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Sombras da Coroa

capitulo 1

Capítulo 1 — O Falcão

Narrado por Dante

A noite no Morro da Coroa nunca é silenciosa. É só o tipo de silêncio que engana. O poste apaga e reacende, o cachorro rosna sem ver, a garoa fina disfarça o cheiro de ferro do sangue antigo no asfalto. Aqui nada dorme. Aqui tudo vigia.

E no meio disso, eu.

Dante.

O Falcão.

Tenho trinta e dois. Fui forjado na fome, no ferro, na morte. Aprendi cedo que sentimento é vício caro — e eu não gasto. Não lembro a última vez que tive medo. Culpa? Essa eu nunca tive. Eu não sou o eco do morro, sou a voz que manda. Onde eu piso, o poder queima.

Boné baixo. Olhos frios. Tatuagem até o punho, cicatriz cruzando o rosto como assinatura. E uma regra que ninguém esquece: quem me trai, morre mal.

 

O pátio de concreto atrás do galpão é meu tribunal. Dois carros de farol aceso formando meia-lua. André ao meu lado, sombra inseparável. Tuca de guarda na entrada, fuzil encostado como se fosse extensão do braço. Pingo dissolvido no escuro, olhos sempre atentos. Duda em cima do contêiner, tablet na mão, fone no ouvido — a tecnologia é dela, o corte é meu.

No centro, de joelhos, está Ramos. Rato de dentro. Informante barato. O tipo que vende o morro por uns trocados e acha que vai viver pra gastar. Foi pego cuspindo segredo pro inimigo. Eu não perdoo rato.

As mãos dele estão presas atrás, plásticos mordendo a pele. O rosto suado, manchado de poeira. Tenta parecer forte, mas os olhos tremem. Quem vive da mentira nunca segura o olhar.

Eu me aproximo devagar. Bota riscando o chão. Faca descansando na bainha. O ar fica mais pesado porque todo mundo sabe: hoje é aula.

— Quem te pagou? — pergunto baixo.

— Ninguém… eu só… — ele tenta.

Estalo a língua. — Primeira mentira.

Faço sinal. Tuca traz a cadeira de metal e bate no chão com estrondo. O som ecoa no beco como sentença. Colocam Ramos sentado. Amarram tornozelos e peito. O pátio fica em silêncio — silêncio grosso, de respeito.

 

Começo simples. Pego o alicate. Uma ferramenta banal. A diferença é a mão que segura.

Seguro a mão dele. Puxo o dedo médio.

— Sabe o que eu gosto? — falo baixo, quase íntimo. — De começar devagar. Dor pequena. Dor que a mente acha que aguenta.

Aperto. A unha dele estala, racha, o sangue brota. Ele range os dentes, segura o grito.

— Respeito. — digo, e puxo o dedo inteiro pra trás até o estalo do osso encher o ar.

Ele grita. O eco bate nas paredes.

— Isso é só aquecimento, Ramos. — murmuro. — A verdadeira dor vem quando você entende que não vai morrer rápido.

Pego o segundo dedo. Faço o mesmo. O grito sai mais rouco. Ele tenta falar, engasga.

— Fala, então. Quem te pagou?

— Foi… foi… a facção do Galo… eles disseram que… que iam me proteger…

— Proteger? — rio curto. — Eles mal conseguem se proteger de mim.

Pego a faca. Encosto a ponta na bochecha dele. Corto devagar. Um risco fino, longo, sem pressa. O sangue escorre quente. O olhar dele se desespera.

— Eu te avisei: aqui não tem segunda chance. — digo no ouvido. — Traição não prescreve.

 

Agora a água. Pingo traz o balde. Eu cubro o rosto dele com um saco. Derramo devagar. O corpo dele se debate, pulmões gritando. Eu espero no limite. Tiro o saco. Ele puxa ar com desespero.

— Endereço. — exijo.

— Avenida Celso… sala 5… — ele tosse. — Quarta… duas da manhã…

— Quem mais sabia?

— Só eu… e… e o Galo…

Minto que acredito. Mas já basta.

