capitulo 4

Narrado por Alessia Vitale

Eu estava em carne viva. Não pelo fogo do carro — pelo fogo de dentro. A adrenalina grudou em mim como uma segunda pele e não desgrudou mais. Meu pai, Lorenzo Vitale, não era só um homem: era a arquitetura inteira de um império. Veneno de covarde derrubou o pilar. Eu fiquei de pé. E quando eu fico de pé, eu mudo o compasso.

Promessa simples: reconstruir o que é nosso. Destruir quem assinou a sentença do meu sangue.

A cidade respirava torto. As luzes pareciam piscar em código. Eu lia cada beco como se fosse página antiga — e cada sombra me lia de volta. Os que matam rei sempre caçam herdeira. Omertà é palavra bonita; traição é o dialeto que a ambição fala quando bebe.

Eu já tinha feito a ligação — Pacto de Ferro. Vitale honra dívidas. Do outro lado, a voz sem pressa me deu um endereço, um nome de bar que parecia piada interna, uma hora que não admite atraso. Dante “O Falcão” me esperava no Morro da Coroa. Esperar é modo de dizer: quem manda não espera, mede.

Caminhei. Sem corre. Quem corre declara pânico. Eu declaro intenção.

As avenidas foram ficando ralas, o concreto, mais úmido, as esquinas, mais opinativas. O relógio do bolso marcou nada; quem manda no tempo sou eu. Foi quando senti o vento mudar. Sabe quando a cidade segura o fôlego? É porque chegou companhia.

Paro atrás de um contêiner, metal suando ferrugem. A rua falou baixo: passo rápido, peso de bota, respiração racionada. Cheiro de óleo de arma boa — não amador.

Cinco. Três à frente, dois na cobertura do fundo. Tática de cães emprestados. Ninguém do meu clã; Santoro tem esse jeito de andar como quem pede desculpa à calçada.

O primeiro apareceu do nada, queixo duro, olhar seco. O “chefe” da patrulha improvisada.

— Eu sei o que você fez com Matteo e Ruggiero, Vitale. — voz áspera. — Hoje a conta fecha.

Eu sorri sem dente. Conta comigo não fecha: eu arrebento o livro-caixa.

A Beretta já estava fria na minha mão. Disparo único, seco. Cano alinhado no zigoma. Ele caiu como se tivesse decidido deitar. Quem lidera e cai primeiro dá o tom: o resto desfoca.

O furacão começou. Bala ricocheteando, sombra pulando de porta, rádio chiando “— Avança, avança —”. Não avancei; acertei. Dois passos laterais, anteparo de concreto, dupla no tórax em quem tentou fazer pose de herói, terceiro no arco supraclavicular pra apagar vontade. Nada de teatro. Fui cirúrgica: joelho que apoia vira joelho que entrega, ombro que levanta vira ombro que cai. O mundo é físico; a máfia é geométrica.

O da retaguarda pensou em flanquear. Ouvi a respiração dele quebrar a cadência. Eu mostrei a minha faca curta pra o tendão certo, aquele que separa corrida de queda. Ficou no chão apresentando o asfalto aos dentes. Eu passei, recolhi a compacta dele sem carinho, descarreguei duas certeiras no comparsa que bravejou mais alto do que a mira permitia.

Silêncio por um segundo — o segundo que separa tiro de estatística. O rádio de um corpo morto falou por ele:

— “Equipe Dois, status?”

— …estática…

— “Equipe Dois?”

— …Vitale… (sussurro de quem ainda não entendeu que a boca parou de ser utilidade)

Eu recolhi munição, limpei a respiração, ajustei a jaqueta. Não beijo chão de ninguém; piso e sigo. Cinco no chão. Eu, inteira. Dor no ombro? Anotada. Sangue no lábio? Lembrança. Vontade de voltar e perguntar nomes? Zero. Nome de traidor só serve para epitáfio.

