Babá do Antagonista
A primeira coisa que Lucca sentiu foi um cheiro de lençóis limpos — algo floral, talvez lavanda — e o desconforto da luz filtrando pela cortina fina. Piscou várias vezes, tentando reconhecer o teto branco e a moldura da janela. Não era o seu quarto.
Uma pontada de pânico atravessou sua mente.
Onde... estou?
Ele se sentou na cama, lentamente, como se qualquer movimento brusco fosse fazer a estranheza ganhar forma. Passou os dedos pelos cabelos bagunçados e, por um instante, achou que estivesse sonhando. Mas a memória voltou como um tapa: a noite anterior. O enterro. O gosto amargo do luto e o álcool queimando a garganta.
Seu pai…
A lembrança fez o peito pesar. Ele se lembrava de ter saído sozinho, depois da cerimônia, e bebido como se pudesse afogar a dor. Caminhou pelas ruas sem rumo. Então… o quê? Foi resgatado por alguém de bom coração? Levado para algum lugar seguro para não desmaiar no meio-fio?
Era a única explicação plausível naquele momento.
Empurrou a coberta para o lado e se levantou. Estava de camisa fina, dois botões abertos, e uma calça leve que não reconhecia. A janela o chamou, e ele a abriu com cuidado. O ar fresco entrou, trazendo sons de uma rua agitada lá embaixo.
Quarto andar, aparentemente.
As pessoas passavam depressa, algumas vestindo roupas estranhas, mas Lucca achou que talvez fosse apenas moda local. Não reconheceu a rua. A princípio, pensou que fosse porque nunca tinha vindo para esse lado da cidade. Não passou pela sua cabeça que estava… muito, muito longe do que conhecia.
Fechou a janela e decidiu procurar o banheiro. Encontrou a porta ao lado de um armário e entrou.
A primeira coisa foi aliviar a bexiga — prioridade número um. Depois, foi até a pia e abriu a torneira para lavar as mãos. Seu olhar, preguiçoso e casual, subiu até o espelho.
E congelou.
O reflexo… não era o seu.
Ou era?
O rosto que o encarava tinha a pele lisa, sem uma única marca de espinha. Os lábios eram cheios, quase chamativos, e a clavícula aparecia delicada pela camisa aberta. O tom de pele era mais claro do que lembrava. E, por algum motivo, os dedos que esfregavam a própria palma eram finos, quase delicados demais para serem dele.
Lucca aproximou o rosto do espelho, inclinou-se para os lados, ergueu e abaixou as sobrancelhas. Até levantou os dois braços ao mesmo tempo, como se estivesse participando de um jogo infantil com… ele mesmo.
O reflexo repetia tudo, perfeitamente sincronizado.
Por alguns segundos, achou aquilo divertido. Sorriu, fez caretas, passou os dedos pelo rosto como se pudesse comprovar que não era uma máscara. Depois, a euforia deu lugar a um incômodo. Não lembrava de ter essa aparência. E… estava mais baixo?
— Não… — ele murmurou, afastando-se para olhar o próprio corpo inteiro. — Eu perdi altura? Uns… cinco centímetros?
Era difícil dizer. Mas a sensação estava lá, junto com um vazio na cabeça que não explicava como, nem por que, estava naquele corpo.
No fim, ficou parado, encostado na pia, sentindo a estranheza aumentar. Não estava apenas num lugar desconhecido. Estava num corpo que parecia o seu… mas não era. E por mais que tentasse encontrar respostas, tudo que tinha eram perguntas.
E uma enorme, crescente curiosidade.
Lucca afastou-se do espelho devagar, como se a qualquer momento aquela imagem pudesse se distorcer e rir dele. Passou a mão pela nuca, tentando puxar de volta qualquer memória que explicasse o que estava acontecendo.
O quarto estava silencioso, o tipo de silêncio que parecia prestes a ser quebrado. Ele voltou para a cama e sentou, observando os detalhes. O lençol era de um tecido macio que não reconhecia, com um padrão floral delicado demais para um quarto masculino comum. As paredes tinham um tom suave de bege, mas sem sinais de uso — como se fossem recém-pintadas.
O celular. Onde estava o celular?
Ele começou a procurar — primeiro sobre a mesa de cabeceira, depois nas gavetas. Nada. Apenas uma espécie de relógio quadrado, estranho, com números que não seguiam o formato habitual: além das horas, mostrava símbolos que ele nunca tinha visto antes, e que certamente não eram letras do alfabeto que conhecia.
Franziu o cenho.
Deve ser algum modelo importado…
Seguiu explorando. Abriu o armário do quarto: roupas que pareciam servir nele, mas todas tinham um corte diferente, mais ajustado ao corpo e com tecidos que não lembrava de ter visto à venda. No fundo, havia um par de sapatos com solado fino e flexível, mas sem cadarço, como se fossem feitos para se moldar ao pé.
Lucca pegou um deles, girou nas mãos e riu sozinho.
— Ok… definitivamente não sou eu que compro isso.
Olhando melhor, notou que a própria calça que vestia não tinha zíper ou botão — era uma peça única, de tecido elástico, como se fosse costurada sob medida para ele.
A estranheza começou a crescer no peito.
Voltou ao banheiro e, por impulso, ligou o chuveiro. A água saiu imediatamente, morna, e havia um cheiro sutil de algo como… madeira doce? Não reconhecia o aroma.