 

Hora da execução.

Tiro a faca. Segura, longa, aço limpo. Olho pro meu povo: André, Tuca, Pingo, Duda. Todos firmes. O recado precisa ser claro.

Seguro a cabeça de Ramos pela nuca, puxo pra trás. O pescoço exposto. A lâmina encosta. Eu falo baixo, só pra ele ouvir:

— Você é a lição. O morro aprende pelo teu corpo.

E corto fundo. A lâmina abre a carótida como se fosse papel. O sangue jorra em arco, respinga no chão, na cadeira, no meu braço. Ele estremece, tenta respirar, mas só borbulha. Segura dois segundos, três, quatro. Depois cede. O corpo apaga. O olho fica parado, vazio.

Eu solto. O corpo tomba pro lado, o sangue se espalha pelo concreto, formando um rio escuro.

Pego a cabeça dele pelos cabelos, ergo pro alto. Mostro pro pátio.

— Este é o preço da traição. — digo firme. — Quem vende o morro, compra a própria cova.

Jogo a cabeça no chão. O som seco ecoa. O recado está dado.

 

André me olha e não precisa falar. Ele entende: ponto final.

Tuca cobre a área. Pingo arrasta o corpo. Duda já marca no mapa a rota pra descartar sem deixar rastro. Tudo no lugar.

Eu limpo a faca na camisa ensanguentada de Ramos. Guardo na bainha.

— Hoje o morro aprendeu. — digo. — Amanhã a cidade aprende.

 

O celular vibra. Número internacional: +39. Itália.

Atendo. Não falo nada.

— Dante. — a voz vem firme, pesada. — Aqui é Lorenzo Vitale.

— Fala.

— Tenho um pedido. Uma dívida. Minha filha, Alessia. Quero ela sob sua proteção. Intocável. Respira por ela, se for preciso.

Eu sorrio curto. O sangue ainda fresco escorre pelo concreto. Ramos mal esfriou, e já querem me dar outro jogo.

Olho pro chão do pátio, ainda molhado de sangue fresco. O corpo de Ramos nem esfriou. O ferro da lâmina ainda cheira a morte. Eu sorrio curto.

— E se eu não quiser? — devolvo, voz baixa, firme, sem pressa.

O silêncio do outro lado da linha não é vazio; é cálculo. Consigo quase ouvir ele mordendo os próprios dentes.

— Dante… — ele solta, arrastado. — Você me deve.

— Eu não devo nada pra ninguém. — respondo. — Quem pisa no meu morro paga. Quem respira aqui respira porque eu deixo. Se você acha que vai me dar ordem, vai aprender rápido a diferença entre pedido e sentença.

Ele tenta manter o tom, mas a raiva vaza:

— Cuidado, Falcão. Você pode reinar no seu morro, mas fora daí…

— Fora daqui não existe pra mim. — corto seco. — Eu não saio, eu invado. E quando invado, não peço licença.

Respiro fundo, olho pra André, que me observa de canto, como sempre. Volto pra chamada:

— Se eu aceitar proteger tua filha, não vai ser por você. Vai ser por mim. Porque eu decidi. E, se for assim, ela não vai ser intocável porque você pediu. Vai ser intocável porque eu marquei ela como parte do meu jogo.

O velho respira fundo do outro lado. Eu quase sinto o peso do orgulho engolido.

— Então decida logo. — ele solta, frio. — Porque Alessia já está a caminho.

O velho inspira fundo do outro lado da linha. A voz vem firme, mas eu reconheço o cheiro da pressão quando ela transborda até pelo telefone.

— Eu não tenho muito tempo, Dante. — ele diz, arrastando o sotaque. — Estão tentando me matar. Cercaram por todos os lados. A Alessia… — a pausa é curta, quase engasga. — Ela é a minha herdeira. Se ela ficar aqui, vai ser morta junto comigo.

Fico em silêncio. O sangue ainda escorre devagar pelo concreto aos meus pés, o corpo de Ramos sendo arrastado por Pingo pro saco preto. O morro me devolve aquele murmúrio de sempre: ninguém é intocável.

