Capítulo 5: O Jogo Começa**

*Clara Monteiro*

A semana passou como um borrão, cada dia um pouco mais pesado que o anterior. O convite de Isadora Vellani ficou na minha cabeça como uma música que você não quer ouvir, mas não consegue parar de cantar. Eu sabia que ir ao evento dela era como entrar na toca de uma serpente, mas a ideia de ficar parada, de deixar que ela escrevesse a história por mim, era pior. Eu queria olhar nos olhos dela e entender o que ela queria. Ou talvez só quisesse provar, para mim mesma, que eu podia sobreviver a ela.

Era sexta-feira, e o espelho do meu quarto refletia uma versão de mim que eu mal reconhecia. O vestido azul-escuro que escolhi era simples, mas elegante, com mangas compridas que escondiam as cicatrizes invisíveis que eu carregava. Passei um batom vermelho, mais por coragem do que por vaidade, e penteei o cabelo até ele parecer menos caótico. Mas, por dentro, eu era um terremoto. Cada batida do meu coração parecia dizer: *Você não está pronta para isso.*

Douglas me encontrou na porta do prédio, como prometido. Ele estava diferente, com uma camisa preta bem cortada e uma calça jeans que parecia nova. O cabelo ainda estava bagunçado, mas de um jeito que parecia intencional, e seus olhos tinham aquela calma que sempre me ancorava. Ele me olhou de cima a baixo, com um meio-sorriso que fez meu estômago dar um salto.

— Tá bonita — ele disse, com uma simplicidade que me fez corar. — Pronta pra enfrentar o dragão?

Eu ri, nervosa, e balancei a cabeça.

— Não sei se é um dragão ou uma armadilha. Mas, com você aqui, acho que consigo.

Ele assentiu, com uma seriedade que contrastava com o sorriso de antes.

— Se ela tentar qualquer coisa, Clara, eu te puxo de volta. Prometo.

Nós pegamos um táxi até o Jardins, onde o hotel ficava. As ruas de São Paulo estavam iluminadas, com o brilho artificial dos postes e vitrines misturado ao caos de sempre. O trânsito estava lento, como se a cidade quisesse me dar mais tempo para mudar de ideia. Mas eu não podia. Não agora.

O hotel era um prédio de vidro e mármore, com um letreiro discreto que gritava dinheiro. O evento, *Novas Vozes, Velhas Verdades*, acontecia em um salão no último andar, com janelas que mostravam a cidade como uma pintura viva. Quando entramos, o ar estava cheio de vozes, risadas e o tilintar de taças. Havia escritores, editores, jornalistas, todos com aquele ar de quem sabia exatamente onde estava. Eu me senti como uma impostora, segurando a bolsa com mais força do que precisava.

Douglas ficou ao meu lado, como uma sombra protetora, enquanto eu tentava absorver tudo. A decoração era sofisticada, com mesas cobertas de toalhas brancas e arranjos de flores que pareciam custar mais do que meu aluguel. Havia uma mesa com exemplares de livros, incluindo o meu, o que me pegou de surpresa. Ver *A Pele das Coisas Que Não Disse* ali, entre outros títulos, me deu uma pontada de orgulho misturada com medo.

Foi então que a vi. Isadora Vellani estava no centro do salão, como se fosse o sol e todos os outros, planetas girando ao seu redor. Ela usava um vestido verde-esmeralda que parecia brilhar sob a luz, e seu cabelo negro caía em ondas perfeitas. Seus olhos percorreram a sala, e quando encontraram os meus, um sorriso curvou seus lábios. Era um sorriso que parecia ao mesmo tempo acolhedor e perigoso, como o de alguém que sabe exatamente o que está fazendo.

— Clara Monteiro — ela disse, aproximando-se com uma taça de champanhe na mão. A voz dela era suave, mas cortante, como uma lâmina embrulhada em veludo. — Que prazer te ver aqui.

Eu engoli em seco, sentindo o peso do olhar dela. Era como se ela pudesse ver cada insegurança, cada dúvida que eu tentava esconder.

— Obrigada pelo convite — consegui dizer, com a voz mais firme do que esperava. — Não achei que você... bem, que você se interessaria pelo meu livro.

