*Clara Monteiro*
A chuva começou a cair quando cheguei ao meu apartamento, um chuvisco fino que em São Paulo sempre parece o prenúncio de algo maior. O ar estava pesado, carregado de umidade e do cheiro de asfalto molhado que subia pelas janelas abertas. Eu joguei o casaco no sofá e me sentei, com o celular ainda na mão, a mensagem de Isadora Vellani queimando na tela como uma brasa. *“Parabéns pelo lançamento, Clara. Adorei seu livro. Que tal conversarmos sobre ele? Isadora Vellani.”* As palavras eram simples, quase amigáveis, mas o aviso de Douglas ecoava na minha cabeça: *“Fica longe dela.”*
Eu queria apagar a mensagem, fingir que nunca tinha visto, mas algo em mim não deixava. Era como se Isadora tivesse deixado uma isca, e eu, mesmo sabendo do anzol, quisesse mordê-la. Talvez fosse curiosidade, talvez fosse o desejo de provar que ela estava errada sobre mim, sobre meu livro. Ou talvez fosse só a parte de mim que sempre corria atrás da dor, como se ela fosse a única coisa que me fazia sentir viva. Peguei a garrafa de vinho na cozinha — a mesma de ontem, com menos da metade agora — e enchi uma taça. O líquido vermelho parecia mais escuro sob a luz fraca do abajur, como se carregasse segredos que eu ainda não conhecia.
Sentei-me no chão, com as costas contra a parede, e reli a crítica dela no site da *Verso Livre*. Cada frase era como uma agulha, precisa e dolorosa. *“Confessional demais. Sem forma. Dor sem motivo.”* Eu sabia que não deveria levar tão a sério, que Valentina tinha me avisado sobre o barulho, mas as palavras de Isadora se encaixavam perfeitamente nos buracos que eu já carregava. E se ela estivesse certa? E se meu livro fosse só um grito, como ela disse, sem nada que justificasse sua existência?
O celular vibrou de novo, e meu coração deu um salto. Era outra mensagem, dessa vez de um número diferente, mas com o mesmo tom educado e afiado. *“Clara, esqueci de mencionar: estou organizando um evento literário na próxima sexta. Gostaria de te convidar. Seria uma chance de discutirmos seu trabalho. Isadora.”* Havia um anexo com um convite formal, com o logo da *Verso Livre* e detalhes sobre um coquetel em um hotel chique no Jardins. O nome do evento era *“Novas Vozes, Velhas Verdades”*, e meu nome estava listado entre os convidados, ao lado de outros escritores que eu nunca tinha ouvido falar.
Eu não sabia o que sentir. Parte de mim queria acreditar que era uma oportunidade, uma chance de mostrar que eu era mais do que a crítica dela dizia. Mas outra parte, a parte que confiava em Douglas, gritava para eu jogar o celular fora e nunca responder. Bebi um gole longo de vinho, sentindo o calor descer pela garganta, e tentei pensar com clareza. Por que Isadora, que tinha dissecado meu livro com tanto desprezo, agora queria me convidar para um evento? O que ela ganhava com isso?
Decidi mandar uma mensagem para Valentina. Ela parecia saber mais sobre o mundo literário do que eu jamais saberia, e talvez pudesse me ajudar a entender o que estava acontecendo. Digitei rápido, antes que o medo me fizesse mudar de ideia: *“Valentina, recebi um convite da Isadora Vellani pra um evento. O que acha? Devo ir?”* Enviei e esperei, olhando para a tela como se ela pudesse me salvar.
Enquanto esperava, abri meu caderno, aquele com a capa de couro gasta que carregava anos de pensamentos soltos. Escrevi uma frase, quase sem pensar: *“As palavras dos outros são espelhos tortuosos — mostram o que querem, não o que você é.”* Era verdade, mas não ajudava. Eu ainda sentia o peso da crítica de Isadora, ainda ouvia a voz de Douglas me dizendo para ficar longe. E, no fundo, ainda queria saber o que ela viu em mim, ou no meu livro, que a fez mandar aquela mensagem.
Valentina respondeu minutos depois, com uma mensagem curta: *“Cuidado com Isadora. Ela não faz nada por acaso. Me liga.”* O tom era sério, diferente da leveza dela no café. Disquei o número dela, e ela atendeu no segundo toque.
— Clara, que história é essa de convite? — A voz dela era firme, mas havia uma preocupação genuína ali.
Eu expliquei tudo: a mensagem, o evento, o fato de que meu nome estava no convite como se eu fosse alguém importante. Enquanto falava, percebi o quanto parecia ridículo. Por que Isadora Vellani, uma crítica influente, dona de uma revista que ditava tendências, se importaria comigo?