— Então você quer me jogar no teu jogo de sucessão, Lorenzo. — digo calmo, voz baixa, cada palavra pesando como chumbo. — Sua filha no meu morro, cercada de inimigos que nem eu ainda nomeei. Quer mesmo isso?

— Não tenho escolha. — ele responde, firme, mas eu sinto a navalha da aflição raspando na garganta dele. — Ela carrega o sangue dos Vitale. Se morrer, meu império apaga junto.

Acendo um cigarro, trago devagar. Solto a fumaça pro vento noturno, que leva o cheiro de pólvora e ferro junto.

— Escuta, italiano. — digo, sem pressa. — Se a tua filha entrar no meu território, ela deixa de ser tua herdeira e vira minha responsabilidade. Isso significa que quem encostar nela, encosta em mim. Só que tem uma diferença: eu não negocio. Eu executo.

O silêncio dele dura um segundo, dois. Depois, vem o suspiro de quem sabe que já fez a aposta errada, mas não tem outro baralho.

— É exatamente por isso que liguei pra você. — ele solta, baixo, quase resignado. — Porque sei que você é o único que não falha.

Olho pro céu nublado. A garoa engrossa. Alessia Vitale. Herdeira de um império estrangeiro que já sangra. Mais um nome, mais uma peça no meu tabuleiro.

— Então que venha. — digo firme. — Mas entenda bem, Lorenzo: a partir do momento que ela pisar no Morro da Coroa, a vida dela não é mais tua dívida. É a minha lei.

A linha cai. Só fica o zumbido seco.

Eu puxo o cigarro de novo, encaro André, que me observa calado.

— O jogo ficou maior. — digo. — Agora não é só o morro. É sangue italiano misturado ao nosso.

André apenas assente. Não precisa dizer nada. Ele sabe: quando o Falcão abre as asas, é pra caçar até o fim.

capítulo 2

LORENZO

O quarto respirava em penumbra, só o abajur cansado mantinha o mundo de pé. Cortinas pesadas, chuva fina batendo no mármore do peitoril, e aquele cheiro conhecido da casa: remédio, conhaque, couro antigo. O gosto do veneno estava na minha língua — gentil como um hóspede educado que entrou sem bater e decidiu ficar.

Anos cheirando mentira me ensinaram a reconhecer a morte pelo passo. Ela já estava na sala ao lado, ajeitando o vestido.

Passei a vida inteira entre lealdade e punhal; sobrevivi porque aprendi a contar respirações. Desta vez, a lâmina veio de perto. Não foi um estranho no escuro. Foi uma mão que eu apertei, um riso que dividiu mesa, um brinde que tilintou com o meu. O veneno andava comigo há semanas, discreto como pecado de domingo; fez ninho no meu sangue e agora cobra aluguel.

A porta abriu macia. Alessia entrou.

Meu orgulho com passos. Olhos castanhos que sabem pesar intenções, gesto preciso, postura reta. Carrega o meu sobrenome sem pedir licença. Foi criada com aço, não com açúcar. Sabe atirar de olhos fechados e desconfiar de olhos abertos.

— Papai… — ela disse, voz firme, controle absoluto. Só eu ouço a tensão que ela esconde.

Convidei a dor a sentar no canto e sorri.

— Alessia, você conhece a regra: a mesa muda, o jogo muda, a lei não. — A palavra “lei” saiu fria. — Lealdade é moeda. Traição é sentença.

Ela se aproximou e ajoelhou ao lado da cama. Minha mão trêmula pousou sobre a dela. Quente. Viva. Ainda brilha o futuro quando ela encosta.

— Fui envenenado. — disse, sem teatro. — Não por inimigos de fora. Pelos de dentro. O relógio encurtou.

Os olhos dela afiaram. Nenhuma lágrima. Vitale não molha o chão — seca o inimigo.

— Quem? — perguntou.

— O paciente, — respondi, rindo curto — o que observa, o que me viu construir e quis herdar sem merecer. Não vou te dar nomes hoje. Vou te dar ferramenta.

