Capítulo 2: O Silêncio entre as Linhas**

*Clara Monteiro*

O vinho descia diferente naquela manhã. Talvez fosse porque eu não tinha dormido, ou porque a garrafa estava aberta há dois dias, esquecida na bancada da cozinha. Ou talvez fosse só eu, tentando encontrar algo novo em um hábito velho. Eu estava sentada no chão do meu apartamento, com as costas contra o sofá e o caderno aberto no colo. A caneta pairava sobre a página, mas as palavras não vinham. Não como antes. Escrever *A Pele das Coisas Que Não Disse* tinha sido como sangrar; agora, parecia que eu estava seca.

O lançamento da noite anterior ainda ecoava na minha cabeça, como um sonho que você tenta segurar, mas que escapa pelos dedos. As vozes dos leitores, o aperto de mão firme de Valentina Reyes, o olhar cortante de Isadora Vellani. E Douglas, sempre Douglas, com aquele jeito de me enxergar mesmo quando eu queria me esconder. Eu não sabia o que fazer com tudo isso. Era como se o mundo tivesse aberto uma porta, mas eu ainda estivesse parada no limiar, com medo de atravessar.

Levantei os olhos para a janela. O céu de São Paulo estava mais claro hoje, mas ainda carregava aquele peso úmido, como se a cidade nunca se livrasse completamente da chuva. O relógio marcava 9h12. Eu precisava sair, precisava respirar, precisava lembrar que a vida continuava mesmo depois de uma noite que parecia o fim de tudo. Mas o caderno me segurava ali, como um amante ciumento. Escrevi uma frase, só para não me sentir tão inútil: *“As palavras são frágeis até você dar um motivo para elas serem fortes.”* Parecia algo que Valentina diria, com aquela confiança que eu nunca tive.

Guardei o caderno e decidi ir à livraria. Não porque precisava, mas porque era o único lugar onde eu me sentia um pouco menos perdida. Peguei um casaco, porque o vento de São Paulo sempre encontra um jeito de te fazer sentir frio, e saí. As ruas estavam cheias, como sempre, com o barulho de motores, conversas apressadas e o cheiro de café vindo de algum lugar. Caminhei devagar, deixando a cidade me engolir. Às vezes, eu me perguntava se São Paulo era uma cidade ou um monstro que devorava todo mundo que ousasse viver nela.

Quando cheguei à livraria, o letreiro ainda estava lá, com meu nome em letras grandes. Alguém tinha esquecido de tirá-lo, ou talvez fosse intencional, uma forma de prolongar o que tinha acontecido na noite anterior. Entrei, e o cheiro de papel e madeira polida me envolveu como um abraço. Era o mesmo cheiro de sempre, mas hoje parecia mais pesado, como se carregasse o peso do que eu tinha feito. Minha pilha de livros ainda estava na mesa do canto, agora um pouco menor, com alguns exemplares vendidos. Ver isso me deu uma pontada de orgulho, misturada com medo. E se fosse só sorte? E se ninguém mais comprasse?

Douglas estava atrás do balcão, organizando uma pilha de recibos. Ele ergueu os olhos quando me viu, e um sorriso pequeno apareceu em seu rosto. Era o tipo de sorriso que não precisava de explicação, que dizia “eu sabia que você ia aparecer”.

— Não conseguiu ficar longe, né? — ele disse, com aquele tom que misturava provocação e carinho.

Eu dei de ombros, tentando parecer mais leve do que me sentia.

— É o único lugar onde eu não me sinto uma impostora.

Ele riu, baixo, e apontou para a mesa com meus livros.

— Impressora? Você? Clara, metade das pessoas ontem saiu daqui falando do seu livro como se fosse a Bíblia.

Eu corei, sem querer. Não sabia lidar com elogios, nunca soube. Eles sempre pareciam uma armadilha, como se, ao aceitá-los, eu estivesse me comprometendo a ser algo que não era. Sentei em uma das poltronas perto da seção de poesia, peguei um exemplar do meu livro e folheei, como se fosse a primeira vez. As palavras ali eram minhas, mas pareciam pertencer a outra pessoa. Alguém mais corajosa, alguém que não tremia ao pensar no que os outros diriam.