— Escuta — Valentina disse, depois de me ouvir. — Isadora não é só uma crítica. Ela é uma jogadora. Ela gosta de se aproximar de escritores novos, especialmente os que têm potencial, e depois... bem, ela gosta de moldar a narrativa. Seja com elogios, seja com escândalos. Você é nova no jogo, Clara. Não sabe como ela funciona.
— Mas por que ela me convidaria? — perguntei, sentindo a voz tremer. — Ela disse que adorou meu livro, mas a crítica dela...
— É exatamente por isso — Valentina interrompeu. — Ela viu algo em você, algo que pode usar. Talvez pra te levantar, talvez pra te derrubar. Com Isadora, nunca é só sobre o livro. É sobre poder.
Eu fiquei em silêncio, tentando processar. O vinho na taça parecia me chamar, mas eu resisti, apertando o celular com mais força.
— Então o que eu faço? Recuso?
Valentina suspirou, e eu podia imaginar o rosto dela, com aquela mistura de empatia e impaciência.
— Não é tão simples. Recusar pode parecer que você tá com medo, e ela vai usar isso contra você. Mas ir... você precisa estar preparada. Isadora não é de jogar limpo. Se for, vá com os olhos abertos. E, Clara, não vá sozinha.
Eu agradeci, prometi pensar, e desliguei. Mas a ideia de ir ao evento já estava fincada na minha cabeça, como uma semente que eu não conseguia arrancar. Era loucura, eu sabia. Douglas tinha me avisado, Valentina tinha me avisado, mas algo em mim queria enfrentar Isadora, queria olhar nos olhos dela e perguntar por que ela tinha escrito aquelas coisas. Ou talvez eu só quisesse provar que podia sobreviver a ela.
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Naquela tarde, decidi ir à livraria. Não porque precisava, mas porque era o único lugar onde eu conseguia pensar direito. O chuvisco tinha virado uma chuva forte, e eu caminhei rápido, com o capuz do casaco cobrindo o cabelo. Quando entrei, o cheiro familiar de papel e café me envolveu, como um abraço que eu não merecia, mas precisava. Douglas estava lá, como sempre, arrumando uma prateleira de romances. Ele me viu e franziu a testa, como se pudesse sentir o peso que eu carregava.
— Tá tudo bem? — ele perguntou, com aquele tom que parecia enxergar através de mim.
Eu hesitei, mas acabei contando tudo: a crítica, a mensagem, o convite. Ele ouviu em silêncio, com os braços cruzados, e quando terminei, seu rosto estava mais sério do que o normal.
— Clara, eu te disse pra ficar longe dela — ele disse, baixo, como se tivesse medo de que alguém ouvisse. — Isadora não é só uma crítica. Ela já destruiu carreiras. Escritores que estavam começando, como você, e que nunca mais conseguiram publicar.
Eu senti um frio na espinha, mas também uma pontada de raiva. Não dele, mas de mim mesma, por estar tão dividida.
— E se eu não for? — perguntei. — E se eu simplesmente ignorar? Ela vai escrever algo pior, não vai? Vai dizer que sou covarde, que não aguento o jogo.
Douglas suspirou, passando a mão pelo cabelo.
— Talvez. Mas às vezes é melhor ser chamada de covarde do que entrar num jogo que você não sabe jogar.
Eu queria acreditar nele, queria me agarrar à segurança que a voz dele oferecia. Mas a ideia de ficar parada, de deixar Isadora controlar a narrativa, como Valentina tinha dito, era insuportável. Eu precisava fazer algo, mesmo que fosse um erro.
— Eu vou — disse, por fim, com uma firmeza que surpreendeu até a mim mesma. — Mas não vou sozinha. Você vem comigo?
Douglas me olhou, e por um momento, achei que ele ia recusar. Mas então ele assentiu, com um meio-sorriso que parecia dizer “você vai me dar trabalho”.
— Tá bom. Mas se ela tentar alguma coisa, eu não vou ficar quieto.
Eu ri, aliviada, e pela primeira vez naquele dia, senti que podia respirar. Douglas era assim: uma âncora, mesmo quando eu não sabia que precisava de uma. Enquanto saíamos da livraria, com a chuva ainda caindo lá fora, eu senti uma mistura de medo e determinação. Isadora podia ser perigosa, mas eu não era tão frágil quanto pensava. Ou pelo menos, era o que eu queria acreditar.
E, no fundo da minha mente, uma frase de Sylvia Plath, que eu tinha lido em uma madrugada qualquer, ecoava como um desafio: *“Eu não sou cruel, apenas verdadeira — sou o olho do furacão, a calma no centro da tempestade.”* Eu só esperava que, quando a tempestade chegasse, eu pudesse encontrar essa calma.
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Atualizado até capítulo 30
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