capítulo 5

O Encontro dos Predadores

Narrado por Dante “O Falcão”

A noite no Morro da Coroa não dá boa-noite, dá recado. Aqui o silêncio não descansa, segura o fôlego antes do estampido. Hoje o ar veio denso, cheirando pólvora antiga e notícia nova. Baralho batendo na laje, rádio pirata cuspindo sussurro, cachorro sem latido. Quando até cachorro cala, é porque o morro sabe: chegou fera.

Alessia Vitale subiu pro meu mapa.

Última ordem do velho Lorenzo: Pacto de Ferro. Capo não pede — cobra. Morreu de veneno, mas deixou a filha de pé e meu nome rabiscado como sentença. Não quer favor, quer prova. Quer saber se eu ainda mando.

E eu mando.

— Status, — solto sem tirar o olho das luzes da cidade.

A voz da Duda estala no fone, fria como vidro:

— Cruzou o centro em linha reta. Limpou cinco no caminho. Sem sombra, sem escolta. Mira limpa. Sem teatro.

André encosta no batente. Lealdade até o osso, fala só o essencial:

— Vai receber na porta?

— Porta é pra convidado. — bato a cinza no peitoril. — Ela não é convidada. É prova.

Regras em voz baixa, porque ordem boa não precisa de grito:

— Tuca, rua de baixo: olho, não mão.

— Pingo, antena: sombra crescer, apaga a luz.

— Duda, corta polícia, ambulância curiosa e santo fofoqueiro.

— André, comigo. Se eu piscar, você atira. Eu não pisco.

O morro já entendeu: ninguém toca na italiana sem meu “vai”. Quem esquecer perde dente, perde tempo, perde vida.

Acendo outro cigarro. Primeira tragada faz as vielas mudarem de tom. Quando a favela afina, é porque o jogo chegou.

O rádio chia:

— Falcão, a menina passou. Os corpos ainda quentes. — pausa curta. — Não erra.

Respeito é a única flor que nasce rápido por aqui.

Desço. O chão vibra, laje devolvendo pulsação pra sola da bota. O Bar do Severino é a primeira peneira. Quem escolhe a porta errada aprende a soletrar “alta” gemendo. No balcão, Severino serve café preto sem pedir: quem põe açúcar no café do morro não entendeu a regra.

— Vai dar bom, Dante? — pergunta como quem mede tempo.

— Vai dar lei. — respondo seco.

Corredor do bar: freezer que guarda mais segredo que gelo, escada de cimento discreta. Mulher da trança surge, rádio no ombro, olhar de lupa.

— Trajeto limpo. Menino do poste fez o sinal. A rua já pesou ela.

— Pesou e deu quanto? — pergunto.

— Balança não quebrou. — sombra de sorriso. Bom sinal.

Entro na sala de comando. Telas piscando como veias no escuro. O morro inteiro cabe em luz trêmula: rotas, corredores, pontos vermelhos. No canto, minhas armas de verdade: mapa, silêncio, rádio. Eu gosto do morro assim: obediente.

— Falcão, — Duda chama — ela falou a senha no Severino. Pacto de Ferro. Vitale honra dívidas. Nem tremeu.

Aceno só. Palavra é risco; senha é ponte. Lorenzo, mesmo morto, ainda sabe plantar dinamite nos lugares certos.

— Ponto de fuga três liberado? — confirmo.

— Três, quatro e falso oito. Se seguirem, caem em rua que não existe. — Duda nunca falha.

Olho pra André.

— Não é guarda-costas. É aliança. Se ela vier tempestade errada, eu prendo no céu. Se vier do jeito certo, eu abro a cidade.

Ele move o pé meio centímetro. Linguagem dele pra “entendido”. Eu confio no que ele não fala.

O corredor cheira a graxa, ferro e pólvora velha. Logística pura. Ouço passos que não são meus. Compassados. Firmes. Passos de quem não pede licença ao chão. Predador reconhece predador pelo peso.

Paro de frente à porta de metal. Não ajeito boné, não arrumo camisa. Rei de rua não passa perfume antes da guerra. Respiro fundo. A mão esquerda no bolso, direita solta. Corpo já sabe a música.