Ela riu, um som leve que não combinava com a intensidade dos olhos.

— Oh, Clara, eu me interesso por talento. E você tem isso, mesmo que ainda esteja... digamos, encontrando seu caminho. — Ela fez uma pausa, tomando um gole de champanhe. — Sua escrita é crua, visceral. Mas precisa de polimento. Eu posso ajudar com isso.

Eu senti um arrepio, não sei se de excitação ou de medo. Antes que eu pudesse responder, Douglas se aproximou, com uma postura que era ao mesmo tempo casual e alerta.

— Clara, tudo bem? — ele perguntou, olhando diretamente para Isadora.

Ela o mediu com um olhar, como se estivesse avaliando se ele era uma ameaça ou apenas um detalhe.

— E você deve ser... — Ela deixou a frase no ar, esperando que ele preenchesse o espaço.

— Douglas — ele disse, seco. — Amigo da Clara.

Isadora sorriu, mas havia algo frio naquele sorriso.

— Que encantador. Sempre bom ter amigos leais, não é, Clara?

Eu assenti, sem saber o que dizer. A tensão entre eles era palpável, como uma corrente elétrica que eu não conseguia ignorar. Antes que a conversa pudesse continuar, uma mulher se aproximou, chamando Isadora para falar com um grupo de jornalistas. Ela se despediu com um aceno e uma promessa de voltar para “conversar mais”.

— Cuidado com ela — Douglas murmurou, assim que ela se afastou. — Ela tá te testando.

Eu sabia que ele estava certo, mas algo na forma como Isadora falava, como se ela visse algo em mim que eu mesma não via, me fazia querer ouvir mais. Era perigoso, eu sabia, mas também era tentador.

O resto da noite passou em um borrão de rostos, conversas e taças de champanhe que eu aceitei sem pensar. Falei com outros escritores, respondi perguntas sobre meu livro, sorri para fotos que provavelmente saíram horríveis. Mas, em cada momento, eu sentia o olhar de Isadora, mesmo quando ela estava do outro lado do salão. Era como se ela estivesse me estudando, esperando por algo.

Perto do fim da noite, ela me encontrou novamente, dessa vez sozinha, enquanto eu pegava um copo d’água na mesa de bebidas.

— Clara, posso te dar um conselho? — ela perguntou, com aquele tom que parecia mais uma ordem do que uma sugestão.

Eu assenti, sentindo o coração acelerar.

— Não se esconda — ela disse, com os olhos fixos nos meus. — Seu livro é honesto, mas você... você ainda tá se segurando. Se quer ser grande, precisa se arriscar. Mostrar quem você é, sem medo.

As palavras dela eram como um eco das de Valentina, mas com um peso diferente, mais afiado. Eu quis responder, mas antes que pudesse, ela entregou um cartão com o logo da *Verso Livre*.

— Me liga. Podemos trabalhar juntas. Transformar esse talento bruto em algo... extraordinário.

Ela se afastou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, deixando o cartão na minha mão como uma granada prestes a explodir. Quando Douglas voltou, ele viu o cartão e franziu a testa.

— O que ela queria? — perguntou, com a voz tensa.

Eu hesitei, mas mostrei o cartão.

— Ela disse que quer trabalhar comigo. Ajudar com minha escrita.

Douglas balançou a cabeça, com uma expressão que misturava preocupação e raiva.

— Clara, ela não quer te ajudar. Ela quer te controlar.

Eu quis argumentar, dizer que talvez ele estivesse errado, mas as palavras não vieram. Em vez disso, guardei o cartão no bolso, sentindo o peso dele como se fosse uma promessa — ou uma ameaça. Enquanto saíamos do hotel, com a cidade brilhando lá fora, eu senti uma mistura de medo e excitação. Isadora era perigosa, eu sabia. Mas talvez, só talvez, ela também fosse a chave para algo maior.

E, no fundo da minha mente, uma frase de Virginia Woolf, que eu tinha lido em uma noite de insônia, ecoava como um presságio: *“Não há portão, não há tranca, não há ferrolho que você possa impor à liberdade da minha mente.”* Eu só esperava que, quando a liberdade chegasse, eu soubesse o que fazer com ela.

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