As cinzas cobrem o chão como um manto pesado, obscurecendo os corpos que se misturam — inimigos e aliados, indistintos na morte. Caminho entre eles, cada passo um lembrete do preço que pagamos, do sangue que jorra além do campo de batalha, dentro do meu próprio peito.
Ser rei é carregar uma coroa que não brilha, mas pesa como uma âncora em um mar de desespero. Não são apenas minhas escolhas; são as vidas de muitos que pendem na balança, e nenhuma decisão me traz paz.
Perdi dois amores nesta guerra cruel. O primeiro, tragicamente, em meus braços — sua respiração falhando, seu olhar se apagando, e a dor crua de sentir a vida escapar por entre meus dedos ainda me dilacera a alma em noites solitárias.
O segundo, ausente de sofrimento, mas não de ausência. Ela nunca foi minha, amava outro, e confesso, em horas insones, fui dominado pelo fantasma dela — pelo que poderia ter sido se eu fosse o homem certo.
A solidão de reinar com pulso firme é um castigo silencioso. Aqui estou, em Shandrax, entre ruínas e memórias, pronto para revelar a história que me fez quem sou — porque o passado é a única companhia que me resta antes que o silêncio me consuma por completo.
O General Eliel se aproxima com a postura rígida de quem já perdeu mais batalhas do que ousa contar. Seus olhos passam por mim com respeito — mas também com algo que reconheço: exaustão.
— A Rainha do Submundo já recolheu os corpos dos seus... e partiu, Vossa Majestade.
Assenti.
Não havia mais nada a ser dito.
Ela partiu — como sempre faz.
Silenciosa, letal, bela como a própria morte que comanda.
Ivy.
Graças ao nosso tratado, vencemos hoje. Se ela não tivesse se unido a mim… talvez eu fosse agora só mais um cadáver entre as ruínas.
Ela é uma aliada perfeita.
Impossível não vê-la como uma rainha absoluta — feita de aço e sombras. Sempre admirei sua força, seu domínio, sua ausência de hesitação.
E mesmo sabendo que ela nunca foi minha… não posso negar:
É dona do meu coração.
Há décadas que ela habita meus pensamentos. Não como um amor juvenil, mas como um sussurro constante — um eco que insiste em voltar mesmo quando tento enterrar.
Pensei nela, sim. Mais vezes do que ouso admitir.
Em noites que a solidão aperta sob o peso do manto real, quando o silêncio se torna mais cruel que qualquer batalha, confesso:
Houve momentos em que desejei ser outro homem. Um que ela pudesse amar.
Mas o trono não permite isso.
Ele me exige inteiro.
E agora, entre cinzas e estandartes caídos, compreendo que minha história não pode mais ser ignorada.
Antes que o mundo me esqueça...
Antes que a culpa me cale de vez...
Preciso contar como tudo começou.
O passado tem cheiro de terra molhada, sangue fresco e folhas partidas.
Lembro da floresta. Do som seco das lâminas se chocando e do peso da respiração ardendo em meus pulmões como brasa.
Eliel não tinha piedade — e eu não esperava que tivesse.
— Mais rápido, Cardan! — ele rugia, e sua voz cortava o ar com mais precisão do que qualquer espada.
— Você quer viver ou morrer como um príncipe mimado?
Meus braços ardiam.
O suor escorria pelas costas, descendo pela espinha até a cintura, enquanto meus pés afundavam no solo úmido, tentando manter equilíbrio.
A lâmina dele vinha de cima, cruel, pesada — não era um golpe de ensino, era para machucar.
E eu sabia: se caísse, ele não pararia. Porque o mundo também não pararia.
— "Ataque. Não espere. Leia o corpo, não os olhos."
Era o que ele sempre dizia.
Mas naquela manhã, o sol mal atravessava as copas densas das árvores, e tudo que eu lia era o cansaço do meu próprio corpo, pedindo trégua.
Eu tinha dezessete invernos.
Já sabia matar. Mas ainda não sabia carregar as mortes.
