*Clara Monteiro*
As palavras sempre foram meu refúgio, mas também meu veneno. Elas me salvam quando o mundo aperta, quando o vazio da casa se torna tão grande que engole até o som do meu próprio respirar. Mas também me traem, escorregam pelas bordas da minha mente e caem em lugares que eu não ouso visitar. Escrever é como abrir uma veia: você nunca sabe quanto sangue vai perder até que a página esteja manchada.
Eu estava sentada na beirada da cama, com uma taça de vinho tinto quase vazia na mão, quando olhei para o relógio. 6h47 da manhã. O céu lá fora ainda carregava aquele cinza opressivo de São Paulo, como se a cidade inteira estivesse prendendo a respiração. Eu não dormi. Não de verdade. Passei a noite revisitando as frases do meu livro, *A Pele das Coisas Que Não Disse*, como quem relê uma carta de despedida. Era meu primeiro lançamento, hoje, às sete da noite, numa livraria no centro que eu conhecia como a palma da minha mão. Mas a ideia de estar lá, de pé, com olhos estranhos me encarando, fazia meu estômago revirar.
“Você já é um fracasso antes mesmo de tentar,” sussurrou uma voz que eu conhecia bem demais. Não era minha mãe, nem meu ex, nem ninguém que eu pudesse culpar. Era eu mesma, a versão que guardava todas as noites mal dormidas, todas as promessas quebradas, todos os “quase” que nunca viraram “foi”. Peguei a garrafa de vinho ao lado da cama, um Malbec barato que comprei no mercado da esquina, e enchi a taça até a borda. O líquido vermelho dançava sob a luz fraca do abajur, e por um momento, pensei em como seria fácil simplesmente não ir. Cancelar o evento. Dizer que estava doente. Desaparecer.
Mas então vi o livro sobre a mesinha de cabeceira. A capa simples, com meu nome em letras brancas sobre um fundo azul-escuro, como um céu antes da tempestade. *Clara Monteiro*. Ver meu nome ali ainda parecia um erro de impressão. Como se alguém tivesse se enganado e colocado o nome de outra pessoa, alguém que merecesse estar ali. Alguém que não bebesse para esquecer, que não escrevesse para sobreviver.
Levantei-me, com a taça ainda na mão, e caminhei até a janela. A rua estava começando a acordar, com o barulho distante de buzinas e o cheiro de asfalto molhado que subia até o terceiro andar. São Paulo nunca dorme de verdade, mas às vezes finge, como se quisesse me convencer de que também posso descansar. Não posso. Não hoje.
Eu sabia que o dia seria longo, que cada hora até o lançamento seria uma batalha contra mim mesma. Então fiz o que sempre faço quando o medo aperta: peguei um caderno velho, com a capa de couro gasta, e comecei a escrever. Não era o livro, não era nada que alguém leria. Era só um desabafo, um grito mudo para ninguém. “O que é uma página em branco senão um espelho? Você olha, e ela te devolve tudo o que você não quer ver.” Escrevi isso e parei, com a caneta tremendo entre os dedos. Era verdade. Cada palavra que eu colocava no papel era um pedaço de mim que eu não sabia se queria revelar.
Guardei o caderno, terminei o vinho e decidi que precisava de um banho. A água quente talvez lavasse a sensação de que eu estava me afogando em mim mesma. Enquanto a água caía, fechei os olhos e tentei lembrar por que escrevi aquele livro. Não era para ser famoso, não era para ser rico. Era porque, por anos, eu carreguei histórias que ninguém quis ouvir. Namorados que me deixaram, amigos que viraram estranhos, uma mãe que nunca soube me amar direito. Escrever foi a única forma de dar sentido à dor, de transformá-la em algo que não fosse só um peso no peito. E agora, aquelas palavras estavam impressas, encadernadas, à venda em livrarias. E eu não sabia se estava pronta para o que isso significava.
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O dia passou como um borrão. Escolhi um vestido preto simples, porque qualquer coisa mais chamativa parecia gritar “olha para mim”, e eu não queria ser vista. Não de verdade. Penteei o cabelo, passei um batom vermelho que achei que poderia me fazer parecer mais confiante, e saí de casa com o coração na garganta. A livraria ficava a algumas quadras do meu apartamento, mas decidi ir a pé, deixando o vento frio de São Paulo me acordar. As ruas estavam cheias, como sempre, com pessoas correndo para algum lugar, falando alto ao celular, vivendo vidas que eu nunca saberia. Às vezes, eu me perguntava como seria ser uma delas — alguém que não pensava tanto, que não carregava cada pensamento como se fosse uma pedra.
