Ouvido Amigo

A noite seguia viva dentro do castelo, mas para mim, tudo parecia distante. O riso dos nobres, os brindes estalando em copos de cristal, a dança fluida dos pares no salão... tudo perdeu cor assim que ela sumiu.

Dei um passo adiante, guiado por um instinto que não compreendi de imediato. O tecido das cortinas ainda balançava com o vento, como se o próprio ar lamentasse a pressa com que ela partira. E ali, rente ao chão de mármore polido, repousava um lenço.

Curvando-me com cuidado, apanhei o pano delicado entre os dedos. Era de linho branco, bordado com um fio dourado quase invisível, e tinha o toque de algo que fora mantido perto do coração. Levei-o ao rosto, sem sequer pensar no gesto.

O aroma me atingiu com a força de uma lembrança que eu nunca vivi.

Gardênia.

Um perfume floral e forte, levemente doce, mas equilibrado com um toque de verde fresco, quase cítrico. Havia também algo cremoso, profundo, como a polpa de um coco maduro à sombra de uma floresta antiga. Era o tipo de fragrância que se instala nos cantos da memória e se recusa a partir. Como se ela mesma tivesse sido feita de aroma, e não de carne.

Guardei o lenço no bolso interno da túnica, junto ao peito. E então comecei a procurá-la.

Atravessei o salão novamente, ignorando os cumprimentos formais, os olhares curiosos e os convites vazios. Subi escadas que levavam a varandas mais altas, percorri os jardins onde casais se escondiam em sombras, passei pelos corredores laterais da ala oeste — onde os músicos se reuniam nas pausas. Em cada canto, procurei por um vestígio dela. Um som de voz. Um brilho de trança dourada. Um resquício do perfume.

Nada.

Era como se ela tivesse evaporado da noite.

A busca me levou ao portão dos fundos, onde os criados iam e vinham em suas tarefas discretas. Perguntei com o tom mais natural que consegui sustentar. Ninguém a vira. Ou se viram, não a reconheceram como alguém de importância.

E talvez não fosse mesmo.

Mas naquele momento, ela era tudo o que minha alma inquieta buscava.

Voltei ao salão uma última vez antes do amanhecer tingir as nuvens. A música havia cessado. As velas ardiam em fim de pavio. O mundo estava mais silencioso, e ainda assim, minha mente zunia com perguntas que eu não sabia como calar.

Guardei o lenço com mais cuidado desta vez. Entre páginas de um livro esquecido na biblioteca ocidental — o mesmo onde minha mãe, dizem, lia histórias antigas sobre reinos encantados e amores impossíveis.

Se eu a visse novamente… perguntaria seu nome. Mas até lá, teria apenas o aroma de gardênia para me lembrar que ela foi real. Mesmo que só por uma noite.

⚔️

Troquei as roupas formais por um traje mais simples: camisa de linho verde-acinzentada, calças escuras e botas firmes de couro. O silêncio do quarto se estendia como um eco do vazio que senti ao não encontrá-la. O lenço ainda estava comigo, dobrado cuidadosamente dentro do meu colete, exalando aquele aroma inebriante de gardênia — floral, doce e sutilmente cremoso, como se ela ainda estivesse por perto, rindo baixinho de minha impulsividade.

Desci até as baias, cruzando os corredores de pedra que levavam aos estábulos reais. Era ali, entre os animais, que eu realmente respirava. Eles não exigiam posturas, reverências ou palavras envernizadas. Apenas presença.

Assim que entrei, os olhos castanhos de Dargo, meu cavalo mais velho, me seguiram com familiaridade. Ele era grande, de pelagem preta como a noite e temperamento firme. Ao lado dele, o temperamental Kairon, de pelos acobreados e crina alva, empinava levemente a cabeça como quem reclama da demora. Thalos, o mais veloz, de porte magro e pelagem prateada, relinchou baixo. Seu espírito livre sempre me lembrava daquilo que me era negado por dever.

Das fêmeas, a mais velha, Yllira, mantinha os olhos semicerrados, preguiçosos. De pelagem marrom-dourada, ela exalava serenidade. Vexa, sua irmã menor, era inquieta — de pelagem cinza-escura e olhos dourados, vivia batendo o casco, impaciente por correr.

E então havia Cristal, a potra. Branca como a neve sob luar, suas patas finas ainda aprendiam a tocar o mundo sem tropeços. Ela se aproximou com seu focinho gelado e olhos grandes, quase humanos. Acariciei sua testa e ela relinchou baixo, reconhecendo minha voz mental, meu afeto silencioso.

Salvei o nome de cada um deles, como marcas de algo meu em meio a tantas responsabilidades que me roubavam o tempo.