Com um grito abafado, avancei.
As espadas se cruzaram com violência, e o impacto subiu pelo meu braço como uma onda. Meus músculos tremiam, o punho escorregava com o suor. Eliel sorriu com o canto da boca — um sorriso sem alegria.
— Melhor. Mas não o suficiente.
Então ele girou, me desarmou com um movimento seco, e a ponta da lâmina repousou contra meu pescoço.
— Num campo de batalha, você estaria morto. E não pense que seu sangue real te salvaria.
Engoli seco. O gosto era de ferro.
Mas não era do sangue.
Era da raiva. Da frustração.
Do orgulho ferido.
Afastei a lâmina com a palma da mão, empurrei o corpo para trás e respirei fundo. O coração martelava. Os ombros pesavam.
— De novo. — murmurei.
Eliel me encarou por um segundo longo, e então recuou.
Assentiu.
E o inferno recomeçou.
Depois da terceira queda — e do segundo corte superficial no ombro — Eliel finalmente deu um passo para trás e guardou a espada.
— Chega. Por hoje. Antes que você desmaie de orgulho ferido.
Eu não respondi. Apenas me afastei cambaleando, sentindo o corpo pulsar sob a armadura de couro suada. Meus músculos gritavam, mas minha alma… minha alma se silenciava nesses momentos. Era ali que eu mais me sentia real.
Seguimos sem palavras até o riacho, um fio de água cristalina que cortava a clareira como uma cicatriz aberta entre as raízes.
Me joguei de joelhos na margem e mergulhei o rosto. A água gelada mordeu minha pele e levou o suor, a poeira, a raiva. Eliel se sentou ao meu lado, com mais peso nas costas do que o corpo aparentava.
— Você está melhor. — ele disse, depois de um tempo. — Mais rápido. Menos impulsivo.
— "Menos impulsivo." — repeti com uma risada curta, enxugando o rosto com a barra da camisa. — Um dia você ainda me elogia sem parecer que está me insultando.
— Duvido. Você não saberia lidar. — respondeu ele, com aquele meio sorriso que quase nunca surgia.
Por um momento, só ouvimos a água correndo, como se tudo além da floresta deixasse de existir.
— Eliel... — murmurei, olhando para os próprios reflexos quebrados pela correnteza. — Você acha que um dia vou ser bom o suficiente?
Ele demorou a responder. Pegou uma pedra e lançou no rio. Ela quicou duas vezes antes de afundar.
— A questão, Cardan, não é se será bom o suficiente. É se você estará disposto a carregar o peso que vem com isso.
— Ser rei não é vencer batalhas. É enterrar os que lutaram por você.
Engoli em seco.
Sabia que ele falava por experiência. Eliel era um general antes mesmo de eu nascer. Tinha mais cicatrizes do que dedos. Mais memórias que noites de sono.
Ele se levantou com um leve estalo nos joelhos e sacudiu a poeira das vestes.
— Vamos. Está quase anoitecendo.
Virou-se e, antes de seguir adiante, lançou o aviso com a voz carregada de ironia:
— É melhor nos arrumarmos para o Baile da Primeira. Se nos atrasarmos, Hero vai arrancar nossos olhos e servir como decoração no salão.
Suspirei, passando a mão nos cabelos molhados.
Fiquei em silêncio por um segundo.
Hero. Meu pai. O rei.
Homem de muitas vitórias… e poucas palavras.
Pontualidade, postura, perfeição — tudo nele era afiado. Inclusive suas expectativas.
E falhar diante dele doía mais que qualquer lâmina de treino.
Respirei fundo e segui Eliel floresta adentro, com o corpo marcado pelo esforço...
E a alma, por tudo que ainda viria.
...⚔️...
No quarto real destinado aos herdeiros de Shandrax, o silêncio era solene. A luz das tochas desenhava sombras longas sobre as paredes de pedra viva, e o aroma de pinho e couro polido pairava no ar.
Vesti a túnica cerimonial com movimentos contidos, como se cada gesto devesse carregar o peso do nome que me precedia.
