadeza de um aríete. O cinto me cortou o osso do peito; agradeci por estar viva em voz que só eu ouvi. O airbag explodiu, a poeira branca virou neblina em câmera lenta. Eu não espero poeira assentar: sou a poeira.
Rolei pra porta, bati o joelho, senti o gosto do ferrolho no dente. Saí. O ar lá fora parecia mais limpo do que merecia. Dei três passos, e o mundo gritou.
A explosão veio como um trovão íntimo. O tanque entregou o segredo de uma vez. Uma bola de fogo subiu pro céu como se quisesse que Deus visse. O calor me lambeu o rosto; o fogo, vermelho de orgulho, devorou o carro com apetite de justiça.
Eu não olhei pra trás. Quem olha pra trás vira estátua de sal, e eu não nasci pra ser sal. Nasci pra ser mar.
Cambaleei até a calçada, tirei o sangue do lábio com o dorso da mão, respirei uma vez. O corpo doeu inteiro, mas dor é recado: “Você está viva.” E estar viva é a única condição pra vingança.
Fiz um inventário em três segundos: celular, anel, envelope. Tudo comigo. Abri o telefone. Tinha uma mensagem que eu mesma havia programado com nome falso e chip limpo: “Quando o relógio quebrar, procure o homem que não usa relógio”. Era meu lembrete para quando a família falhasse. O homem que não usa relógio é o homem que faz o tempo: Dante “O Falcão.”
Fui pra sombra de um poste, liguei pro número embalado no lacre do envelope. A voz que atendeu não tinha pressa — eu respeito quem não corre no telefone.
— Quem fala? — ele disse.
— Pacto de Ferro, — respondi. — Vitale honra dívidas. Quero o chefe do Morro da Coroa.
Do outro lado, cinco segundos de silêncio que valeram um país. A voz mudou de densidade.
— Anota: — ele disse, dando um endereço, um horário, um nome de bar que parece piada interna. — Vem só. Se trouxer sombra, perde a entrada.
— Eu não trago sombra. — falei. — Eu viro.
Desliguei. A noite respirou junto comigo. Ali, na calçada suja, com o rosto quente de fogo e o sangue secando, decidi duas coisas: primeiro, eu não vou fugir. Segundo, eu vou caçar.
Não restou “Ramos”, “Matteo”, “Ruggiero”, nada — restou escória. Quem tentar me levar pro campo, pro caixão, pro cofre, vai conhecer a diferença entre dor e castigo. E vai aprender o que significa um sobrenome que não treme.
Meu pai me dizia: “A força não está em ser mais forte. Está em fazer o mundo temer a tua hora.” A minha hora chegou. O relógio quebrou. Eu virei o relógio.
Peguei carona no escuro da cidade com passos que não pedem licença. Passei por uma igreja pequena com porta aberta. Fiz o sinal da cruz do meu jeito — rápido, prático, sem prometer nada — e segui. As janelas me observaram com olhos de vidro; os cachorros calaram. Tem coisa que o bicho entende antes da gente: quando a tempestade é pessoa.
Meu nome é Alessia Vitale. Sou filha de Lorenzo, morto por veneno de covarde. Sou herdeira de um império que quer me engolir. Sou a mulher que vai bater na porta do Falcão sem bater. Se ele não quiser, ele aprende que querer e acontecer são verbos diferentes. E que eu aconteço.
Hoje, o Morro da Coroa vai ouvir meu nome pela primeira vez. Amanhã, quem me traiu vai ouvir o seu pela última.
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Atualizado até capítulo 32
Comments
Andreza Lelis
já estou apaixonada por essa história!
2025-09-05
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Simone Freitas
Muito intenso
2025-09-09
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Simone Freitas
Quer show foi esse
2025-09-09
0