Quando cheguei à livraria, o letreiro já estava aceso: *Lançamento: A Pele das Coisas Que Não Disse, com Clara Monteiro*. Meu nome ali, em letras grandes, parecia uma piada cruel. Entrei, e o cheiro familiar de papel e café me envolveu. Era o mesmo lugar onde eu passava horas, anos atrás, folheando livros que eu não podia comprar, sonhando com o dia em que teria algo meu nas prateleiras. E agora, lá estava eu, com uma pilha de exemplares do meu livro em uma mesa decorada com flores brancas e uma placa com minha foto. A foto era horrível, claro. Eu sorria de um jeito que parecia forçado, como se estivesse tentando convencer a mim mesma de que tudo ia dar certo.
Douglas estava lá, atrás do balcão, como sempre. Ele trabalhava na livraria há anos, e eu o conhecia desde os tempos em que eu era só uma garota que aparecia para ler trechos de romances e depois saía sem comprar nada. Ele nunca me julgou por isso. Pelo contrário, às vezes ele guardava um livro para mim, dizendo que “achava que eu ia gostar”. Era o tipo de pessoa que notava coisas sem precisar que você dissesse. Como o jeito que eu segurava um livro, ou como meus olhos ficavam distantes quando alguém mencionava amor.
— Clara, você tá pronta? — ele perguntou, com aquele tom calmo que parecia ancorar o mundo.
Eu balancei a cabeça, sem confiança nenhuma.
— Não sei, Douglas. E se ninguém vier? Ou pior, e se vierem e me odiarem?
Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas quente, como se soubesse algo que eu ainda não tinha descoberto.
— Ninguém vai te odiar. E se odiarem, é porque não entenderam nada. — Ele apontou para a pilha de livros. — Isso aí é você, Clara. E você é mais forte do que pensa.
Eu quis acreditar nele, mas o peso no peito não aliviava. Antes que eu pudesse responder, a porta da livraria se abriu, e as primeiras pessoas começaram a entrar. Eram poucos, no começo: um casal de meia-idade, uma garota com óculos de armação grossa, um homem com uma camiseta de banda que eu não conhecia. Eles olhavam para mim com curiosidade, como se tentassem decidir se eu era quem dizia ser. Peguei outra taça de vinho da mesa de bebidas — cortesia da editora — e bebi um gole longo, esperando que o álcool acalmasse meus nervos.
Aos poucos, a livraria foi enchendo. Não era uma multidão, mas era mais do que eu esperava. Minha editora, uma mulher chamada Mariana com um sorriso profissional demais, me apresentou ao microfone. Minhas mãos tremiam quando peguei o livro para ler um trecho. Escolhi a primeira página, porque era a única que eu conseguia lembrar de cor.
> “Há coisas que não dizemos porque doem demais, e outras porque nunca encontramos as palavras certas. Mas o silêncio também é uma linguagem, e a minha sempre foi feita de cortes. Cada palavra que não disse cortou um pedaço de mim, até que sobrou só a pele — fina, frágil, mas ainda inteira.”
Minha voz vacilou no começo, mas aos poucos, encontrei o ritmo. As pessoas ouviam, algumas com os olhos fixos em mim, outras olhando para o chão, como se as palavras tocassem algo dentro delas. Quando terminei, houve um aplauso tímido, e eu senti um alívio tão grande que quase chorei. Mariana assumiu o microfone, falando sobre o processo de escrita, sobre como o livro era “uma voz nova na literatura brasileira”. Eu mal ouvia. Meu coração ainda batia rápido demais.
Foi então que a vi.
Ela entrou pela porta da livraria como se o lugar pertencesse a ela. Alta, com o cabelo castanho ondulado caindo sobre os ombros, e um sorriso que parecia ao mesmo tempo acolhedor e afiado. Vestia um blazer azul-escuro sobre uma blusa branca, e seus olhos percorreram a sala antes de pararem em mim. Eu não sabia quem ela era, mas algo nela me fez sentir pequena, como se eu fosse uma criança brincando de escritora.
Mariana a apresentou como Valentina Reyes, autora de best-sellers, dona de uma carreira que eu só podia sonhar em ter. Eu já tinha lido um dos livros dela, *Onde as Sombras Dormem*, um romance psicológico que me deixou acordada por duas noites seguidas. Ela era tudo o que eu não era: confiante, articulada, alguém que parecia saber exatamente onde pisava. Quando ela se aproximou, com a mão estendida, eu quase derrubei a taça de vinho.
— Clara, certo? — A voz dela era suave, mas firme, como se cada palavra fosse escolhida com cuidado. — Li seu livro. É cru, mas honesto. Isso é raro.
