capítulo 2

LORENZO

O quarto respirava em penumbra, só o abajur cansado mantinha o mundo de pé. Cortinas pesadas, chuva fina batendo no mármore do peitoril, e aquele cheiro conhecido da casa: remédio, conhaque, couro antigo. O gosto do veneno estava na minha língua — gentil como um hóspede educado que entrou sem bater e decidiu ficar.

Anos cheirando mentira me ensinaram a reconhecer a morte pelo passo. Ela já estava na sala ao lado, ajeitando o vestido.

Passei a vida inteira entre lealdade e punhal; sobrevivi porque aprendi a contar respirações. Desta vez, a lâmina veio de perto. Não foi um estranho no escuro. Foi uma mão que eu apertei, um riso que dividiu mesa, um brinde que tilintou com o meu. O veneno andava comigo há semanas, discreto como pecado de domingo; fez ninho no meu sangue e agora cobra aluguel.

A porta abriu macia. Alessia entrou.

Meu orgulho com passos. Olhos castanhos que sabem pesar intenções, gesto preciso, postura reta. Carrega o meu sobrenome sem pedir licença. Foi criada com aço, não com açúcar. Sabe atirar de olhos fechados e desconfiar de olhos abertos.

— Papai… — ela disse, voz firme, controle absoluto. Só eu ouço a tensão que ela esconde.

Convidei a dor a sentar no canto e sorri.

— Alessia, você conhece a regra: a mesa muda, o jogo muda, a lei não. — A palavra “lei” saiu fria. — Lealdade é moeda. Traição é sentença.

Ela se aproximou e ajoelhou ao lado da cama. Minha mão trêmula pousou sobre a dela. Quente. Viva. Ainda brilha o futuro quando ela encosta.

— Fui envenenado. — disse, sem teatro. — Não por inimigos de fora. Pelos de dentro. O relógio encurtou.

Os olhos dela afiaram. Nenhuma lágrima. Vitale não molha o chão — seca o inimigo.

— Quem? — perguntou.

— O paciente, — respondi, rindo curto — o que observa, o que me viu construir e quis herdar sem merecer. Não vou te dar nomes hoje. Vou te dar ferramenta.

Ela assentiu. Sabia que, se eu não disse, é porque dizer agora não salva. Arma sem mira é barulho.

— Você vai procurar Dante. — falei baixo, como quem sela contrato. — Dante “O Falcão”. No Morro da Coroa, a palavra dele vira lei. Ele entende preço de honra, sabe cobrar e sabe pagar. Se eu cair, ele é a muralha que te mantém viva até a sua vingança ter pernas.

Ela não gostou da ideia de depender de ninguém — reconheci a curva da mandíbula travando. É minha filha.

— Papai, confiar—

— Confiar é verbo caro, — cortei. — Hoje você investe em resultado. Dante não ama, não promete, não falha. Vai te proteger porque isso o fortalece. E porque me deve um acerto antigo.

Tirei o anel do dedo: ouro velho, o “V” invertido cravado no rubi escuro.

— Chave um. — Coloquei o anel na palma dela. — Cofre Salazar 7, Armazém 3. Documento, dinheiro limpo, passaportes, rotas.

Puxei da gaveta um envelope pardo, lacrado com cera.

— Chave dois. — Entreguei. — Contas-ponte e nomes de casas frias. Não confia no endereço escrito: confia na frase do selo.

Ela leu: “Pacto de Ferro.”

— É a senha. Quando encarar Dante, diz exatamente: “Pacto de Ferro. Vitale honra dívidas.” Ele vai entender que isso partiu de mim — e que não é pedido, é compromisso.

O veneno queimou o caminho da garganta. Fingi que era conhaque.

— Mais: teu contato no Brasil é Rosana Ferraz. Não é família, é parafuso. Se ela pedir foto, palavra, assinatura, manda ela enfiar o protocolo e liga pro Dante. Quem tiver ciúme de corredor morre no corredor.

— E aqui? — Alessia perguntou. — Quem você quer que eu vigie antes de ir?

Sorri com o canto da boca. Humor, a última couraça.

— Vigia todo mundo. Se alguém dizer “eu cuidarei de você”, pergunta: “de quanto é a herança?” Mentira fede quando a cifra é grande.

Ela segurou mais forte minha mão. Reconheci o gesto: aquele em que ela guarda palavras e monta mapa. Em silêncio, Alessia arma bombas.