Ela assentiu. Sabia que, se eu não disse, é porque dizer agora não salva. Arma sem mira é barulho.

— Você vai procurar Dante. — falei baixo, como quem sela contrato. — Dante “O Falcão”. No Morro da Coroa, a palavra dele vira lei. Ele entende preço de honra, sabe cobrar e sabe pagar. Se eu cair, ele é a muralha que te mantém viva até a sua vingança ter pernas.

Ela não gostou da ideia de depender de ninguém — reconheci a curva da mandíbula travando. É minha filha.

— Papai, confiar—

— Confiar é verbo caro, — cortei. — Hoje você investe em resultado. Dante não ama, não promete, não falha. Vai te proteger porque isso o fortalece. E porque me deve um acerto antigo.

Tirei o anel do dedo: ouro velho, o “V” invertido cravado no rubi escuro.

— Chave um. — Coloquei o anel na palma dela. — Cofre Salazar 7, Armazém 3. Documento, dinheiro limpo, passaportes, rotas.

Puxei da gaveta um envelope pardo, lacrado com cera.

— Chave dois. — Entreguei. — Contas-ponte e nomes de casas frias. Não confia no endereço escrito: confia na frase do selo.

Ela leu: “Pacto de Ferro.”

— É a senha. Quando encarar Dante, diz exatamente: “Pacto de Ferro. Vitale honra dívidas.” Ele vai entender que isso partiu de mim — e que não é pedido, é compromisso.

O veneno queimou o caminho da garganta. Fingi que era conhaque.

— Mais: teu contato no Brasil é Rosana Ferraz. Não é família, é parafuso. Se ela pedir foto, palavra, assinatura, manda ela enfiar o protocolo e liga pro Dante. Quem tiver ciúme de corredor morre no corredor.

— E aqui? — Alessia perguntou. — Quem você quer que eu vigie antes de ir?

Sorri com o canto da boca. Humor, a última couraça.

— Vigia todo mundo. Se alguém dizer “eu cuidarei de você”, pergunta: “de quanto é a herança?” Mentira fede quando a cifra é grande.

Ela segurou mais forte minha mão. Reconheci o gesto: aquele em que ela guarda palavras e monta mapa. Em silêncio, Alessia arma bombas.

— Você não vai morrer, — ela disse, firme por fora, faca por dentro.

— Eu vou. — Sem floreio. — E o barulho precisa ser útil.

Apontei o retrato na parede: eu, mais novo, terno claro, sangue no punho disfarçado por sombra. Ao lado, tua mãe, linda como uma ameaça bem-feita.

— Lembra do metronomo no treino? — perguntei. — Um, dois, três… respira… um, dois, três… atira.

Ela assentiu.

— Hoje o metronomo é você. Vai pôr a cidade no compasso. Quem errar o tempo, você tira de cena.

A dor mordeu mais fundo, uma mão fechando meu esterno por dentro. Respirei com raiva. Raiva ajuda a puxar ar.

— Mais duas coisas.

Apontei a escrivaninha.

— Primeira: tem um pendrive preto no fundo falso. Não precisa abrir. Dá pro Dante. Ele não pergunta, ele usa.

— Segunda: não aceita condolência. Quem vier com abraço longo demais, mão esquentando tua nuca, é quem mede se dá pra quebrar tua coluna. Morde antes.

Ela sorriu de canto — minha filha.

— E se o Dante não quiser? — provocou. — E se o Falcão achar que a coroa dele não precisa do meu peso?

— Então ele vai lembrar que peso é o que derruba o inimigo, — respondi. — E que uma Vitale viva é investimento, não problema. Se ele hesitar, repete: Pacto de Ferro. E olha dentro do olho dele como você olha pro alvo quando a bala precisa ser única.

Os passos do veneno ficaram mais próximos. O quarto pareceu mudar de ângulo, como barco pegando onda. A visão perdeu brilho nas bordas. Segurei o pulso de Alessia mais um segundo, o suficiente pra imprimir o que importava.

— Sai agora. — falei. — Pelo corredor de serviço. Esquece a entrada principal. A casa já cheira traição.