Verde musgo, com fios dourados entrelaçados como raízes mágicas. Um presente da minha mãe, que dizia que as cores do bosque protegiam os filhos que sabiam ouvir o sussurro das árvores.
Ajustei os broches nos ombros, cravejados com o brasão da nossa casa — a lua tripla entre espinhos, símbolo da linhagem real dos elfos do Norte.
Encostei as mãos na borda do espelho alto, entalhado em madeira prateada, e encarei o reflexo.
Meus olhos — violeta intenso, herdados da linhagem antiga — pareciam maiores sob a luz trêmula. A pele clara ainda guardava os vestígios do treino pesado, com pequenas marcas avermelhadas nos antebraços e o leve tremor dos músculos jovens tentando endurecer sob a pressão dos dias.
Ainda não era um guerreiro completo, mas os ombros já ganhavam forma, e havia determinação nos traços — mesmo nos mais suaves.
Os cabelos escuros caíam até a base da nuca, ligeiramente desalinhados, como se recusassem a se dobrar ao rigor da realeza. O queixo ainda era levemente fino, mas já desenhava a promessa de firmeza.
Eu era feito de promessas naquela época.
Algumas minhas. Outras... impostas.
Fechei os olhos por um momento. Vi meu pai em minha mente — Hero Syltharien, de pé no salão, como uma estátua feita de gelo e aço. Nenhum atraso era perdoado. Nenhuma hesitação, esquecida.
Respirei fundo, puxando coragem junto com o ar.
O baile me aguardava.
O salão real exalava uma reverência ancestral. Não era apenas a imponência da abóbada talhada em mármore de luz líquida, nem os vitrais gigantes que contavam a história dos Sete Elfos Primordiais — era o que não se via que mais pesava ali.
O cheiro sutil de magia antiga pairava no ar, como flores noturnas desabrochando em segredo.
Pisei no mármore com cuidado. Meus passos calmos, estudados, ressoavam entre os arcos altos. A túnica verde musgo cintilava sob os feixes dourados das luminárias encantadas, e cada movimento meu era observado, medido — não apenas por conselheiros e generais, mas pelos olhos atentos do povo.
Os elfos dos vilarejos vizinhos estavam ali, em trajes solenes, tecidos com fibras naturais e bordados que imitavam galhos, estrelas e raízes. As cores da floresta os envolviam — tons terrosos, verdes suaves, ocres e azuis como a casca de pedra molhada. Suas roupas não brilhavam como as da nobreza, mas possuíam um esplendor silencioso, como o das folhas ao entardecer.
Vinham de Renois, de Leffel, de entremeios esquecidos pelos mapas. Suas presenças eram oferendas vivas à continuidade da aliança com nossa casa real. Quando caminhavam, não se ouvia o som dos passos — como se ainda pertencessem à floresta.
Stefan, meu irmão mais novo, estava à esquerda do trono. Vestia um traje cerimonial com gola alta, meio perdido entre os próprios olhos arregalados e os sorrisos que ensaiava para os convidados. Hipólita, nossa mãe, estava ao lado dele como um rochedo envolto em seda — alta, digna, com sua coroa de espinhos dourados e uma postura que desafiava a própria eternidade.
Meu pai, Hero, já estava à frente do trono, dialogando com o Conselho das Nove Casas. Não havia afeto visível em sua postura. A ele cabia o dever de manter o mundo unido — e a nós, o dever de parecer que estava funcionando.
Caminhei até minha posição à direita da escadaria principal. Guardas élficos com armaduras de folhas petrificadas se alinhavam em cada canto, como estátuas prontas para reagir ao menor sinal de desacato. Os músicos — elfos do norte com dedos finíssimos — tocavam harpas de gelo e cordas de sangue de salgueiro. A melodia era suspensa no ar como uma memória, oscilando entre melancolia e cerimônia.
A primeira dança logo começaria. Eu seria o primeiro a abrir, como ditava a tradição.