Fiquei ali, entre escovas, feno e respirações quentes. Cuidar deles me acalmava, me lembrava de que havia coisas que não exigiam máscaras. Mas nem mesmo o cheiro familiar dos animais ou o som dos cascos no chão úmido afastava a lembrança do toque dela. A visão de seus olhos azuis ainda me perseguia como uma maldição doce.

E eu sabia: eu não descansaria até encontrá-la.

⚔️

A noite ainda pesava sobre o reino como um segredo que se recusa a ser esquecido. O castelo dormia em silêncio, mas minha mente, como de costume, insistia em marchar para longe — por becos que nem mesmo meus instintos desejavam explorar.

Troquei as vestes reais por roupas simples. Tecido leve, sem brasão, sem peso. Apenas eu.

Caminhei até as baias com os ombros mais baixos que o habitual e a alma, bem… ela preferiu ficar atrás, quieta, fingindo que não estava sendo arrastada comigo. Assim que empurrei o portão de madeira, o cheiro familiar de feno, couro e vida me envolveu. Ah, enfim… um lugar onde não sou observado por mil olhos sedentos por fraqueza.

— Boa noite, monarca de quatro patas — murmurei, me aproximando de Thalos.

Ele ergueu a cabeça com seu ar soberano. A crina prateada caía como uma cascata de luar sobre os olhos escuros e atentos. Seu silêncio era o mesmo de sempre: julgador, fiel e, acima de tudo, presente.

Peguei a escova pendurada e comecei o ritual. Lento, cuidadoso, como se cada movimento limpasse não só o pelo, mas também a inquietação que rastejava em mim desde o pôr do sol.

— Não vai dizer nada sobre a noite passada? — questionei, a escova deslizando pelas costelas largas. — Achei que você, pelo menos, me repreenderia. Com um relincho indignado, talvez. Ou um coice bem direcionado, se estivesse de mau humor.

Thalos apenas respirou fundo, como se a sabedoria antiga de sua linhagem não tivesse paciência para as minhas ironias humanas.

— Eu sei. Foi imprudente. Ou… talvez necessário. — Fiz uma pausa, observando o movimento lento de seus flancos sob minha mão. — Às vezes eu me pergunto se ser rei é mesmo um título… ou uma maldição bem polida.

A brisa da noite adentrou pelas frestas da madeira, acariciando minha nuca como um sussurro esquecido dos deuses. Thalos inclinou levemente a cabeça e me encarou.

— Eu sei o que está pensando. Que estou me perdendo. Ou pior — sorri de lado —, que já me perdi há muito tempo e só agora percebi.

Me abaixei para verificar uma das ferraduras. Ele ficou imóvel. Sempre me respeitava, mesmo quando eu não respeitava a mim mesmo.

— Você ao menos teria seguido um caminho mais honesto… fugir pelos campos, livre. Correr até as patas não suportarem mais. — Me levantei, encostando a testa contra a lateral quente de seu pescoço. — Às vezes, invejo essa simplicidade.

Ele me respondeu do único jeito que sabia: com silêncio. Mas naquele silêncio havia algo... um consolo que não vinha de palavras, e sim de presença.

Continuei escovando, como quem procura respostas entre os pelos, ou talvez só um instante de paz entre tudo que se desmancha lá fora. No fundo, acho que ele entende mais de mim do que qualquer conselheiro com suas frases empoladas e alianças falsas.

O rangido da porta de madeira me alertou da presença dela antes mesmo que o cheiro doce de camomila e hortelã preenchesse o ar — o aroma que sempre cercava minha mãe, como se a própria natureza insistisse em suavizar sua presença.

— Falando com os cavalos de novo? — A voz de Hipólita soou baixa, entre um sorriso e um suspiro.

Continuei escovando o flanco brilhante de Thalos, como se ainda esperasse que ele me respondesse. Meus dedos seguiam o ritmo do silêncio, e só então olhei por sobre o ombro.

— Pelo menos eles escutam sem julgamento — murmurei, virando-me lentamente. — E às vezes... entendem mais do que os próprios conselheiros do reino.

Ela se afastou da porta e caminhou devagar até mim, as dobras do vestido deslizando pela palha como se não tocassem o chão. Seus olhos dourados tinham aquele brilho que os anos jamais conseguiram apagar — uma mistura de sabedoria, ternura... e tristeza.

— Não vi você sorrir uma vez sequer ontem — disse ela, parando ao lado de Cristal, que relinchou suavemente. — Não dançou mais do que uma vez, não bebeu mais do que um gole. Parecia estar em outro lugar.

— Talvez eu estivesse — confessei, apoiando o queixo nas costas da mão ainda sobre o dorso quente de Thalos. — Em olhos que não conheço. Em um gesto que ainda sinto nos dedos. Em uma fuga que deixou um perfume no ar... e nada mais.