A maçaneta gira. Primeiro entra o clima. Depois, ela. Sangue seco no canto da boca. Jaqueta marcada de explosão. Olho que conta saída antes de contar gente. E o silêncio certo: o que pesa sem pedir.

Ela para no ponto onde ameaça vira proposta.

Eu falo primeiro. Quem manda abre.

— Demorou, Vitale. O relógio quebrou?

A porta fecha atrás dela e o mundo fica pequeno. Só eu, ela e a respiração que pesa no ar.

Olho devagar, de cima a baixo. Postura reta, queixo erguido, olhar que não pede licença. Gostosinha, sim. Mas também armada até os dentes, mesmo quando não mostra ferro. Mafiosa de sangue e de atitude. Dá pra ver no corte da boca, no jeito que caminha como quem já matou e não precisou contar pra ninguém.

Ela não se encolhe. O silêncio dela não é fraqueza, é faca. Me encara como se fosse dona da sala — e eu sei que essa ousadia mata mais rápido do que tiro mal dado.

— Então você é o Falcão. — ela solta, voz limpa, italiana com sotaque que corta. — O rei do morro.

— Rei, coroa, pássaro... os nomes mudam. — puxo mais uma tragada do cigarro, sopro a fumaça de lado. — O que não muda é que aqui quem respira é porque eu deixo.

Ela dá um passo à frente. Eu noto o detalhe: salto firme, nem vacila no piso molhado. O perfume dela chega, misturado com cheiro de pólvora e sangue seco. Eu penso que Lorenzo sabia o que fazia quando mandou essa filha. Não é princesa de palácio. É cobra de rua com anel de diamante.

— Meu pai confiou em você. — Alessia fala baixo, mas não treme. — Disse que era o único capaz de me manter viva.

Ela chega mais perto. O salto risca o cimento, cadência lenta, provocação medida. O cheiro dela toma o ar — não é perfume comprado, é o cheiro de pólvora e gasolina grudado no couro da jaqueta. O olhar? Cortante. Igual ao do velho Lorenzo, mas com uma fúria que ele nunca teve coragem de mostrar.

E aí ela faz.

Sem pressa, sem pedir.

A mão dela sobe, firme, rouba o cigarro da minha boca como se sempre tivesse sido dela. Traga curto. Fumaça escapando pelos lábios pintados. Depois olha pra mim como se tivesse me desarmado.

A sala prende a respiração. André se mexe no canto, pronto pra reagir. Tuca aperta o fuzil contra o ombro. Duda ergue o olho do tablet. Pingo faz aquele estalo de língua típico dele quando o sangue coça pra cair.

Eu ergo a mão.

— Saiam.

Ninguém discute. Ordem dada não é pedido. O barulho dos passos deles indo embora ecoa no corredor, cada batida mais pesada que a anterior. Quando a porta de ferro fecha de novo, sobra só eu, Alessia e o silêncio que agora cheira a guerra.

Ela solta a fumaça devagar, me encarando.

— É isso? O rei do morro deixa uma mulher pegar o cigarro da boca dele e não faz nada?

Dou um sorriso torto. O tipo de sorriso que anuncia tempestade.

— Eu não deixo. — falo, grave. — Eu escolho quando reajo.

Arranco o cigarro da mão dela de volta, passo tão perto que o ombro roça no dela. Trago fundo e solto a fumaça no ar entre nós.

— E você, italiana, acabou de passar no primeiro teste: não tremeu, não pediu licença, não recuou.

Ela sorri de canto, irônica.

— Não preciso passar em teste nenhum, Falcão. Eu sou Vitale.

— Vitale. — repito, jogando a ponta do cigarro no chão e esmagando com a bota. — O sobrenome pesa, mas aqui ele não vale nada. No Morro da Coroa, ou você me prova que é tempestade de verdade… ou vira só mais um corpo esperando ser enterrado sem nome.

Ela inclina o rosto, chega tão perto que o hálito dela mistura com o meu.

— Então me testa direito.

Silêncio grosso. A tensão é faca no ar.

Dois predadores no mesmo terreno. Um querendo provar que manda. O outro querendo ver até onde ela aguenta antes de sangrar.

Eu solto a frase que fecha o espaço entre nós como sentença:

— Vai se arrepender de ter pedido.

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Comments

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Esses dois vão ser fogo 🔥

2025-09-06

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