*Clara Monteiro*
A luz do celular piscava na mesinha de centro, como um farol insistente que eu não queria seguir. Era quase meio-dia, e eu ainda estava no mesmo lugar onde tinha passado a manhã: encolhida no sofá, com uma xícara de café frio na mão e o caderno aberto, mas vazio. As palavras de Valentina ainda ecoavam na minha cabeça, como um refrão que eu não conseguia esquecer. *“Você precisa se ouvir primeiro.”* Era mais fácil falar do que fazer. Ouvir a mim mesma significava enfrentar o barulho interno, aquele que gritava que eu não era suficiente, que o sucesso do lançamento era só um golpe de sorte, que em breve todo mundo descobriria que eu era uma fraude.
O celular vibrou de novo, e eu finalmente peguei o aparelho. Era uma notificação de e-mail, da minha editora, Mariana. O assunto dizia: *“Primeira crítica do livro!”* Meu coração deu um salto, meio esperança, meio pavor. Cliquei no e-mail, com os dedos tremendo, e li a mensagem rápida de Mariana: *“Clara, saiu a primeira crítica na Verso Livre! É um começo, e você está no radar. Parabéns!”* Havia um link para o site da revista, e eu hesitei antes de clicar. *Verso Livre*. O nome me trouxe de volta à noite do lançamento, ao olhar cortante de Isadora Vellani, a mulher que Douglas tinha avisado para eu evitar.
Respirei fundo e abri o link. A página carregou com uma foto minha, tirada no lançamento, com um sorriso que parecia mais nervoso do que eu lembrava. O título da crítica era: *“A Pele das Coisas Que Não Disse: Um Grito Cru, Mas Ainda Sem Forma”*. Meu estômago revirou. Li as primeiras linhas, com a voz de Isadora ecoando na minha cabeça, mesmo sem nunca ter ouvido ela falar.
> *Clara Monteiro estreia com uma voz que não teme se expor, mas que ainda tropeça na própria vulnerabilidade. Há talento em ‘A Pele das Coisas Que Não Disse’, mas ele é ofuscado por uma escrita que parece mais confessional do que literária. Monteiro quer nos fazer sentir sua dor, mas às vezes esquece de nos dar um motivo para isso.*
As palavras me acertaram como um soco. Não era uma crítica ruim, não de verdade, mas cada elogio vinha com uma faca. *Confessional demais. Sem forma. Sem motivo.* Eu continuei lendo, esperando que em algum momento ela dissesse algo que não doesse, mas a crítica só ficava mais afiada. Isadora terminava com uma frase que parecia escrita só para mim: *“Monteiro tem potencial, mas precisará aprender que a dor, sozinha, não faz uma história.”*
Fechei o celular e joguei-o no sofá, como se ele pudesse me queimar. Meu peito estava apertado, e a vontade de abrir outra garrafa de vinho era quase insuportável. Eu sabia que não deveria levar tão a sério. Valentina tinha me avisado sobre o barulho, sobre as críticas que tentariam me engolir. Mas saber e sentir eram coisas diferentes. Cada palavra de Isadora parecia cavar um buraco que eu já conhecia, um buraco onde eu guardava todas as vezes que me disseram que eu não era suficiente.
Levantei-me, tentando afastar a sensação, e caminhei até a janela. A rua lá fora estava viva, com o barulho de São Paulo que nunca para. Carros buzinando, pessoas gritando, o cheiro de fumaça e café misturado no ar. Eu queria me perder naquele caos, queria ser qualquer uma daquelas pessoas que passavam sem carregar o peso de um livro, de uma crítica, de uma vida exposta em páginas. Mas eu não era. Eu era Clara Monteiro, a escritora que, segundo Isadora Vellani, não sabia transformar dor em história.