Eu pisquei, sem saber o que dizer. Minha cabeça estava cheia de pensamentos desconexos — *ela leu meu livro? Ela gostou? Ela tá mentindo?* — mas tudo o que saiu foi um:
— Obrigada.
Ela sorriu, e havia algo nos olhos dela, uma mistura de curiosidade e empatia, que me fez querer contar tudo. Sobre o vinho, sobre as noites que passei chorando enquanto escrevia, sobre o medo de que tudo isso fosse um erro. Mas eu não disse nada. Só assenti, tentando parecer menos perdida do que me sentia.
Valentina ficou por mais tempo do que eu esperava. Enquanto eu assinava alguns livros — minha assinatura ainda parecia estranha, como se não me pertencesse —, ela conversava com Mariana, com os leitores, com uma facilidade que eu invejava. Em um momento, ela se aproximou de novo, segurando um exemplar do meu livro.
— Posso te dar um conselho? — perguntou, com aquele tom que não era exatamente uma pergunta.
Eu assenti, sentindo o peso do olhar dela.
— Não deixe que o barulho te engula. As críticas, os elogios, as expectativas. Escreva porque você precisa, não porque eles querem.
Eu não soube o que responder. Era como se ela tivesse visto através de mim, como se soubesse que eu já estava me afogando no barulho antes mesmo de ele começar. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, outra pessoa se aproximou, e ela se afastou com um aceno discreto.
O resto da noite passou rápido. Assinei mais livros, respondi perguntas que mal lembro, sorri para fotos que provavelmente saíram horríveis. Mas, em algum canto da minha mente, as palavras de Valentina ecoavam. E, em outro canto, uma outra presença me incomodava. Uma mulher que eu não tinha notado antes, mas que agora parecia impossível ignorar.
Ela estava no fundo da livraria, perto das prateleiras de poesia. Alta, com cabelos longos e negros, e um olhar que parecia cortar o ar. Vestia um vestido vermelho que contrastava com a luz suave do ambiente, e seus lábios curvados em um meio-sorriso pareciam esconder algo. Eu não sabia quem ela era, mas senti um arrepio quando nossos olhos se encontraram. Era como se ela soubesse algo sobre mim que eu mesma desconhecia.
— Quem é aquela? — perguntei a Douglas, quando ele passou por mim com uma bandeja de copos vazios.
Ele olhou na direção que eu indiquei, e algo em seu rosto mudou. Não era medo, mas uma espécie de cautela.
— Isadora Vellani — ele disse, baixo. — Crítica literária. Dona da *Verso Livre*, aquela revista online. Não é alguém que você quer por perto, Clara.
Eu quis perguntar por quê, mas algo na voz dele me fez engolir a pergunta. Em vez disso, olhei para Isadora novamente. Ela estava conversando com um homem que eu não reconheci, mas seus olhos voltaram para mim. E, por um segundo, senti que ela não estava apenas me olhando. Ela estava me estudando.
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Quando o evento terminou, a livraria estava quase vazia. Mariana me parabenizou, dizendo que o lançamento tinha sido um sucesso. Eu não sabia se acreditava nela, mas agradeci mesmo assim. Douglas estava arrumando as cadeiras, e eu me aproximei, sentindo a necessidade de dizer algo, qualquer coisa, para não me afogar nos meus próprios pensamentos.
— Você já sentiu que algo grande tá vindo, mas não sabe se é bom ou ruim? — perguntei, sem olhar diretamente para ele.
Ele parou, com uma cadeira na mão, e me olhou de um jeito que fez meu coração apertar.
— Todo dia, Clara. Mas você já passou por coisas piores. E tá aqui.
Eu sorri, mesmo que o sorriso doesse. Ele tinha razão, de algum jeito. Eu estava aqui. Com um livro publicado, com pessoas que leram minhas palavras, com uma noite que, apesar de tudo, não tinha sido um desastre. Mas, enquanto saía da livraria, com o vento frio de São Paulo batendo no rosto, eu não conseguia afastar a sensação de que algo estava começando. Algo que eu não podia controlar.
E, no fundo da minha mente, as palavras de Hemingway, que eu tinha lido tantas vezes, ecoavam como um aviso: *“O mundo quebra todos, e depois, alguns se tornam mais fortes nos lugares quebrados.”*
Eu só esperava que, quando o mundo tentasse me quebrar, eu encontrasse força para me reconstruir.
*Clara Monteiro*
O vinho descia diferente naquela manhã. Talvez fosse porque eu não tinha dormido, ou porque a garrafa estava aberta há dois dias, esquecida na bancada da cozinha. Ou talvez fosse só eu, tentando encontrar algo novo em um hábito velho. Eu estava sentada no chão do meu apartamento, com as costas contra o sofá e o caderno aberto no colo. A caneta pairava sobre a página, mas as palavras não vinham. Não como antes. Escrever *A Pele das Coisas Que Não Disse* tinha sido como sangrar; agora, parecia que eu estava seca.
