Entre Páginas e Feridas
*Clara Monteiro*
As palavras sempre foram meu refúgio, mas também meu veneno. Elas me salvam quando o mundo aperta, quando o vazio da casa se torna tão grande que engole até o som do meu próprio respirar. Mas também me traem, escorregam pelas bordas da minha mente e caem em lugares que eu não ouso visitar. Escrever é como abrir uma veia: você nunca sabe quanto sangue vai perder até que a página esteja manchada.
Eu estava sentada na beirada da cama, com uma taça de vinho tinto quase vazia na mão, quando olhei para o relógio. 6h47 da manhã. O céu lá fora ainda carregava aquele cinza opressivo de São Paulo, como se a cidade inteira estivesse prendendo a respiração. Eu não dormi. Não de verdade. Passei a noite revisitando as frases do meu livro, *A Pele das Coisas Que Não Disse*, como quem relê uma carta de despedida. Era meu primeiro lançamento, hoje, às sete da noite, numa livraria no centro que eu conhecia como a palma da minha mão. Mas a ideia de estar lá, de pé, com olhos estranhos me encarando, fazia meu estômago revirar.
“Você já é um fracasso antes mesmo de tentar,” sussurrou uma voz que eu conhecia bem demais. Não era minha mãe, nem meu ex, nem ninguém que eu pudesse culpar. Era eu mesma, a versão que guardava todas as noites mal dormidas, todas as promessas quebradas, todos os “quase” que nunca viraram “foi”. Peguei a garrafa de vinho ao lado da cama, um Malbec barato que comprei no mercado da esquina, e enchi a taça até a borda. O líquido vermelho dançava sob a luz fraca do abajur, e por um momento, pensei em como seria fácil simplesmente não ir. Cancelar o evento. Dizer que estava doente. Desaparecer.
Mas então vi o livro sobre a mesinha de cabeceira. A capa simples, com meu nome em letras brancas sobre um fundo azul-escuro, como um céu antes da tempestade. *Clara Monteiro*. Ver meu nome ali ainda parecia um erro de impressão. Como se alguém tivesse se enganado e colocado o nome de outra pessoa, alguém que merecesse estar ali. Alguém que não bebesse para esquecer, que não escrevesse para sobreviver.
Levantei-me, com a taça ainda na mão, e caminhei até a janela. A rua estava começando a acordar, com o barulho distante de buzinas e o cheiro de asfalto molhado que subia até o terceiro andar. São Paulo nunca dorme de verdade, mas às vezes finge, como se quisesse me convencer de que também posso descansar. Não posso. Não hoje.
Eu sabia que o dia seria longo, que cada hora até o lançamento seria uma batalha contra mim mesma. Então fiz o que sempre faço quando o medo aperta: peguei um caderno velho, com a capa de couro gasta, e comecei a escrever. Não era o livro, não era nada que alguém leria. Era só um desabafo, um grito mudo para ninguém. “O que é uma página em branco senão um espelho? Você olha, e ela te devolve tudo o que você não quer ver.” Escrevi isso e parei, com a caneta tremendo entre os dedos. Era verdade. Cada palavra que eu colocava no papel era um pedaço de mim que eu não sabia se queria revelar.
Guardei o caderno, terminei o vinho e decidi que precisava de um banho. A água quente talvez lavasse a sensação de que eu estava me afogando em mim mesma. Enquanto a água caía, fechei os olhos e tentei lembrar por que escrevi aquele livro. Não era para ser famoso, não era para ser rico. Era porque, por anos, eu carreguei histórias que ninguém quis ouvir. Namorados que me deixaram, amigos que viraram estranhos, uma mãe que nunca soube me amar direito. Escrever foi a única forma de dar sentido à dor, de transformá-la em algo que não fosse só um peso no peito. E agora, aquelas palavras estavam impressas, encadernadas, à venda em livrarias. E eu não sabia se estava pronta para o que isso significava.
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O dia passou como um borrão. Escolhi um vestido preto simples, porque qualquer coisa mais chamativa parecia gritar “olha para mim”, e eu não queria ser vista. Não de verdade. Penteei o cabelo, passei um batom vermelho que achei que poderia me fazer parecer mais confiante, e saí de casa com o coração na garganta. A livraria ficava a algumas quadras do meu apartamento, mas decidi ir a pé, deixando o vento frio de São Paulo me acordar. As ruas estavam cheias, como sempre, com pessoas correndo para algum lugar, falando alto ao celular, vivendo vidas que eu nunca saberia. Às vezes, eu me perguntava como seria ser uma delas — alguém que não pensava tanto, que não carregava cada pensamento como se fosse uma pedra.