— Você não vai morrer, — ela disse, firme por fora, faca por dentro.

— Eu vou. — Sem floreio. — E o barulho precisa ser útil.

Apontei o retrato na parede: eu, mais novo, terno claro, sangue no punho disfarçado por sombra. Ao lado, tua mãe, linda como uma ameaça bem-feita.

— Lembra do metronomo no treino? — perguntei. — Um, dois, três… respira… um, dois, três… atira.

Ela assentiu.

— Hoje o metronomo é você. Vai pôr a cidade no compasso. Quem errar o tempo, você tira de cena.

A dor mordeu mais fundo, uma mão fechando meu esterno por dentro. Respirei com raiva. Raiva ajuda a puxar ar.

— Mais duas coisas.

Apontei a escrivaninha.

— Primeira: tem um pendrive preto no fundo falso. Não precisa abrir. Dá pro Dante. Ele não pergunta, ele usa.

— Segunda: não aceita condolência. Quem vier com abraço longo demais, mão esquentando tua nuca, é quem mede se dá pra quebrar tua coluna. Morde antes.

Ela sorriu de canto — minha filha.

— E se o Dante não quiser? — provocou. — E se o Falcão achar que a coroa dele não precisa do meu peso?

— Então ele vai lembrar que peso é o que derruba o inimigo, — respondi. — E que uma Vitale viva é investimento, não problema. Se ele hesitar, repete: Pacto de Ferro. E olha dentro do olho dele como você olha pro alvo quando a bala precisa ser única.

Os passos do veneno ficaram mais próximos. O quarto pareceu mudar de ângulo, como barco pegando onda. A visão perdeu brilho nas bordas. Segurei o pulso de Alessia mais um segundo, o suficiente pra imprimir o que importava.

— Sai agora. — falei. — Pelo corredor de serviço. Esquece a entrada principal. A casa já cheira traição.

— E você?

— Eu fico. — Ri. — Morrer dá trabalho. E eu sempre gostei de encerrar minha própria conta.

Ela inclinou a testa na minha, um gesto rápido — rito de passagem. Levantou-se. A jaqueta caiu nos ombros como armadura. Guardou o anel, o envelope, o meu ar nos bolsos.

— Vou encontrar o traidor. — disse, na secura que separa promessa de ameaça.

— Não encontra. — corrigi. — Caça. E quando pegar, não seja misericordiosa.

Alessia virou-se pra porta. O abajur fez ouro nas bordas do rosto dela. Por um instante, vi todas as versões dela: criança suja de poeira, adolescente desmontando pistola com metronomo, mulher que aprendeu a não desviar os olhos. Quis dizer “perdão por te ter criado assim”. Engoli. Vitale não pede perdão pela ferramenta que funciona.

A porta fechou.

Fiquei sozinho com a morte e com os móveis que sabem mais segredo do que gente. O relógio da cômoda arrastou um segundo comprido. Puxei o conhaque, só o cheiro, e deixei de volta. O veneno ardia como confissão malfeita. Ri de novo, baixo: até pra me matar escolheram indireta. Coerente — nunca tiveram coragem de frente.

Ajoelhei? Não. Deitei como quem encerra expediente. O teto ficou distante, um lago escuro. Pensei nos homens que aplaudiram ao meu lado, nos jantares, nas mãos que beijei porque a política precisa de teatro. Pensei nas ruas que comprei, nas balas que assinei, nos pecados que batizei com o meu nome.

Pensei nela, Alessia, saindo pela porta errada — a certa. Penso no Brasil, no morro, no homem que manda sem pedir permissão. Dante. Vai odiar que eu tenha dado a ele um problema com pernas. Vai aceitar, porque problema bom vira poder.

A mão formigou, o peito chiou, a luz mudou de peso. Senti a morte sentar na beira da cama. Tive vontade de perguntar o horário, de cravar na agenda. Não deu tempo.

Lorenzo Vitale morreria naquela noite. Sem discurso, sem plateia.

Mas a minha filha atravessaria a cidade com meu anel no bolso, um sobrepeso de fúria nas costelas e um recado gravado na língua:

Pacto de Ferro.

Vitale honra dívidas.

E cobra com juros.

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Comments

Simone Freitas

Simone Freitas

A começa deixando a curiosidade a mil

2025-09-09

0

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Qual pacto será esse???

2025-09-05

0

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Quem será o traidor?

2025-09-05

0

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