O celular vibrou de novo, e eu quase o ignorei. Mas era uma mensagem de Valentina. *“Vi a crítica. Não deixa isso te derrubar. Vamos conversar? Tô no café da esquina da livraria.”* Eu pisquei, surpresa. Como ela sabia da crítica? E por que estava tão perto? Parte de mim queria ficar ali, chafurdando na autocomiseração, mas outra parte — a parte que ainda acreditava nas palavras dela — me fez pegar o casaco e sair.
O café estava mais cheio do que na véspera, com o murmúrio de conversas e o som de uma máquina de espresso trabalhando sem parar. Valentina estava na mesma mesa perto da janela, com um laptop aberto e uma xícara de café que parecia intocada. Ela levantou os olhos quando me viu, e seu sorriso era ao mesmo tempo acolhedor e firme, como se ela soubesse exatamente o que eu estava sentindo.
— Você parece que acabou de ser atropelada — ela disse, enquanto eu me sentava. — A crítica, né?
Eu assenti, sem saber por onde começar. Minha voz saiu mais fraca do que eu queria.
— É como se ela tivesse lido minha alma e decidido que não valia a pena.
Valentina riu, mas não era uma risada cruel. Era como se ela estivesse rindo da situação, não de mim.
— Isadora Vellani faz isso com todo mundo. É o trabalho dela. Ela pega o que você faz, corta em pedaços e depois finge que tá te fazendo um favor ao apontar os defeitos. — Ela fez uma pausa, tomando um gole do café. — Mas você não pode deixar ela decidir quem você é.
Eu queria acreditar, mas a crítica ainda queimava. Olhei para a xícara na minha frente, o café preto que a garçonete tinha trazido sem que eu pedisse, e tentei encontrar palavras.
— Ela disse que minha escrita é confessional demais. Que falta forma. Que minha dor não é suficiente.
Valentina inclinou a cabeça, me estudando.
— E você acha que ela tá certa?
Eu hesitei. Parte de mim queria dizer que sim, que Isadora tinha colocado em palavras o que eu sempre temi: que meu livro era só um desabafo, não literatura. Mas outra parte, menor, mais teimosa, queria gritar que ela estava errada.
— Não sei — admiti, por fim. — Eu escrevi o que sentia. Não sei se isso é suficiente, mas foi tudo o que eu tinha.
Valentina se inclinou para frente, com os olhos fixos nos meus.
— Isso é mais do que suficiente, Clara. Escrever o que você sente é o que faz as pessoas se conectarem. Isadora pode dizer o que quiser, mas ela não viveu o que você viveu. Ela não sabe o que custou pra você colocar essas palavras no papel. — Ela fez uma pausa, e seu tom ficou mais suave. — E, olha, eu também já fui destruída por críticas. Meu primeiro livro foi chamado de “melodramático” e “exagerado”. Doeu pra caramba. Mas eu continuei escrevendo. E você vai continuar também.
Eu senti um aperto no peito, mas dessa vez não era só medo. Era algo mais quente, algo que parecia gratidão. Valentina não precisava estar ali, não precisava gastar seu tempo comigo, uma escritora iniciante que mal sabia o que estava fazendo. Mas ela estava, e isso significava mais do que eu conseguia expressar.
— Por que você tá fazendo isso? — perguntei, antes que pudesse me conter. — Quer dizer, você é Valentina Reyes. Tem livros em todas as livrarias, fãs no mundo todo. Por que tá aqui, tomando café com alguém como eu?
Ela sorriu, mas havia uma sombra nos olhos dela, algo que eu não conseguia decifrar.
— Porque eu já fui você, Clara. E porque alguém me ajudou quando eu precisei. Agora é a minha vez. — Ela fez uma pausa, e então acrescentou, com um tom mais leve: — Além disso, eu gosto de você. Você tem algo especial. E eu não digo isso pra qualquer um.
Eu corei, sem saber como responder. Antes que eu pudesse dizer algo, o celular dela vibrou novamente, e ela olhou a tela com uma expressão que misturava irritação e cautela.