— E você?

— Eu fico. — Ri. — Morrer dá trabalho. E eu sempre gostei de encerrar minha própria conta.

Ela inclinou a testa na minha, um gesto rápido — rito de passagem. Levantou-se. A jaqueta caiu nos ombros como armadura. Guardou o anel, o envelope, o meu ar nos bolsos.

— Vou encontrar o traidor. — disse, na secura que separa promessa de ameaça.

— Não encontra. — corrigi. — Caça. E quando pegar, não seja misericordiosa.

Alessia virou-se pra porta. O abajur fez ouro nas bordas do rosto dela. Por um instante, vi todas as versões dela: criança suja de poeira, adolescente desmontando pistola com metronomo, mulher que aprendeu a não desviar os olhos. Quis dizer “perdão por te ter criado assim”. Engoli. Vitale não pede perdão pela ferramenta que funciona.

A porta fechou.

Fiquei sozinho com a morte e com os móveis que sabem mais segredo do que gente. O relógio da cômoda arrastou um segundo comprido. Puxei o conhaque, só o cheiro, e deixei de volta. O veneno ardia como confissão malfeita. Ri de novo, baixo: até pra me matar escolheram indireta. Coerente — nunca tiveram coragem de frente.

Ajoelhei? Não. Deitei como quem encerra expediente. O teto ficou distante, um lago escuro. Pensei nos homens que aplaudiram ao meu lado, nos jantares, nas mãos que beijei porque a política precisa de teatro. Pensei nas ruas que comprei, nas balas que assinei, nos pecados que batizei com o meu nome.

Pensei nela, Alessia, saindo pela porta errada — a certa. Penso no Brasil, no morro, no homem que manda sem pedir permissão. Dante. Vai odiar que eu tenha dado a ele um problema com pernas. Vai aceitar, porque problema bom vira poder.

A mão formigou, o peito chiou, a luz mudou de peso. Senti a morte sentar na beira da cama. Tive vontade de perguntar o horário, de cravar na agenda. Não deu tempo.

Lorenzo Vitale morreria naquela noite. Sem discurso, sem plateia.

Mas a minha filha atravessaria a cidade com meu anel no bolso, um sobrepeso de fúria nas costelas e um recado gravado na língua:

Pacto de Ferro.

Vitale honra dívidas.

E cobra com juros.

capítulo 3

— A Morte de Lorenzo Vitale e a Traição

Narrado por Alessia Vitale

Sou Alessia Vitale, 28. Cresci entre omertà e pólvora, e aprendi cedo que respeito não se pede — se impõe. Cabelos pretos como corredor sem luz, olhos castanhos que não tremem. Cicatrizes discretas onde a vida tentou me ensinar humildade; eu retribuí com estratégia. Meu pai me educou com um mantra simples: quem controla o tempo controla o mundo. Quando eu chego, mudo o compasso. E quando eu mudo o compasso, quem não dança cai.

Não sou princesa de quadro. Sou herdeira de aço.

Meu pai era Lorenzo Vitale — uma lenda entalhada à bala. Mestre em apertar mãos que cheiram a pólvora e perfumar o crime com ordem. Ele me criou longe do açúcar e perto do barulho. Aos dezoito, eu já rodava caporegimes, sentava em reunião de acerto e tirava gente da mesa com um levantar de sobrancelha. Não porque eu era a filha do chefe, mas porque eu sabia fazer o relógio andar.

Nada me treinou para a noite passada.

Meu pai foi morto. Não por um tiro honesto. Por veneno: crime de quem tem medo de olhar no olho. Não veio de fora. Veio de dentro — mão que brindou à nossa saúde, boca que disse “famiglia” com devoção de teatro. O veneno caminhou nele por semanas, mansinho como serpente bem-educada, até morder onde doía.

Na véspera, Lorenzo me chamou. O quarto respirava remédio e conhaque; a luz do abajur parecia segurar a casa de pé por vontade própria. Ele estava pálido, mas inteiro. Olhou pra mim e não vi derrota; vi cálculo.