E ali, entre centenas de rostos, perfumados com pétalas e pólen de magia leve, eu não sabia ainda quem entre eles me viraria o mundo ao avesso.
Mas senti.
Como o vento que antecede a tempestade.
Como a raiz que racha a terra em silêncio.
O coração dos elfos não pulsa apenas com sangue, mas com memória viva.
E algo — ou alguém — estava prestes a deixar uma marca na minha.
O salão real estava tomado por uma luz dourada que escorria das esferas de cristal suspensas no ar, como se a própria magia antiga da floresta tivesse decidido abençoar aquela noite. Colunas esculpidas em raízes vivas subiam até o teto arqueado, entrelaçadas com cipós floridos que se moviam levemente, como se dançassem ao som da orquestra. O chão, de madeira polida de carvalho prateado, refletia os passos suaves dos convidados. E havia o aroma — um perfume inebriante de lavanda, musgo e poder arcano — que denunciava a presença dos elfos de linhagem pura.
As tribos mais distantes estavam ali. Elfos dos vilarejos do Leste, trajando túnicas finas em tons da floresta; outros de Renois, com joias cravadas em pedras lunares e peles encantadas sobre os ombros. Todos se moviam com uma reverência antiga, como se cada gesto carregasse séculos de tradição e orgulho. A magia era tão palpável que parecia crepitar no ar — uma dança invisível entre os que respiravam natureza e feitiço em igual medida.
Ainda não era rei, mas já caminhava como um. Meus ombros aprendiam o peso da coroa antes mesmo que ela tocasse minha cabeça.
Fui chamado para abrir a dança, e não podia recusar. A tradição exige que o herdeiro da coroa convide a filha de um dos clãs nobres na primeira valsa. Estendi a mão à jovem Alenwë Thindiel, uma elfa de traços etéreos — pele cor de marfim, cabelos dourados trançados com folhas secas encantadas, olhos da cor do âmbar envelhecido. Ela curvou-se com graça e deslizou comigo até o centro do salão.
A dança começou.
Seguimos os passos com precisão quase ritual. Meus olhos fixos nos dela por cortesia e controle, mas meu coração... algo nele já começava a se distrair. Foi no segundo giro, quando os pares se abriram em semicírculo e as portas laterais do salão se escancararam, que a vi.
Ela.
A jovem entrou como se a noite tivesse parado só para vê-la passar. Seu vestido azul-petróleo fluía como água em movimento, feito de um tecido encantado que espelhava o brilho da lua. Os cabelos escuros estavam presos em dezenas de pequenas tranças adornadas com fios de cristal e contas de madeira, caindo por sobre os ombros como galhos rendidos ao vento. O sorriso dela era leve — quase tímido — mas havia uma segurança nos olhos, como se ela já soubesse que mudaria tudo.
Olhou-me.
Por um segundo — um único segundo — nossos olhares se encontraram. E algo dentro de mim estalou. A música continuava, a dança girava, o salão fervilhava... mas minha alma, essa parou.
Eu não sabia seu nome. Não sabia sua história. Só sabia que, mesmo envolto por reinos e obrigações, mesmo cercado por magia e lendas, nunca vira algo tão puro e devastador como a forma como seus olhos azuis se agarraram aos meus.
Alenwë ainda dançava comigo. Mas meu corpo estava ali apenas por dever. Meu espírito já se debatia por uma razão para conhecê-la. Para me aproximar.
Ela.
A dança terminou, os pares se dispersaram. Mas eu já não era o mesmo. E aquela noite estava apenas começando.
O salão ainda vibrava com luz e música, mas para mim, tudo se resumia àquela figura do outro lado do salão. Ela. Seus olhos, de um azul profundo como o céu antes da tempestade, cintilavam sob a luz dourada dos candelabros. Ela deslizava pelo salão com leveza, como se a gravidade a tratasse com mais gentileza que os outros. Observei-a por entre os corpos dançantes, estudando cada gesto com fascínio contido.