Quando cheguei à livraria, o letreiro já estava aceso: *Lançamento: A Pele das Coisas Que Não Disse, com Clara Monteiro*. Meu nome ali, em letras grandes, parecia uma piada cruel. Entrei, e o cheiro familiar de papel e café me envolveu. Era o mesmo lugar onde eu passava horas, anos atrás, folheando livros que eu não podia comprar, sonhando com o dia em que teria algo meu nas prateleiras. E agora, lá estava eu, com uma pilha de exemplares do meu livro em uma mesa decorada com flores brancas e uma placa com minha foto. A foto era horrível, claro. Eu sorria de um jeito que parecia forçado, como se estivesse tentando convencer a mim mesma de que tudo ia dar certo.
Douglas estava lá, atrás do balcão, como sempre. Ele trabalhava na livraria há anos, e eu o conhecia desde os tempos em que eu era só uma garota que aparecia para ler trechos de romances e depois saía sem comprar nada. Ele nunca me julgou por isso. Pelo contrário, às vezes ele guardava um livro para mim, dizendo que “achava que eu ia gostar”. Era o tipo de pessoa que notava coisas sem precisar que você dissesse. Como o jeito que eu segurava um livro, ou como meus olhos ficavam distantes quando alguém mencionava amor.
— Clara, você tá pronta? — ele perguntou, com aquele tom calmo que parecia ancorar o mundo.
Eu balancei a cabeça, sem confiança nenhuma.
— Não sei, Douglas. E se ninguém vier? Ou pior, e se vierem e me odiarem?
Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas quente, como se soubesse algo que eu ainda não tinha descoberto.
— Ninguém vai te odiar. E se odiarem, é porque não entenderam nada. — Ele apontou para a pilha de livros. — Isso aí é você, Clara. E você é mais forte do que pensa.
Eu quis acreditar nele, mas o peso no peito não aliviava. Antes que eu pudesse responder, a porta da livraria se abriu, e as primeiras pessoas começaram a entrar. Eram poucos, no começo: um casal de meia-idade, uma garota com óculos de armação grossa, um homem com uma camiseta de banda que eu não conhecia. Eles olhavam para mim com curiosidade, como se tentassem decidir se eu era quem dizia ser. Peguei outra taça de vinho da mesa de bebidas — cortesia da editora — e bebi um gole longo, esperando que o álcool acalmasse meus nervos.
Aos poucos, a livraria foi enchendo. Não era uma multidão, mas era mais do que eu esperava. Minha editora, uma mulher chamada Mariana com um sorriso profissional demais, me apresentou ao microfone. Minhas mãos tremiam quando peguei o livro para ler um trecho. Escolhi a primeira página, porque era a única que eu conseguia lembrar de cor.
> “Há coisas que não dizemos porque doem demais, e outras porque nunca encontramos as palavras certas. Mas o silêncio também é uma linguagem, e a minha sempre foi feita de cortes. Cada palavra que não disse cortou um pedaço de mim, até que sobrou só a pele — fina, frágil, mas ainda inteira.”
Minha voz vacilou no começo, mas aos poucos, encontrei o ritmo. As pessoas ouviam, algumas com os olhos fixos em mim, outras olhando para o chão, como se as palavras tocassem algo dentro delas. Quando terminei, houve um aplauso tímido, e eu senti um alívio tão grande que quase chorei. Mariana assumiu o microfone, falando sobre o processo de escrita, sobre como o livro era “uma voz nova na literatura brasileira”. Eu mal ouvia. Meu coração ainda batia rápido demais.
Foi então que a vi.
Ela entrou pela porta da livraria como se o lugar pertencesse a ela. Alta, com o cabelo castanho ondulado caindo sobre os ombros, e um sorriso que parecia ao mesmo tempo acolhedor e afiado. Vestia um blazer azul-escuro sobre uma blusa branca, e seus olhos percorreram a sala antes de pararem em mim. Eu não sabia quem ela era, mas algo nela me fez sentir pequena, como se eu fosse uma criança brincando de escritora.
Mariana a apresentou como Valentina Reyes, autora de best-sellers, dona de uma carreira que eu só podia sonhar em ter. Eu já tinha lido um dos livros dela, *Onde as Sombras Dormem*, um romance psicológico que me deixou acordada por duas noites seguidas. Ela era tudo o que eu não era: confiante, articulada, alguém que parecia saber exatamente onde pisava. Quando ela se aproximou, com a mão estendida, eu quase derrubei a taça de vinho.
— Clara, certo? — A voz dela era suave, mas firme, como se cada palavra fosse escolhida com cuidado. — Li seu livro. É cru, mas honesto. Isso é raro.
Eu pisquei, sem saber o que dizer. Minha cabeça estava cheia de pensamentos desconexos — *ela leu meu livro? Ela gostou? Ela tá mentindo?* — mas tudo o que saiu foi um:
— Obrigada.