— Alessia, — ele disse — Pacto de Ferro. Procura Dante “O Falcão” no Morro da Coroa. Ele protege o que decide proteger. E quando decide, vira lei.

Dante. O nome entrou em mim feito lâmina fria. O homem do morro, rei sem coroa de ouro, mas com trono de medo. Meu pai me entregou o anel dos Vitale e um envelope selado. Não pediu — determinou. Eu obedeci. La famiglia é verbo.

Na manhã seguinte, Lorenzo Vitale morreu. E o palácio ficou cheio de gente querendo segurar vela no velório e colher dinheiro no cofre. Eu conheço o cheiro da falsa devoção — tem nota grande misturada.

Quem veio “me levar pra um lugar seguro” foram dois homens que sempre estiveram por perto: Matteo Santoro e Ruggiero Santoro — primos, homens de mão, caras que seguraram guarda-chuva em dia de chuva e atiraram quando o sol pediu sombra. Matteo fala pouco e mira bem. Ruggiero fala demais e mira em quem paga. Os dois apareceram com carro preto, vidro fumê, promessa pronta.

Eu entrei. Sentei atrás, ao centro. Mão direita no colo, esquerda no casaco. Se tem algo que aprendi, é isso: quem senta atrás no centro manda — e quem manda sai viva.

A cidade correu pelos vidros como um filme barato. O silêncio dentro do carro era errado: silêncio de quem pensa alto. Matteo dirigia como quem evita câmeras; Ruggiero olhava pelo retrovisor como quem procura autorização num fantasma.

— Signorina, — Ruggiero disse, voz macia — a casa não é mais segura. Vamos pra residência do campo. O consigliere já—

— O consigliere vai me ligar, não você. — cortei. — E quando ligar, eu desligo primeiro.

Matteo pigarreou. A mão dele desceu dois centímetros sobre a perna, buscando conforto onde mora a arma. Ruggiero sorriu curto. Aquele sorriso, com canto de boca que sobe só um lado — quem sabe ler, entende: sentença assinada.

Meu pai morreu de veneno. Eles queriam que eu morresse de “acidente”.

A estrada estreitou, o bairro mudou de cara, e o GPS mental que Lorenzo me obrigou a decorar gritava dentro de mim: rota de descarte. As placas ficaram raras, os postes, mais baixos, a polícia, menos interessada. Quanto mais vazio, mais seguro… pra quem puxa gatilho.

Vi o movimento no reflexo: o ombro de Ruggiero tensionou, a mão desceu pro coldre na cintura, Matteo respirou mais curto. Eu baixei as pálpebras um milímetro — o suficiente pra ninguém perceber que meus olhos ampliaram o mundo.

— Alessia, — Matteo começou, sem me olhar — precisamos confiar um no outro.

— Confiar? — sorri, sem humor. — Eu confio em duas coisas: na gravidade e na conta bancária.

Ele entendeu. Ou achou que entendeu. Aí veio a parte em que os idiotas acreditam no próprio roteiro: Ruggiero virou meio corpo, arma já saindo do coldre, o cano buscando o meu peito como quem encosta copo na mesa. Matteo falou “mi dispiace” como quem pede desculpa por derrubar vinho caro.

Eu estava pronta antes deles nascerem.

Minha mão esquerda segurava o casaco. A direita já estava na Beretta curta que eu escondo onde ninguém ousa pedir revista. Puxei, dois passos mentais à frente: primeiro braço, depois motor.

Atirei no punho de Ruggiero — o disparo quebrou o gesto dele no meio, a arma voou girando como passarinho com asa quebrada. Gritei nada, mandei bala no ombro pra travar o tronco. O carro puxou de lado quando Matteo sacou que a coisa desandou; ele puxou o volante, eu puxei a verdade.

E a verdade é que eu não morro no carro de ninguém.

Joguei meu peso pro lado, chutei o banco da frente pra deslocar o cotovelo de Matteo, a Beretta veio de novo, dois tiros no painel — nada de filme: queria apagar o carro antes que eles apagassem a minha família da história. O motor tossiu, a direção endureceu, o cheiro de gasolina acordou.