Depois da dança inicial,meus olhos não conseguiam mais se fixar em nenhuma outra. A música seguiu, os pares se alternavam, mas meu olhar permanecia cravado nela.
Ela afastou-se da multidão e dirigiu-se à longa mesa de petiscos, onde frutas secas, pães com mel silvestre e taças de néctar encantado reluziam como joias sob as bandejas de prata. Fingi distração, contornando os convidados até alcançar o lado oposto da mesa, onde ela se inclinava para escolher entre tâmaras encantadas e figos adormecidos.
Ela estendeu a mão com graça e leveza para pegar uma amêndoa envolta em açúcar de fadas. Sua pele tinha um tom cálido, quase dourado, e seus cabelos, presos em longas tranças que serpenteavam até a metade das costas, pareciam vivos à luz das tochas mágicas. Fingindo distração, estiquei a mão até um bule de prata próximo, apenas para observá-la mais de perto.
Foi nesse instante que nossos olhos se encontraram.
O tempo pareceu hesitar.
Ela me olhou por alguns segundos, curiosa, e depois fez uma reverência leve, respeitosa, mas com um brilho zombeteiro nos olhos — como se soubesse que me roubara o fôlego.
Aproximei-me devagar, como quem pisa em um campo encantado. Meu coração batia com força descompassada, mas minha voz manteve-se firme ao cruzar a distância entre nós:
— A senhorita me concederia uma dança?
Ela assentiu, sem dizer palavra. Apenas estendeu a mão.
E então dançamos.
A música mudou para uma melodia antiga, suave, como se o salão inteiro houvesse sido enfeitiçado para girar ao nosso redor. Seus dedos repousavam sobre os meus com uma delicadeza etérea, e seus olhos — por vezes altivos, por vezes brincalhões — encaravam os meus em silêncio. Cada movimento dela era calculadamente leve, como uma brisa que tangencia a pele. O tecido do vestido Azul- petróleo que vestia ondulava como folhas sob vento encantado, e suas tranças balançavam com cada giro, como cordas de magia viva.
Não falamos. Nenhum de nós ousou romper o encanto daquele momento.
Havia apenas a música, o calor suave da sua palma na minha, e a certeza silenciosa de que, mesmo sem palavras, algo havia começado. Um elo.
E como todo feitiço verdadeiro… perigoso.
A sacada lateral do salão era banhada por uma luz tênue, quase etérea, como se as estrelas se debruçassem sobre nós apenas por curiosidade. O som da música ainda ecoava distante, abafado pelas paredes douradas do salão, e a brisa noturna trazia consigo o cheiro doce das flores silvestres dos jardins suspensos.
Caminhei ao lado dela com passos contidos, fingindo uma tranquilidade que eu definitivamente não sentia.
— O céu parece mais nítido esta noite, não? — arrisquei, a voz um pouco mais baixa que o habitual.
Ela sorriu. Aquele sorriso leve, que não era dado por obrigação — mas por encanto.
— Talvez porque estamos longe demais das fogueiras dos vilarejos — respondeu, com aquela voz de primavera tardia.
— E você… de qual vilarejo vem? — perguntei, sem conseguir disfarçar o fascínio.
— Therwen. Fica ao sul das Colinas de Lume. Poucos dias de viagem, se você tiver um bom corcel e não medo da névoa.
Therwen. O nome ecoou como uma canção antiga dentro de mim. Meu olhar caiu sobre os lábios dela quando ela pronunciou o nome do próprio lar — e pela primeira vez, percebi como até o som da sua respiração me prendia.
— E você, príncipe... costuma sair tanto assim do castelo?
Ela me olhou com certa malícia suave nos olhos. Azuis, como águas profundas sob o luar.
— Não tanto quanto gostaria. Nem tanto quanto deveria — admiti, e sorri de lado.
Ela desviou os olhos por um segundo, mas não antes de eu ver o rubor discreto subir-lhe às faces.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Pelo contrário. Era como um tecido invisível que nos envolvia, onde cada respiração contava uma história. E quando o vento soprou mais forte, fazendo uma mecha solta escapar da trança que moldava seu cabelo, eu me vi dominado por algo que não compreendi — mas que me arrastava para frente.