O lançamento da noite anterior ainda ecoava na minha cabeça, como um sonho que você tenta segurar, mas que escapa pelos dedos. As vozes dos leitores, o aperto de mão firme de Valentina Reyes, o olhar cortante de Isadora Vellani. E Douglas, sempre Douglas, com aquele jeito de me enxergar mesmo quando eu queria me esconder. Eu não sabia o que fazer com tudo isso. Era como se o mundo tivesse aberto uma porta, mas eu ainda estivesse parada no limiar, com medo de atravessar.
Levantei os olhos para a janela. O céu de São Paulo estava mais claro hoje, mas ainda carregava aquele peso úmido, como se a cidade nunca se livrasse completamente da chuva. O relógio marcava 9h12. Eu precisava sair, precisava respirar, precisava lembrar que a vida continuava mesmo depois de uma noite que parecia o fim de tudo. Mas o caderno me segurava ali, como um amante ciumento. Escrevi uma frase, só para não me sentir tão inútil: *“As palavras são frágeis até você dar um motivo para elas serem fortes.”* Parecia algo que Valentina diria, com aquela confiança que eu nunca tive.
Guardei o caderno e decidi ir à livraria. Não porque precisava, mas porque era o único lugar onde eu me sentia um pouco menos perdida. Peguei um casaco, porque o vento de São Paulo sempre encontra um jeito de te fazer sentir frio, e saí. As ruas estavam cheias, como sempre, com o barulho de motores, conversas apressadas e o cheiro de café vindo de algum lugar. Caminhei devagar, deixando a cidade me engolir. Às vezes, eu me perguntava se São Paulo era uma cidade ou um monstro que devorava todo mundo que ousasse viver nela.
Quando cheguei à livraria, o letreiro ainda estava lá, com meu nome em letras grandes. Alguém tinha esquecido de tirá-lo, ou talvez fosse intencional, uma forma de prolongar o que tinha acontecido na noite anterior. Entrei, e o cheiro de papel e madeira polida me envolveu como um abraço. Era o mesmo cheiro de sempre, mas hoje parecia mais pesado, como se carregasse o peso do que eu tinha feito. Minha pilha de livros ainda estava na mesa do canto, agora um pouco menor, com alguns exemplares vendidos. Ver isso me deu uma pontada de orgulho, misturada com medo. E se fosse só sorte? E se ninguém mais comprasse?
Douglas estava atrás do balcão, organizando uma pilha de recibos. Ele ergueu os olhos quando me viu, e um sorriso pequeno apareceu em seu rosto. Era o tipo de sorriso que não precisava de explicação, que dizia “eu sabia que você ia aparecer”.
— Não conseguiu ficar longe, né? — ele disse, com aquele tom que misturava provocação e carinho.
Eu dei de ombros, tentando parecer mais leve do que me sentia.
— É o único lugar onde eu não me sinto uma impostora.
Ele riu, baixo, e apontou para a mesa com meus livros.
— Impressora? Você? Clara, metade das pessoas ontem saiu daqui falando do seu livro como se fosse a Bíblia.
Eu corei, sem querer. Não sabia lidar com elogios, nunca soube. Eles sempre pareciam uma armadilha, como se, ao aceitá-los, eu estivesse me comprometendo a ser algo que não era. Sentei em uma das poltronas perto da seção de poesia, peguei um exemplar do meu livro e folheei, como se fosse a primeira vez. As palavras ali eram minhas, mas pareciam pertencer a outra pessoa. Alguém mais corajosa, alguém que não tremia ao pensar no que os outros diriam.
— Você já leu? — perguntei, olhando para Douglas.
Ele parou o que estava fazendo e se apoiou no balcão, me observando com aquele olhar que parecia enxergar além da superfície.
— Li. Duas vezes, na verdade. — Ele fez uma pausa, como se escolhesse as palavras com cuidado. — É como ouvir você falar, mas sem o filtro. É... cru. Como se você tivesse arrancado um pedaço de si mesma e colocado naquelas páginas.
Eu senti um nó na garganta. Não sabia se era por ele ter lido, por ele ter entendido, ou por ele ter dito isso com uma calma que me fazia querer acreditar. Desviei o olhar, fingindo interesse na capa do livro.
— E o que achou? Sério, sem me bajular.
Ele cruzou os braços, ainda me olhando.