Apertei o passo. Entrei na zona em que o morro começa a te olhar primeiro. Janela que abre um dedo. Assobio corto que não é música — é protocolo. Criança parou com a bola na mão. Não medo: respeito. Quem manda aqui não veste farda; veste silêncio.

Um adolescente fino, boné baixo, encostado no poste, me mediu num relance. A mão dele fez um sinal miúdo, o tipo de linguagem que não aparece em dicionário. Eu entendi. “Te viram. Agora te pesam.”

— Bar do Severino? — perguntei, voz reta.

Ele não confirmou nem negou. Apenas olhou pro relógio (sem horas) e pro beco à direita. Beco certo. Quem é de fora só aprende se ouve.

Entrei. O beco tem cheiro de roupa úmida, sabão barato e o aço de quem preferiu viver. Um senhor varria a calçada com a dignidade que eu conheço: a de quem viu muita gente chegar grande e sair menor.

— Procura o quê, moça? — voz de quem reina no que cabe à vassoura.

— Pacto de Ferro. — respondi. — Vitale honra dívidas.

A vassoura parou no ar. O olho dele não mudou; a rua ao redor mudou. Ele assentiu pro nada. Três portas depois, outra figura encostada na sombra: mulher de trança, olhos atentos, sem pressa nenhuma. Teste de paciência. Eu passei.

O bar do Severino é um quadrado de azulejo cansado, uma televisão alta demais e um balcão que ouviu confidência o suficiente pra comprar casa. Entrei com passos de quem paga as contas. Não tirei a mão do bolso. Quem tira a mão do bolso vira estátua. Eu sou mar.

— Café? — Severino perguntou, servindo sem esperar resposta.

— Forte. Sem açúcar. — Quem põe açúcar no café do morro não entendeu a aula.

O líquido chegou preto, honesto. Eu encostei as costas na madeira, contei os parafusos com o tato. Quarenta e três segundos. A porta lateral abriu sem dramatização. Dois homens entraram, sem ruído. Ombro alinhado, arma não à mostra (quem mostra trabalha pra foto). Olhos de quem já viu tiro dar filho.

— Vitale, — o da esquerda disse, sem enfeite. — vem.

Não perguntou se eu era eu. Eles já sabiam. Quem não sabe quem sou não me chama pelo sobrenome certo.

Passamos pela cozinha, por trás do freezer que mapeia mais conversa que GPS, por uma escada de cimento que aprendeu a ser discreta. Cheiro de óleo, ferro e graxa — logística. No fim do corredor, porta de metal. A mulher da trança apareceu de novo, agora com rádio no ombro. Olhou meus bolsos como quem lê subtítulos. Não pediu arma. Eu respeitei o respeito.

— Regra simples, Vitale. — ela disse. — Aqui dentro, quem fala é quem vive daqui. Fala quando for perguntada. Se não for, bebe café.

— Eu não bebo café duas vezes. — respondi.

Sombra de sorriso — quem entende economia gosta de frase barata e verdadeira.

A porta abriu. Ar frio. Mapa em monitor, pontos de luz subindo e descendo como respiração. Eu conheço sala de comando de qualquer lugar: linhas, raios, círculos e rotas. Um mundo que cabe num retângulo iluminado.

A voz dele veio antes dele.

— Demorou, Vitale. — segura, limpa, sem pressa. — O relógio quebrou?

Eu virei. Dante “O Falcão”. Boné baixo. Barba rente. Olhos de quem mede prédio pelo eco do passo. Sem medalhas, sem pose. O tipo de rei que a rua escolhe sem plebiscito.

Mais populares

Comments

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Dante e Vitale... O que será que vai acontecer??? rsrs

2025-09-06

0

iracilda damasceno

iracilda damasceno

A guerra só está começando

2025-09-02

0

Simone Freitas

Simone Freitas

Eita que vai bombar

2025-09-09

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!