Reino de Fogo e Cinzas — Cardan Syltharien
As cinzas cobrem o chão como um manto pesado, obscurecendo os corpos que se misturam — inimigos e aliados, indistintos na morte. Caminho entre eles, cada passo um lembrete do preço que pagamos, do sangue que jorra além do campo de batalha, dentro do meu próprio peito.
Ser rei é carregar uma coroa que não brilha, mas pesa como uma âncora em um mar de desespero. Não são apenas minhas escolhas; são as vidas de muitos que pendem na balança, e nenhuma decisão me traz paz.
Perdi dois amores nesta guerra cruel. O primeiro, tragicamente, em meus braços — sua respiração falhando, seu olhar se apagando, e a dor crua de sentir a vida escapar por entre meus dedos ainda me dilacera a alma em noites solitárias.
O segundo, ausente de sofrimento, mas não de ausência. Ela nunca foi minha, amava outro, e confesso, em horas insones, fui dominado pelo fantasma dela — pelo que poderia ter sido se eu fosse o homem certo.
A solidão de reinar com pulso firme é um castigo silencioso. Aqui estou, em Shandrax, entre ruínas e memórias, pronto para revelar a história que me fez quem sou — porque o passado é a única companhia que me resta antes que o silêncio me consuma por completo.
O General Eliel se aproxima com a postura rígida de quem já perdeu mais batalhas do que ousa contar. Seus olhos passam por mim com respeito — mas também com algo que reconheço: exaustão.
— A Rainha do Submundo já recolheu os corpos dos seus... e partiu, Vossa Majestade.
Assenti.
Não havia mais nada a ser dito.
Ela partiu — como sempre faz.
Silenciosa, letal, bela como a própria morte que comanda.
Ivy.
Graças ao nosso tratado, vencemos hoje. Se ela não tivesse se unido a mim… talvez eu fosse agora só mais um cadáver entre as ruínas.
Ela é uma aliada perfeita.
Impossível não vê-la como uma rainha absoluta — feita de aço e sombras. Sempre admirei sua força, seu domínio, sua ausência de hesitação.
E mesmo sabendo que ela nunca foi minha… não posso negar:
É dona do meu coração.
Há décadas que ela habita meus pensamentos. Não como um amor juvenil, mas como um sussurro constante — um eco que insiste em voltar mesmo quando tento enterrar.
Pensei nela, sim. Mais vezes do que ouso admitir.
Em noites que a solidão aperta sob o peso do manto real, quando o silêncio se torna mais cruel que qualquer batalha, confesso:
Houve momentos em que desejei ser outro homem. Um que ela pudesse amar.
Mas o trono não permite isso.
Ele me exige inteiro.
E agora, entre cinzas e estandartes caídos, compreendo que minha história não pode mais ser ignorada.
Antes que o mundo me esqueça...
Antes que a culpa me cale de vez...
Preciso contar como tudo começou.
O passado tem cheiro de terra molhada, sangue fresco e folhas partidas.
Lembro da floresta. Do som seco das lâminas se chocando e do peso da respiração ardendo em meus pulmões como brasa.
Eliel não tinha piedade — e eu não esperava que tivesse.
— Mais rápido, Cardan! — ele rugia, e sua voz cortava o ar com mais precisão do que qualquer espada.
— Você quer viver ou morrer como um príncipe mimado?
Meus braços ardiam.
O suor escorria pelas costas, descendo pela espinha até a cintura, enquanto meus pés afundavam no solo úmido, tentando manter equilíbrio.
A lâmina dele vinha de cima, cruel, pesada — não era um golpe de ensino, era para machucar.
E eu sabia: se caísse, ele não pararia. Porque o mundo também não pararia.
— "Ataque. Não espere. Leia o corpo, não os olhos."
Era o que ele sempre dizia.
Mas naquela manhã, o sol mal atravessava as copas densas das árvores, e tudo que eu lia era o cansaço do meu próprio corpo, pedindo trégua.
Eu tinha dezessete invernos.
Já sabia matar. Mas ainda não sabia carregar as mortes.
Com um grito abafado, avancei.
As espadas se cruzaram com violência, e o impacto subiu pelo meu braço como uma onda. Meus músculos tremiam, o punho escorregava com o suor. Eliel sorriu com o canto da boca — um sorriso sem alegria.
— Melhor. Mas não o suficiente.
Então ele girou, me desarmou com um movimento seco, e a ponta da lâmina repousou contra meu pescoço.
— Num campo de batalha, você estaria morto. E não pense que seu sangue real te salvaria.
Engoli seco. O gosto era de ferro.
Mas não era do sangue.
Era da raiva. Da frustração.
Do orgulho ferido.
Afastei a lâmina com a palma da mão, empurrei o corpo para trás e respirei fundo. O coração martelava. Os ombros pesavam.