— Acho que você é mais forte do que pensa. E acho que esse livro vai fazer muita gente se sentir menos sozinha. Mas também acho que você tá com medo do que vem depois.
Ele estava certo, claro. Douglas sempre estava. Mas antes que eu pudesse responder, a porta da livraria se abriu, e uma rajada de vento frio entrou junto com uma figura que eu não esperava ver tão cedo. Valentina Reyes. Ela estava diferente hoje, mais casual, com uma jaqueta de couro preta e jeans, mas ainda carregava aquela aura de quem sabia exatamente o que estava fazendo. Seus olhos encontraram os meus quase imediatamente, e ela sorriu, um sorriso que parecia dizer “te achei”.
— Clara! — Ela se aproximou, com uma energia que contrastava com a minha hesitação. — Não achei que te encontraria aqui tão cedo. Ressaca do lançamento?
Eu ri, nervosa, e balancei a cabeça.
— Algo assim. Não dormi muito.
Ela se sentou na poltrona ao meu lado, sem cerimônia, como se fôssemos amigas de anos. Era estranho, mas também reconfortante. Havia algo nela que fazia você querer confiar, mesmo sem saber por quê.
— Normal — ela disse, cruzando as pernas. — O primeiro lançamento é sempre um terremoto. O meu, eu vomitei antes de subir no palco. Literalmente.
Eu ri de novo, dessa vez com mais leveza. Era difícil imaginar Valentina, com toda aquela confiança, vomitando de nervoso. Mas a confissão me fez sentir um pouco menos sozinha.
— Como você lida com isso? — perguntei, quase sem pensar. — O medo, as expectativas, as pessoas te olhando como se você tivesse que ser perfeita.
Ela inclinou a cabeça, como se estivesse pesando a resposta.
— Eu não lido. Eu finjo. E com o tempo, você aprende que ninguém espera perfeição. Eles querem verdade. E, pelo que li do seu livro, verdade é algo que você tem de sobra.
Eu senti meu rosto esquentar de novo. Era a segunda vez em menos de vinte e quatro horas que ela dizia algo sobre meu livro, e eu ainda não sabia como processar isso. Antes que eu pudesse responder, ela pegou o exemplar que eu segurava e folheou, parando em uma página aleatória.
— “Às vezes, o amor é só um eco de algo que você quis ouvir.” — Ela leu em voz alta, com um tom que dava às palavras um peso novo. — Isso é lindo, Clara. E doído. Você escreve como se estivesse costurando uma ferida.
Eu não soube o que dizer. Era como se ela tivesse visto dentro de mim, como se soubesse que cada linha daquele livro era uma tentativa de me manter inteira. Engoli em seco, tentando encontrar algo para dizer que não soasse patético.
— Às vezes, sinto que estou só gritando no escuro — admiti, quase em um sussurro. — E não sei se alguém tá ouvindo.
Valentina fechou o livro e me olhou, séria.
— Eles estão ouvindo. E vão continuar ouvindo, se você continuar escrevendo. Mas você precisa se ouvir primeiro. — Ela fez uma pausa, e então seu tom mudou, ficou mais leve. — Quer um café? Acho que a gente merece algo mais forte que esse chá de livraria.
Eu ri, e pela primeira vez naquele dia, senti algo próximo de leveza. Assenti, e ela se levantou, puxando-me com ela. Douglas nos observava do balcão, com um meio-sorriso que dizia que ele estava gostando do que via. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez, só talvez, eu pudesse sobreviver a isso.
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O café na esquina da livraria era pequeno, com mesas de madeira gastas e um cheiro de espresso que se misturava ao barulho da rua. Valentina pediu um cappuccino, e eu, um café preto, porque era o que eu podia pagar. Sentamos perto da janela, onde podíamos ver as pessoas passando, cada uma carregando sua própria história. Eu me perguntei quantas delas já tinham sentido o que eu sentia — aquele medo de que tudo fosse desmoronar a qualquer momento.
— Então, me conta — Valentina disse, mexendo o cappuccino com uma colherzinha. — Como você começou a escrever? Não o livro, mas... antes. O que te fez pegar a caneta?
Eu hesitei. Não era uma pergunta que eu esperava, e responder significava cavar em lugares que eu preferia deixar enterrados. Mas havia algo na forma como ela perguntava, como se realmente quisesse saber, que me fez abrir a boca.
— Eu... sempre escrevi. Desde pequena. Era como conversar com alguém que não ia me julgar. Minha mãe... ela não era muito de ouvir. E meu pai, bem, ele foi embora quando eu tinha seis anos. Então, os cadernos viraram meus amigos. — Eu parei, sentindo o peso daquelas palavras. — Quando as coisas começaram a dar errado, tipo, namoros que não duravam, amigos que sumiam, o vinho virou uma muleta. Mas escrever... escrever era o que me mantinha viva.