— Desculpa, é trabalho de novo — ela disse, levantando-se. — Fica aqui, pede outro café. A gente se fala mais tarde, tá?
Eu assenti, vendo-a se afastar com o celular no ouvido. Havia algo na forma como ela falava, na rapidez com que mudava de assunto, que me deixava inquieta. Mas eu não tinha tempo de pensar nisso, porque meu próprio celular vibrou com outra notificação. Dessa vez, era uma mensagem de um número desconhecido.
*“Parabéns pelo lançamento, Clara. Adorei seu livro. Que tal conversarmos sobre ele? Isadora Vellani.”*
Meu coração parou por um segundo. Isadora. A mulher que tinha dissecado meu livro como se fosse uma autópsia agora queria conversar? Minha primeira reação foi ignorar, apagar a mensagem e fingir que nunca tinha visto. Mas algo em mim — curiosidade, masoquismo, ou talvez só burrice — me fez hesitar. E se ela quisesse se explicar? E se fosse uma chance de entender o que ela quis dizer?
Antes que eu pudesse responder, a porta do café se abriu, e Douglas entrou. Ele estava com a jaqueta de sempre, uma de couro gasta que parecia ter mil histórias, e o cabelo meio bagunçado pelo vento. Ele me viu e veio direto para a mesa, com aquele jeito calmo que parecia desacelerar o mundo.
— Pensei que te encontraria aqui — ele disse, sentando-se sem pedir permissão. — Como tá a cabeça depois da crítica?
Eu suspirei, surpresa que ele já soubesse.
— Você viu?
— A livraria é um ninho de fofoca, Clara. Todo mundo tá falando da Verso Livre hoje. — Ele fez uma pausa, me olhando com cuidado. — Não deixa isso te comer viva, tá? Isadora é assim. Ela gosta de cutucar até sangrar.
Eu assenti, mas a mensagem dela ainda queimava no meu celular. Mostrei a tela para ele, sem dizer nada. Ele leu, e seu rosto endureceu, como se tivesse visto algo perigoso.
— Não responde isso — ele disse, com uma firmeza que eu não estava acostumada a ouvir. — Ela não tá interessada no seu livro. Ela tá interessada em você. E não do jeito bom.
Eu franzi a testa, confusa.
— O que você quer dizer?
Ele hesitou, como se estivesse pesando o quanto podia me contar.
— Isadora tem uma história com escritores novos. Ela se aproxima, faz você se sentir especial, e depois... — Ele parou, como se as palavras fossem pesadas demais. — Só confia em mim, Clara. Fica longe dela.
Eu quis perguntar mais, mas algo na voz dele me fez engolir as palavras. Em vez disso, guardei o celular no bolso, tentando ignorar a curiosidade que ainda pulsava em mim. Douglas mudou de assunto, falando sobre um cliente que tinha tentado devolver um livro porque “não gostou do final”, e eu ri, grata pela distração. Mas, no fundo, a mensagem de Isadora ainda estava lá, como uma pedra no sapato, pequena, mas impossível de ignorar.
Quando saímos do café, o céu de São Paulo estava escurecendo, com nuvens pesadas prometendo chuva. Douglas me acompanhou até a esquina, e antes de se despedir, ele segurou meu braço, com uma leveza que contrastava com a força dos seus olhos.
— Você é mais forte do que pensa, Clara. Não esquece disso.
Eu sorri, mesmo que o sorriso doesse. Ele tinha razão, talvez. Mas enquanto caminhava de volta para casa, com o vento frio batendo no rosto, eu não conseguia afastar a sensação de que algo estava vindo. Algo que eu não podia controlar. E, no fundo da minha mente, as palavras de Clarice Lispector, que eu tinha lido tantas vezes, ecoavam como um aviso: *“Viver é uma coisa tão séria, tão grave, que às vezes não sei o que fazer comigo mesma.”*
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Atualizado até capítulo 30
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