No espelho, aquele rosto bonito e delicado o encarava de novo. Só que agora, sem o choque inicial, ele percebeu algo novo: seus olhos tinham um tom mais vivo, quase brilhante, que não era natural. E havia um ar de… suavidade no corpo inteiro, como se tivesse sido redesenhado para ser mais frágil, ou mais… chamativo.
Ele engoliu seco, apoiando as mãos na pia.
Tudo estava tão limpo, tão perfeito, tão diferente do mundo que conhecia. Mas, de algum jeito, ele ainda acreditava que tinha apenas bebido demais e acordado na casa errada.
Até que ouviu um som.
Um “bip” baixo, vindo do tal relógio quadrado sobre a mesa de cabeceira.
Voltou para o quarto, curioso, e viu que a tela mostrava um conjunto de símbolos diferentes, piscando lentamente, como se fosse uma mensagem. Não entendia nada do que estava escrito, mas uma voz suave, feminina e artificial soou de dentro do aparelho:
— Lucca Andrade, sessão de entrevista agendada para às dez horas.
Ele congelou.
Não lembrava de ter marcado entrevista alguma. E não fazia ideia de quem, naquele lugar, sabia o seu nome.
A voz do aparelho ainda ecoava em sua cabeça — entrevista às dez horas. Ele olhou para a porta, respirou fundo e tentou girar a maçaneta. Nada.
Trancada.
Lucca franziu o cenho, procurando por uma chave. Revirou o criado-mudo, abriu o armário, espiou debaixo da cama. Até mexeu atrás da cortina, sem nenhuma lógica, como se a chave pudesse estar escondida ali.
Nada.
Tentou bater na porta, mas ninguém respondeu.
— Ok… isso tá ficando esquisito — murmurou, esfregando a testa.
Foi então que seus olhos pousaram na televisão na parede. Talvez aquilo lhe desse alguma pista de onde estava. Pegou o controle remoto e o girou nas mãos. Estava coberto de símbolos que não reconhecia — nada de “liga/desliga”, nada de “menu” — apenas marcas estranhas que pareciam um alfabeto alienígena.
Apertou botões aleatórios. Nada.
Apertou todos de uma vez. Nada.
Tentou até bater palmas, como já tinha visto em propagandas de TV inteligente. Silêncio.
— Liga! — falou alto, como quem dá ordem.
E, como se obedecesse, a tela acendeu. Lucca recuou um passo, surpreso.
O canal era um jornal. Um apresentador sério, com terno impecável, olhava diretamente para a câmera. Sua voz era clara e segura:
“Agora, com a palavra de Sua Majestade, a respeito da crise de diminuição de fêmeas no planeta.”
A imagem mudou para um homem alto, vestindo um traje luxuoso que lembrava uniformes reais de filmes antigos. Sua voz carregava autoridade, mas também um tom solene:
“É com pesar que reconhecemos o declínio contínuo da população de fêmeas. A proporção desigual ameaça nosso equilíbrio social e futuro como espécie. Diante disso, anuncio o início do projeto ‘Mais Fêmeas’, com a criação de cento e dez novas vidas em proveta, desenvolvidas com material genético complexo, para garantir diversidade e estabilidade em nossa nação. Este é um passo vital para a prosperidade do nosso povo.”
O jornalista voltou ao ar, mantendo a postura profissional:
“Sua Majestade reforça que este avanço científico será supervisionado pelo Conselho Real, com foco em segurança e bem-estar populacional. Especialistas afirmam que esta é a maior iniciativa desde a implementação da produção assistida em larga escala.”
Lucca piscou, confuso. Fêmeas em proveta? Conselho Real? Majestade?
Parecia estar em um país altamente tecnológico… mas ainda sob reinado. E o idioma que não entendia — claro, não era o alfabeto que conhecia. Aquilo já começava a parecer outra realidade, não apenas outro país.
O jornal seguiu:
“Em outras notícias, foi anunciado o noivado do General Magnânimo Harvan com a fêmea da renomada família Cirel, especialista em comunicação internacional.”
A imagem mostrou o tal general — um homem gigantesco, ombros largos, musculatura quase desumana, como um urso em uniforme militar. Depois, a câmera focou na “fêmea” noiva: um jovem de traços delicados, corpo esguio, pele impecável… mas sem seios, sem nada que indicasse ser uma mulher como Lucca conhecia.
Franziu o cenho. Mudou de canal. Outro programa. Outro conjunto de pessoas — todas do mesmo padrão: homens enormes, ou homens menores e delicados que chamavam de fêmeas.
Nenhuma mulher. Nenhum rosto com formato feminino, nenhum corpo com curvas femininas.
A ficha caiu como um soco.
Não… isso é impossível…
Voltando ao canal de jornal, ouviu algo sobre viagens interestelares e colônias em outros planetas. Documentários falavam de “civilizações interespécies” e “novas fronteiras da convivência”.
O coração dele acelerou.
E se… não fosse apenas outro país? E se esse… não fosse nem o mesmo planeta?
As mãos dele tremeram. Sentiu as pernas fraquejarem até que seu corpo cedeu, caindo sentado no chão, paralisado.
A respiração estava curta. O som da TV, distante.
— Onde… no mundo… eu estou? — sussurrou, com a boca seca.
...***...
Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 50
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