Valentina ouviu em silêncio, com uma atenção que me fez sentir vista. Não era pena, nem curiosidade mórbida. Era como se ela entendesse, de um jeito que poucas pessoas entendiam.
— Meu primeiro livro foi assim — ela disse, depois de um gole de cappuccino. — Eu tinha acabado de sair de um relacionamento horrível, daqueles que te fazem duvidar de quem você é. Escrevi pra me lembrar que eu ainda existia. E, olha, Clara, você existe. E esse seu livro é a prova disso.
Eu senti um nó na garganta, mas dessa vez não era de medo. Era algo mais quente, algo que parecia esperança, mesmo que eu não quisesse admitir. Antes que eu pudesse responder, o celular dela vibrou na mesa. Ela olhou a tela, e por um segundo, seu rosto mudou — uma sombra passou pelos olhos dela, como se tivesse visto algo que não queria.
— Desculpa, preciso atender isso — ela disse, levantando-se. — Volto já.
Enquanto ela se afastava, falando baixo ao telefone, eu fiquei olhando pela janela. A rua estava mais cheia agora, com o sol tentando romper as nuvens. Mas algo me incomodava, uma sensação que eu não conseguia nomear. Talvez fosse o jeito como Valentina tinha falado do barulho, das expectativas. Ou talvez fosse a lembrança do olhar de Isadora na noite anterior, aquele olhar que parecia saber demais.
Quando Valentina voltou, ela parecia um pouco mais tensa, mas escondeu com um sorriso.
— Tudo bem? — perguntei, sem saber se queria mesmo a resposta.
— Tudo ótimo — ela disse, rápido demais. — Só umas coisas de trabalho. Então, o que você acha de me contar mais sobre esse seu próximo projeto? Porque, quer você queira ou não, você vai escrever outro livro.
Eu ri, surpresa com a mudança de assunto, mas grata por ela. Passamos o resto da manhã falando sobre escrita, sobre livros que amávamos, sobre o medo de não ser suficiente. E, por um momento, eu esqueci o peso que carregava. Mas, no fundo, eu sabia que ele não tinha ido embora. Ele estava só esperando, como uma sombra que nunca sai de perto.
*Clara Monteiro*
A luz do celular piscava na mesinha de centro, como um farol insistente que eu não queria seguir. Era quase meio-dia, e eu ainda estava no mesmo lugar onde tinha passado a manhã: encolhida no sofá, com uma xícara de café frio na mão e o caderno aberto, mas vazio. As palavras de Valentina ainda ecoavam na minha cabeça, como um refrão que eu não conseguia esquecer. *“Você precisa se ouvir primeiro.”* Era mais fácil falar do que fazer. Ouvir a mim mesma significava enfrentar o barulho interno, aquele que gritava que eu não era suficiente, que o sucesso do lançamento era só um golpe de sorte, que em breve todo mundo descobriria que eu era uma fraude.
O celular vibrou de novo, e eu finalmente peguei o aparelho. Era uma notificação de e-mail, da minha editora, Mariana. O assunto dizia: *“Primeira crítica do livro!”* Meu coração deu um salto, meio esperança, meio pavor. Cliquei no e-mail, com os dedos tremendo, e li a mensagem rápida de Mariana: *“Clara, saiu a primeira crítica na Verso Livre! É um começo, e você está no radar. Parabéns!”* Havia um link para o site da revista, e eu hesitei antes de clicar. *Verso Livre*. O nome me trouxe de volta à noite do lançamento, ao olhar cortante de Isadora Vellani, a mulher que Douglas tinha avisado para eu evitar.
Respirei fundo e abri o link. A página carregou com uma foto minha, tirada no lançamento, com um sorriso que parecia mais nervoso do que eu lembrava. O título da crítica era: *“A Pele das Coisas Que Não Disse: Um Grito Cru, Mas Ainda Sem Forma”*. Meu estômago revirou. Li as primeiras linhas, com a voz de Isadora ecoando na minha cabeça, mesmo sem nunca ter ouvido ela falar.