Ela me olhou com aquele modo que só mães têm — como se conseguisse enxergar cada cicatriz que tentei esconder até de mim mesmo.

— Quem era ela?

— Eu não sei — respondi, com a voz mais baixa que pretendia. — Mas ela fugiu como se eu fosse fogo. E, talvez... talvez eu seja.

Hipólita tocou meu ombro com delicadeza. Não havia repreensão, apenas silêncio e presença. Uma mãe que já perdera amores, impérios e noites demais para se preocupar com convenções.

— Não tema o que arde, meu filho. Alguns só têm medo da chama porque sabem que podem se queimar... e nunca mais ser os mesmos.

Suspirei. A noite ainda parecia presa em minha pele, como se aquele baile tivesse deixado mais do que lembranças. Deixou fome.

— Se eu pudesse... só mais uma vez... ver os olhos dela — sussurrei. — Dizer algo, qualquer coisa. Saber seu nome. Saber se fui só mais um príncipe com boa postura... ou se ela também... sentiu.

Hipólita me puxou para um breve abraço. Breve, mas suficiente para me lembrar que, mesmo rei, ainda era filho. Ainda era humano.

— Quando o destino quer brincar de esconder, meu caro... ele o faz com maestria. Mas nenhuma névoa dura para sempre.

Cristal relinchou outra vez, como se aprovasse. Sorri, enfim. Pouco, mas real.

— Vamos ver o que o destino faz amanhã, então — murmurei, olhando para a porta do estábulo como se ela ainda pudesse surgir ali, com o vestido leve e o olhar de vendaval.

...⚔️...

O som cadenciado das correntes se erguendo e baixando enchia o ar da arena de treinos. O ferro tilintava como uma trilha metálica para a tensão que queimava em meus músculos. O suor descia pelas têmporas, e o peso em minhas mãos parecia mais leve do que a confusão que carregava nos pensamentos.

— Então… ela deixou só um lenço — comentou Idril, com aquele meio sorriso que sempre antecedia uma provocação. Ele estava de pé ao meu lado, segurando uma barra com facilidade, como se não pesasse o triplo do que um homem comum aguentaria.

— Um lenço com cheiro de gardênia — respondi, prendendo a respiração antes de levantar mais uma vez. — Como se deixasse um pouco de si e, ao mesmo tempo, me desafiasse a encontrá-la.

— Dramático como sempre. Já pensou em escrever poesia, alteza?

Bufei, deitando a barra no chão com mais força do que o necessário. O impacto ecoou.

— Não consigo tirá-la da cabeça, Idril.

Ele se aproximou e jogou uma toalha no meu ombro. Os olhos verdes brilharam com aquele traço sarcástico que nunca o abandonava, mas havia também compreensão neles — uma profundidade silenciosa, moldada por histórias que ele raramente contava.

— Essa é nova. O Cardan que conheço sempre teve controle — ele disse, apoiando-se na parede, cruzando os braços. — Mas aí vem uma donzela misteriosa com cheiro de jardim e te faz agir como um adolescente descompassado?

— Ela não é qualquer uma — repliquei, enxugando o rosto. — Ela surgiu como se fosse feita de caos e silêncio. Disse meu nome como se soubesse quem eu sou por dentro, como se me enxergasse além da coroa.

Idril arqueou uma sobrancelha.

— Talvez tenha enxergado mesmo. E isso te assustou, não?

Assenti, encarando o chão por um instante, como se ele tivesse todas as respostas que eu procurava.

— Eu a procurei a noite inteira… e encontrei apenas o rastro de um perfume e aquele maldito lenço.

Idril deu uma risada curta.

— A primeira queda é sempre a mais funda. E a mais idiota. Mas se for real… também é a única que vale.

Ficamos em silêncio por um momento. A respiração desacelerava, o corpo começava a ceder ao cansaço, mas a mente seguia desperta — cheia de imagens dela.

— Você acha que devo esquecê-la? — perguntei, mesmo sabendo que não conseguiria.

Ele olhou para mim como quem pesa as opções entre a loucura e a lucidez.

— Eu acho que você deve encontrá-la. Porque, se não fizer isso, vai passar o resto da vida se perguntando. E, convenhamos, você é insuportável quando está arrependido.

Sorri pela primeira vez desde a noite anterior. Idril sempre soube o que dizer, mesmo quando não era o que eu queria ouvir.

— Obrigado.

— Não me agradeça ainda — ele respondeu, voltando a pegar a barra. — Vamos terminar o treino. Se você vai correr atrás dessa garota, vai precisar estar mais forte do que nunca.

E eu sabia… que ele estava certo.

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