Ruggiero, ensanguentado, ainda tentou pegar a arma do assoalho. Eu prendi o braço dele com meu salto, empurrei pra baixo, e sussurrei no ouvido:

— Famiglia não é cadeira vazia, Ruggiero. É maré. Quem tenta desviar, afoga.

Ele xingou, cuspindo sangue. Eu ri, sem dente.

Matteo, desesperado, puxou o freio de mão tarde demais. O carro beijou o muro de concreto com a delicadeza de um aríete. O cinto me cortou o osso do peito; agradeci por estar viva em voz que só eu ouvi. O airbag explodiu, a poeira branca virou neblina em câmera lenta. Eu não espero poeira assentar: sou a poeira.

Rolei pra porta, bati o joelho, senti o gosto do ferrolho no dente. Saí. O ar lá fora parecia mais limpo do que merecia. Dei três passos, e o mundo gritou.

A explosão veio como um trovão íntimo. O tanque entregou o segredo de uma vez. Uma bola de fogo subiu pro céu como se quisesse que Deus visse. O calor me lambeu o rosto; o fogo, vermelho de orgulho, devorou o carro com apetite de justiça.

Eu não olhei pra trás. Quem olha pra trás vira estátua de sal, e eu não nasci pra ser sal. Nasci pra ser mar.

Cambaleei até a calçada, tirei o sangue do lábio com o dorso da mão, respirei uma vez. O corpo doeu inteiro, mas dor é recado: “Você está viva.” E estar viva é a única condição pra vingança.

Fiz um inventário em três segundos: celular, anel, envelope. Tudo comigo. Abri o telefone. Tinha uma mensagem que eu mesma havia programado com nome falso e chip limpo: “Quando o relógio quebrar, procure o homem que não usa relógio”. Era meu lembrete para quando a família falhasse. O homem que não usa relógio é o homem que faz o tempo: Dante “O Falcão.”

Fui pra sombra de um poste, liguei pro número embalado no lacre do envelope. A voz que atendeu não tinha pressa — eu respeito quem não corre no telefone.

— Quem fala? — ele disse.

— Pacto de Ferro, — respondi. — Vitale honra dívidas. Quero o chefe do Morro da Coroa.

Do outro lado, cinco segundos de silêncio que valeram um país. A voz mudou de densidade.

— Anota: — ele disse, dando um endereço, um horário, um nome de bar que parece piada interna. — Vem só. Se trouxer sombra, perde a entrada.

— Eu não trago sombra. — falei. — Eu viro.

Desliguei. A noite respirou junto comigo. Ali, na calçada suja, com o rosto quente de fogo e o sangue secando, decidi duas coisas: primeiro, eu não vou fugir. Segundo, eu vou caçar.

Não restou “Ramos”, “Matteo”, “Ruggiero”, nada — restou escória. Quem tentar me levar pro campo, pro caixão, pro cofre, vai conhecer a diferença entre dor e castigo. E vai aprender o que significa um sobrenome que não treme.

Meu pai me dizia: “A força não está em ser mais forte. Está em fazer o mundo temer a tua hora.” A minha hora chegou. O relógio quebrou. Eu virei o relógio.

Peguei carona no escuro da cidade com passos que não pedem licença. Passei por uma igreja pequena com porta aberta. Fiz o sinal da cruz do meu jeito — rápido, prático, sem prometer nada — e segui. As janelas me observaram com olhos de vidro; os cachorros calaram. Tem coisa que o bicho entende antes da gente: quando a tempestade é pessoa.

Meu nome é Alessia Vitale. Sou filha de Lorenzo, morto por veneno de covarde. Sou herdeira de um império que quer me engolir. Sou a mulher que vai bater na porta do Falcão sem bater. Se ele não quiser, ele aprende que querer e acontecer são verbos diferentes. E que eu aconteço.

Hoje, o Morro da Coroa vai ouvir meu nome pela primeira vez. Amanhã, quem me traiu vai ouvir o seu pela última.

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