> *Clara Monteiro estreia com uma voz que não teme se expor, mas que ainda tropeça na própria vulnerabilidade. Há talento em ‘A Pele das Coisas Que Não Disse’, mas ele é ofuscado por uma escrita que parece mais confessional do que literária. Monteiro quer nos fazer sentir sua dor, mas às vezes esquece de nos dar um motivo para isso.*
As palavras me acertaram como um soco. Não era uma crítica ruim, não de verdade, mas cada elogio vinha com uma faca. *Confessional demais. Sem forma. Sem motivo.* Eu continuei lendo, esperando que em algum momento ela dissesse algo que não doesse, mas a crítica só ficava mais afiada. Isadora terminava com uma frase que parecia escrita só para mim: *“Monteiro tem potencial, mas precisará aprender que a dor, sozinha, não faz uma história.”*
Fechei o celular e joguei-o no sofá, como se ele pudesse me queimar. Meu peito estava apertado, e a vontade de abrir outra garrafa de vinho era quase insuportável. Eu sabia que não deveria levar tão a sério. Valentina tinha me avisado sobre o barulho, sobre as críticas que tentariam me engolir. Mas saber e sentir eram coisas diferentes. Cada palavra de Isadora parecia cavar um buraco que eu já conhecia, um buraco onde eu guardava todas as vezes que me disseram que eu não era suficiente.
Levantei-me, tentando afastar a sensação, e caminhei até a janela. A rua lá fora estava viva, com o barulho de São Paulo que nunca para. Carros buzinando, pessoas gritando, o cheiro de fumaça e café misturado no ar. Eu queria me perder naquele caos, queria ser qualquer uma daquelas pessoas que passavam sem carregar o peso de um livro, de uma crítica, de uma vida exposta em páginas. Mas eu não era. Eu era Clara Monteiro, a escritora que, segundo Isadora Vellani, não sabia transformar dor em história.
O celular vibrou de novo, e eu quase o ignorei. Mas era uma mensagem de Valentina. *“Vi a crítica. Não deixa isso te derrubar. Vamos conversar? Tô no café da esquina da livraria.”* Eu pisquei, surpresa. Como ela sabia da crítica? E por que estava tão perto? Parte de mim queria ficar ali, chafurdando na autocomiseração, mas outra parte — a parte que ainda acreditava nas palavras dela — me fez pegar o casaco e sair.
O café estava mais cheio do que na véspera, com o murmúrio de conversas e o som de uma máquina de espresso trabalhando sem parar. Valentina estava na mesma mesa perto da janela, com um laptop aberto e uma xícara de café que parecia intocada. Ela levantou os olhos quando me viu, e seu sorriso era ao mesmo tempo acolhedor e firme, como se ela soubesse exatamente o que eu estava sentindo.
— Você parece que acabou de ser atropelada — ela disse, enquanto eu me sentava. — A crítica, né?
Eu assenti, sem saber por onde começar. Minha voz saiu mais fraca do que eu queria.
— É como se ela tivesse lido minha alma e decidido que não valia a pena.
Valentina riu, mas não era uma risada cruel. Era como se ela estivesse rindo da situação, não de mim.
— Isadora Vellani faz isso com todo mundo. É o trabalho dela. Ela pega o que você faz, corta em pedaços e depois finge que tá te fazendo um favor ao apontar os defeitos. — Ela fez uma pausa, tomando um gole do café. — Mas você não pode deixar ela decidir quem você é.
Eu queria acreditar, mas a crítica ainda queimava. Olhei para a xícara na minha frente, o café preto que a garçonete tinha trazido sem que eu pedisse, e tentei encontrar palavras.
— Ela disse que minha escrita é confessional demais. Que falta forma. Que minha dor não é suficiente.
Valentina inclinou a cabeça, me estudando.
— E você acha que ela tá certa?
Eu hesitei. Parte de mim queria dizer que sim, que Isadora tinha colocado em palavras o que eu sempre temi: que meu livro era só um desabafo, não literatura. Mas outra parte, menor, mais teimosa, queria gritar que ela estava errada.
— Não sei — admiti, por fim. — Eu escrevi o que sentia. Não sei se isso é suficiente, mas foi tudo o que eu tinha.
Valentina se inclinou para frente, com os olhos fixos nos meus.
— Isso é mais do que suficiente, Clara. Escrever o que você sente é o que faz as pessoas se conectarem. Isadora pode dizer o que quiser, mas ela não viveu o que você viveu. Ela não sabe o que custou pra você colocar essas palavras no papel. — Ela fez uma pausa, e seu tom ficou mais suave. — E, olha, eu também já fui destruída por críticas. Meu primeiro livro foi chamado de “melodramático” e “exagerado”. Doeu pra caramba. Mas eu continuei escrevendo. E você vai continuar também.
Eu senti um aperto no peito, mas dessa vez não era só medo. Era algo mais quente, algo que parecia gratidão. Valentina não precisava estar ali, não precisava gastar seu tempo comigo, uma escritora iniciante que mal sabia o que estava fazendo. Mas ela estava, e isso significava mais do que eu conseguia expressar.