Ela sorriu, e havia algo nos olhos dela, uma mistura de curiosidade e empatia, que me fez querer contar tudo. Sobre o vinho, sobre as noites que passei chorando enquanto escrevia, sobre o medo de que tudo isso fosse um erro. Mas eu não disse nada. Só assenti, tentando parecer menos perdida do que me sentia.
Valentina ficou por mais tempo do que eu esperava. Enquanto eu assinava alguns livros — minha assinatura ainda parecia estranha, como se não me pertencesse —, ela conversava com Mariana, com os leitores, com uma facilidade que eu invejava. Em um momento, ela se aproximou de novo, segurando um exemplar do meu livro.
— Posso te dar um conselho? — perguntou, com aquele tom que não era exatamente uma pergunta.
Eu assenti, sentindo o peso do olhar dela.
— Não deixe que o barulho te engula. As críticas, os elogios, as expectativas. Escreva porque você precisa, não porque eles querem.
Eu não soube o que responder. Era como se ela tivesse visto através de mim, como se soubesse que eu já estava me afogando no barulho antes mesmo de ele começar. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, outra pessoa se aproximou, e ela se afastou com um aceno discreto.
O resto da noite passou rápido. Assinei mais livros, respondi perguntas que mal lembro, sorri para fotos que provavelmente saíram horríveis. Mas, em algum canto da minha mente, as palavras de Valentina ecoavam. E, em outro canto, uma outra presença me incomodava. Uma mulher que eu não tinha notado antes, mas que agora parecia impossível ignorar.
Ela estava no fundo da livraria, perto das prateleiras de poesia. Alta, com cabelos longos e negros, e um olhar que parecia cortar o ar. Vestia um vestido vermelho que contrastava com a luz suave do ambiente, e seus lábios curvados em um meio-sorriso pareciam esconder algo. Eu não sabia quem ela era, mas senti um arrepio quando nossos olhos se encontraram. Era como se ela soubesse algo sobre mim que eu mesma desconhecia.
— Quem é aquela? — perguntei a Douglas, quando ele passou por mim com uma bandeja de copos vazios.
Ele olhou na direção que eu indiquei, e algo em seu rosto mudou. Não era medo, mas uma espécie de cautela.
— Isadora Vellani — ele disse, baixo. — Crítica literária. Dona da *Verso Livre*, aquela revista online. Não é alguém que você quer por perto, Clara.
Eu quis perguntar por quê, mas algo na voz dele me fez engolir a pergunta. Em vez disso, olhei para Isadora novamente. Ela estava conversando com um homem que eu não reconheci, mas seus olhos voltaram para mim. E, por um segundo, senti que ela não estava apenas me olhando. Ela estava me estudando.
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Quando o evento terminou, a livraria estava quase vazia. Mariana me parabenizou, dizendo que o lançamento tinha sido um sucesso. Eu não sabia se acreditava nela, mas agradeci mesmo assim. Douglas estava arrumando as cadeiras, e eu me aproximei, sentindo a necessidade de dizer algo, qualquer coisa, para não me afogar nos meus próprios pensamentos.
— Você já sentiu que algo grande tá vindo, mas não sabe se é bom ou ruim? — perguntei, sem olhar diretamente para ele.
Ele parou, com uma cadeira na mão, e me olhou de um jeito que fez meu coração apertar.
— Todo dia, Clara. Mas você já passou por coisas piores. E tá aqui.
Eu sorri, mesmo que o sorriso doesse. Ele tinha razão, de algum jeito. Eu estava aqui. Com um livro publicado, com pessoas que leram minhas palavras, com uma noite que, apesar de tudo, não tinha sido um desastre. Mas, enquanto saía da livraria, com o vento frio de São Paulo batendo no rosto, eu não conseguia afastar a sensação de que algo estava começando. Algo que eu não podia controlar.
E, no fundo da minha mente, as palavras de Hemingway, que eu tinha lido tantas vezes, ecoavam como um aviso: *“O mundo quebra todos, e depois, alguns se tornam mais fortes nos lugares quebrados.”*
Eu só esperava que, quando o mundo tentasse me quebrar, eu encontrasse força para me reconstruir.
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Atualizado até capítulo 30
Comments
Anny
Não costumo LER obras em andamento!(POIS tive duas decepções; uma delas; o livro foi retirado da plataforma faltando os dois últimos capítulos; na outra a autora não deu sequência na HISTÓRIA infelizmente e detesto COISAS inacabadas!) Mais fui completamente conquistada pelo primeiro parágrafo do seu livro ♡ e embora a sinopse me remeta ao clássico "O diabo veste Prada" Rsrs:)
Estarei aguardando ansiosamente a conclusão do mesmo. Boa sorte! Autor
2025-08-28
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