— De novo. — murmurei.
Eliel me encarou por um segundo longo, e então recuou.
Assentiu.
E o inferno recomeçou.
Depois da terceira queda — e do segundo corte superficial no ombro — Eliel finalmente deu um passo para trás e guardou a espada.
— Chega. Por hoje. Antes que você desmaie de orgulho ferido.
Eu não respondi. Apenas me afastei cambaleando, sentindo o corpo pulsar sob a armadura de couro suada. Meus músculos gritavam, mas minha alma… minha alma se silenciava nesses momentos. Era ali que eu mais me sentia real.
Seguimos sem palavras até o riacho, um fio de água cristalina que cortava a clareira como uma cicatriz aberta entre as raízes.
Me joguei de joelhos na margem e mergulhei o rosto. A água gelada mordeu minha pele e levou o suor, a poeira, a raiva. Eliel se sentou ao meu lado, com mais peso nas costas do que o corpo aparentava.
— Você está melhor. — ele disse, depois de um tempo. — Mais rápido. Menos impulsivo.
— "Menos impulsivo." — repeti com uma risada curta, enxugando o rosto com a barra da camisa. — Um dia você ainda me elogia sem parecer que está me insultando.
— Duvido. Você não saberia lidar. — respondeu ele, com aquele meio sorriso que quase nunca surgia.
Por um momento, só ouvimos a água correndo, como se tudo além da floresta deixasse de existir.
— Eliel... — murmurei, olhando para os próprios reflexos quebrados pela correnteza. — Você acha que um dia vou ser bom o suficiente?
Ele demorou a responder. Pegou uma pedra e lançou no rio. Ela quicou duas vezes antes de afundar.
— A questão, Cardan, não é se será bom o suficiente. É se você estará disposto a carregar o peso que vem com isso.
— Ser rei não é vencer batalhas. É enterrar os que lutaram por você.
Engoli em seco.
Sabia que ele falava por experiência. Eliel era um general antes mesmo de eu nascer. Tinha mais cicatrizes do que dedos. Mais memórias que noites de sono.
Ele se levantou com um leve estalo nos joelhos e sacudiu a poeira das vestes.
— Vamos. Está quase anoitecendo.
Virou-se e, antes de seguir adiante, lançou o aviso com a voz carregada de ironia:
— É melhor nos arrumarmos para o Baile da Primeira. Se nos atrasarmos, Hero vai arrancar nossos olhos e servir como decoração no salão.
Suspirei, passando a mão nos cabelos molhados.
Fiquei em silêncio por um segundo.
Hero. Meu pai. O rei.
Homem de muitas vitórias… e poucas palavras.
Pontualidade, postura, perfeição — tudo nele era afiado. Inclusive suas expectativas.
E falhar diante dele doía mais que qualquer lâmina de treino.
Respirei fundo e segui Eliel floresta adentro, com o corpo marcado pelo esforço...
E a alma, por tudo que ainda viria.
...⚔️...
No quarto real destinado aos herdeiros de Shandrax, o silêncio era solene. A luz das tochas desenhava sombras longas sobre as paredes de pedra viva, e o aroma de pinho e couro polido pairava no ar.
Vesti a túnica cerimonial com movimentos contidos, como se cada gesto devesse carregar o peso do nome que me precedia.
Verde musgo, com fios dourados entrelaçados como raízes mágicas. Um presente da minha mãe, que dizia que as cores do bosque protegiam os filhos que sabiam ouvir o sussurro das árvores.
Ajustei os broches nos ombros, cravejados com o brasão da nossa casa — a lua tripla entre espinhos, símbolo da linhagem real dos elfos do Norte.
Encostei as mãos na borda do espelho alto, entalhado em madeira prateada, e encarei o reflexo.
Meus olhos — violeta intenso, herdados da linhagem antiga — pareciam maiores sob a luz trêmula. A pele clara ainda guardava os vestígios do treino pesado, com pequenas marcas avermelhadas nos antebraços e o leve tremor dos músculos jovens tentando endurecer sob a pressão dos dias.
Ainda não era um guerreiro completo, mas os ombros já ganhavam forma, e havia determinação nos traços — mesmo nos mais suaves.
Os cabelos escuros caíam até a base da nuca, ligeiramente desalinhados, como se recusassem a se dobrar ao rigor da realeza. O queixo ainda era levemente fino, mas já desenhava a promessa de firmeza.
Eu era feito de promessas naquela época.
Algumas minhas. Outras... impostas.
Fechei os olhos por um momento. Vi meu pai em minha mente — Hero Syltharien, de pé no salão, como uma estátua feita de gelo e aço. Nenhum atraso era perdoado. Nenhuma hesitação, esquecida.
Respirei fundo, puxando coragem junto com o ar.
O baile me aguardava.
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Atualizado até capítulo 36
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