— Por que você tá fazendo isso? — perguntei, antes que pudesse me conter. — Quer dizer, você é Valentina Reyes. Tem livros em todas as livrarias, fãs no mundo todo. Por que tá aqui, tomando café com alguém como eu?
Ela sorriu, mas havia uma sombra nos olhos dela, algo que eu não conseguia decifrar.
— Porque eu já fui você, Clara. E porque alguém me ajudou quando eu precisei. Agora é a minha vez. — Ela fez uma pausa, e então acrescentou, com um tom mais leve: — Além disso, eu gosto de você. Você tem algo especial. E eu não digo isso pra qualquer um.
Eu corei, sem saber como responder. Antes que eu pudesse dizer algo, o celular dela vibrou novamente, e ela olhou a tela com uma expressão que misturava irritação e cautela.
— Desculpa, é trabalho de novo — ela disse, levantando-se. — Fica aqui, pede outro café. A gente se fala mais tarde, tá?
Eu assenti, vendo-a se afastar com o celular no ouvido. Havia algo na forma como ela falava, na rapidez com que mudava de assunto, que me deixava inquieta. Mas eu não tinha tempo de pensar nisso, porque meu próprio celular vibrou com outra notificação. Dessa vez, era uma mensagem de um número desconhecido.
*“Parabéns pelo lançamento, Clara. Adorei seu livro. Que tal conversarmos sobre ele? Isadora Vellani.”*
Meu coração parou por um segundo. Isadora. A mulher que tinha dissecado meu livro como se fosse uma autópsia agora queria conversar? Minha primeira reação foi ignorar, apagar a mensagem e fingir que nunca tinha visto. Mas algo em mim — curiosidade, masoquismo, ou talvez só burrice — me fez hesitar. E se ela quisesse se explicar? E se fosse uma chance de entender o que ela quis dizer?
Antes que eu pudesse responder, a porta do café se abriu, e Douglas entrou. Ele estava com a jaqueta de sempre, uma de couro gasta que parecia ter mil histórias, e o cabelo meio bagunçado pelo vento. Ele me viu e veio direto para a mesa, com aquele jeito calmo que parecia desacelerar o mundo.
— Pensei que te encontraria aqui — ele disse, sentando-se sem pedir permissão. — Como tá a cabeça depois da crítica?
Eu suspirei, surpresa que ele já soubesse.
— Você viu?
— A livraria é um ninho de fofoca, Clara. Todo mundo tá falando da Verso Livre hoje. — Ele fez uma pausa, me olhando com cuidado. — Não deixa isso te comer viva, tá? Isadora é assim. Ela gosta de cutucar até sangrar.
Eu assenti, mas a mensagem dela ainda queimava no meu celular. Mostrei a tela para ele, sem dizer nada. Ele leu, e seu rosto endureceu, como se tivesse visto algo perigoso.
— Não responde isso — ele disse, com uma firmeza que eu não estava acostumada a ouvir. — Ela não tá interessada no seu livro. Ela tá interessada em você. E não do jeito bom.
Eu franzi a testa, confusa.
— O que você quer dizer?
Ele hesitou, como se estivesse pesando o quanto podia me contar.
— Isadora tem uma história com escritores novos. Ela se aproxima, faz você se sentir especial, e depois... — Ele parou, como se as palavras fossem pesadas demais. — Só confia em mim, Clara. Fica longe dela.
Eu quis perguntar mais, mas algo na voz dele me fez engolir as palavras. Em vez disso, guardei o celular no bolso, tentando ignorar a curiosidade que ainda pulsava em mim. Douglas mudou de assunto, falando sobre um cliente que tinha tentado devolver um livro porque “não gostou do final”, e eu ri, grata pela distração. Mas, no fundo, a mensagem de Isadora ainda estava lá, como uma pedra no sapato, pequena, mas impossível de ignorar.
Quando saímos do café, o céu de São Paulo estava escurecendo, com nuvens pesadas prometendo chuva. Douglas me acompanhou até a esquina, e antes de se despedir, ele segurou meu braço, com uma leveza que contrastava com a força dos seus olhos.
— Você é mais forte do que pensa, Clara. Não esquece disso.
Eu sorri, mesmo que o sorriso doesse. Ele tinha razão, talvez. Mas enquanto caminhava de volta para casa, com o vento frio batendo no rosto, eu não conseguia afastar a sensação de que algo estava vindo. Algo que eu não podia controlar. E, no fundo da minha mente, as palavras de Clarice Lispector, que eu tinha lido tantas vezes, ecoavam como um aviso: *“Viver é uma coisa tão séria, tão grave, que às vezes não sei o que fazer comigo mesma.”*
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