— Você já leu? — perguntei, olhando para Douglas.

Ele parou o que estava fazendo e se apoiou no balcão, me observando com aquele olhar que parecia enxergar além da superfície.

— Li. Duas vezes, na verdade. — Ele fez uma pausa, como se escolhesse as palavras com cuidado. — É como ouvir você falar, mas sem o filtro. É... cru. Como se você tivesse arrancado um pedaço de si mesma e colocado naquelas páginas.

Eu senti um nó na garganta. Não sabia se era por ele ter lido, por ele ter entendido, ou por ele ter dito isso com uma calma que me fazia querer acreditar. Desviei o olhar, fingindo interesse na capa do livro.

— E o que achou? Sério, sem me bajular.

Ele cruzou os braços, ainda me olhando.

— Acho que você é mais forte do que pensa. E acho que esse livro vai fazer muita gente se sentir menos sozinha. Mas também acho que você tá com medo do que vem depois.

Ele estava certo, claro. Douglas sempre estava. Mas antes que eu pudesse responder, a porta da livraria se abriu, e uma rajada de vento frio entrou junto com uma figura que eu não esperava ver tão cedo. Valentina Reyes. Ela estava diferente hoje, mais casual, com uma jaqueta de couro preta e jeans, mas ainda carregava aquela aura de quem sabia exatamente o que estava fazendo. Seus olhos encontraram os meus quase imediatamente, e ela sorriu, um sorriso que parecia dizer “te achei”.

— Clara! — Ela se aproximou, com uma energia que contrastava com a minha hesitação. — Não achei que te encontraria aqui tão cedo. Ressaca do lançamento?

Eu ri, nervosa, e balancei a cabeça.

— Algo assim. Não dormi muito.

Ela se sentou na poltrona ao meu lado, sem cerimônia, como se fôssemos amigas de anos. Era estranho, mas também reconfortante. Havia algo nela que fazia você querer confiar, mesmo sem saber por quê.

— Normal — ela disse, cruzando as pernas. — O primeiro lançamento é sempre um terremoto. O meu, eu vomitei antes de subir no palco. Literalmente.

Eu ri de novo, dessa vez com mais leveza. Era difícil imaginar Valentina, com toda aquela confiança, vomitando de nervoso. Mas a confissão me fez sentir um pouco menos sozinha.

— Como você lida com isso? — perguntei, quase sem pensar. — O medo, as expectativas, as pessoas te olhando como se você tivesse que ser perfeita.

Ela inclinou a cabeça, como se estivesse pesando a resposta.

— Eu não lido. Eu finjo. E com o tempo, você aprende que ninguém espera perfeição. Eles querem verdade. E, pelo que li do seu livro, verdade é algo que você tem de sobra.

Eu senti meu rosto esquentar de novo. Era a segunda vez em menos de vinte e quatro horas que ela dizia algo sobre meu livro, e eu ainda não sabia como processar isso. Antes que eu pudesse responder, ela pegou o exemplar que eu segurava e folheou, parando em uma página aleatória.

— “Às vezes, o amor é só um eco de algo que você quis ouvir.” — Ela leu em voz alta, com um tom que dava às palavras um peso novo. — Isso é lindo, Clara. E doído. Você escreve como se estivesse costurando uma ferida.

Eu não soube o que dizer. Era como se ela tivesse visto dentro de mim, como se soubesse que cada linha daquele livro era uma tentativa de me manter inteira. Engoli em seco, tentando encontrar algo para dizer que não soasse patético.

— Às vezes, sinto que estou só gritando no escuro — admiti, quase em um sussurro. — E não sei se alguém tá ouvindo.

Valentina fechou o livro e me olhou, séria.

— Eles estão ouvindo. E vão continuar ouvindo, se você continuar escrevendo. Mas você precisa se ouvir primeiro. — Ela fez uma pausa, e então seu tom mudou, ficou mais leve. — Quer um café? Acho que a gente merece algo mais forte que esse chá de livraria.

Eu ri, e pela primeira vez naquele dia, senti algo próximo de leveza. Assenti, e ela se levantou, puxando-me com ela. Douglas nos observava do balcão, com um meio-sorriso que dizia que ele estava gostando do que via. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez, só talvez, eu pudesse sobreviver a isso.

---

O café na esquina da livraria era pequeno, com mesas de madeira gastas e um cheiro de espresso que se misturava ao barulho da rua. Valentina pediu um cappuccino, e eu, um café preto, porque era o que eu podia pagar. Sentamos perto da janela, onde podíamos ver as pessoas passando, cada uma carregando sua própria história. Eu me perguntei quantas delas já tinham sentido o que eu sentia — aquele medo de que tudo fosse desmoronar a qualquer momento.

— Então, me conta — Valentina disse, mexendo o cappuccino com uma colherzinha. — Como você começou a escrever? Não o livro, mas... antes. O que te fez pegar a caneta?

Eu hesitei. Não era uma pergunta que eu esperava, e responder significava cavar em lugares que eu preferia deixar enterrados. Mas havia algo na forma como ela perguntava, como se realmente quisesse saber, que me fez abrir a boca.

— Eu... sempre escrevi. Desde pequena. Era como conversar com alguém que não ia me julgar. Minha mãe... ela não era muito de ouvir. E meu pai, bem, ele foi embora quando eu tinha seis anos. Então, os cadernos viraram meus amigos. — Eu parei, sentindo o peso daquelas palavras. — Quando as coisas começaram a dar errado, tipo, namoros que não duravam, amigos que sumiam, o vinho virou uma muleta. Mas escrever... escrever era o que me mantinha viva.

Valentina ouviu em silêncio, com uma atenção que me fez sentir vista. Não era pena, nem curiosidade mórbida. Era como se ela entendesse, de um jeito que poucas pessoas entendiam.

— Meu primeiro livro foi assim — ela disse, depois de um gole de cappuccino. — Eu tinha acabado de sair de um relacionamento horrível, daqueles que te fazem duvidar de quem você é. Escrevi pra me lembrar que eu ainda existia. E, olha, Clara, você existe. E esse seu livro é a prova disso.

Eu senti um nó na garganta, mas dessa vez não era de medo. Era algo mais quente, algo que parecia esperança, mesmo que eu não quisesse admitir. Antes que eu pudesse responder, o celular dela vibrou na mesa. Ela olhou a tela, e por um segundo, seu rosto mudou — uma sombra passou pelos olhos dela, como se tivesse visto algo que não queria.

— Desculpa, preciso atender isso — ela disse, levantando-se. — Volto já.

Enquanto ela se afastava, falando baixo ao telefone, eu fiquei olhando pela janela. A rua estava mais cheia agora, com o sol tentando romper as nuvens. Mas algo me incomodava, uma sensação que eu não conseguia nomear. Talvez fosse o jeito como Valentina tinha falado do barulho, das expectativas. Ou talvez fosse a lembrança do olhar de Isadora na noite anterior, aquele olhar que parecia saber demais.

Quando Valentina voltou, ela parecia um pouco mais tensa, mas escondeu com um sorriso.

— Tudo bem? — perguntei, sem saber se queria mesmo a resposta.

— Tudo ótimo — ela disse, rápido demais. — Só umas coisas de trabalho. Então, o que você acha de me contar mais sobre esse seu próximo projeto? Porque, quer você queira ou não, você vai escrever outro livro.

Eu ri, surpresa com a mudança de assunto, mas grata por ela. Passamos o resto da manhã falando sobre escrita, sobre livros que amávamos, sobre o medo de não ser suficiente. E, por um momento, eu esqueci o peso que carregava. Mas, no fundo, eu sabia que ele não tinha ido embora. Ele estava só esperando, como uma sombra que nunca sai de perto.

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Comments

Anny

Anny

Dizem que uma andorinha só; não faz verão, mais com CERTEZA afasta a solidão. E como EH difícil ser pequeno AQUI; onde uma curtida e 1 comentário fazem tanta diferença e eu bem sei disso:) Por isso MESMO e com o seu aval e POR sua conta em risco Douglas Smith ♡ Estarei começando a LEITURA agora MESMOOOOOOO:) Você TEM um texto muito bonito e possuí uma veia poética e TANTO! Parabéns Guri /Rose/ESCREVE aí que EU leio DAQUI:) Afinal UMA boa e bem contada HISTÓRIA toca a alma.

2025-08-28

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