Aproximei-me. Um passo.
Dois.
A mão dela estava apoiada na mureta de pedra esculpida. Os dedos finos. As unhas limpas. Os lábios úmidos.
Então, sem aviso, sem cálculo, sem protocolo… me inclinei e a beijei.
Foi rápido. Um toque hesitante. Quase um pedido de permissão disfarçado de impulso.
Ela recuou imediatamente. Os olhos arregalados, o corpo enrijecido. O encanto se quebrou como vidro sob pressão.
— Eu… me desculpe — sussurrei, mas ela já se virava.
— Eu não devia… — murmurou, mais para si do que para mim. E então correu. Sumiu pelas cortinas de linho que separavam a sacada do salão principal.
Fiquei ali, com o gosto de sua presença ainda preso à minha boca. As estrelas, antes tão belas, pareciam agora rir de mim.
E, pela primeira vez naquela noite, senti que algo dentro de mim havia sido roubado — e deixado para trás junto com o rastro do perfume dela.
A noite seguia viva dentro do castelo, mas para mim, tudo parecia distante. O riso dos nobres, os brindes estalando em copos de cristal, a dança fluida dos pares no salão... tudo perdeu cor assim que ela sumiu.
Dei um passo adiante, guiado por um instinto que não compreendi de imediato. O tecido das cortinas ainda balançava com o vento, como se o próprio ar lamentasse a pressa com que ela partira. E ali, rente ao chão de mármore polido, repousava um lenço.
Curvando-me com cuidado, apanhei o pano delicado entre os dedos. Era de linho branco, bordado com um fio dourado quase invisível, e tinha o toque de algo que fora mantido perto do coração. Levei-o ao rosto, sem sequer pensar no gesto.
O aroma me atingiu com a força de uma lembrança que eu nunca vivi.
Gardênia.
Um perfume floral e forte, levemente doce, mas equilibrado com um toque de verde fresco, quase cítrico. Havia também algo cremoso, profundo, como a polpa de um coco maduro à sombra de uma floresta antiga. Era o tipo de fragrância que se instala nos cantos da memória e se recusa a partir. Como se ela mesma tivesse sido feita de aroma, e não de carne.
Guardei o lenço no bolso interno da túnica, junto ao peito. E então comecei a procurá-la.
Atravessei o salão novamente, ignorando os cumprimentos formais, os olhares curiosos e os convites vazios. Subi escadas que levavam a varandas mais altas, percorri os jardins onde casais se escondiam em sombras, passei pelos corredores laterais da ala oeste — onde os músicos se reuniam nas pausas. Em cada canto, procurei por um vestígio dela. Um som de voz. Um brilho de trança dourada. Um resquício do perfume.
Nada.
Era como se ela tivesse evaporado da noite.
A busca me levou ao portão dos fundos, onde os criados iam e vinham em suas tarefas discretas. Perguntei com o tom mais natural que consegui sustentar. Ninguém a vira. Ou se viram, não a reconheceram como alguém de importância.
E talvez não fosse mesmo.
Mas naquele momento, ela era tudo o que minha alma inquieta buscava.
Voltei ao salão uma última vez antes do amanhecer tingir as nuvens. A música havia cessado. As velas ardiam em fim de pavio. O mundo estava mais silencioso, e ainda assim, minha mente zunia com perguntas que eu não sabia como calar.
Guardei o lenço com mais cuidado desta vez. Entre páginas de um livro esquecido na biblioteca ocidental — o mesmo onde minha mãe, dizem, lia histórias antigas sobre reinos encantados e amores impossíveis.
Se eu a visse novamente… perguntaria seu nome. Mas até lá, teria apenas o aroma de gardênia para me lembrar que ela foi real. Mesmo que só por uma noite.
⚔️
Troquei as roupas formais por um traje mais simples: camisa de linho verde-acinzentada, calças escuras e botas firmes de couro. O silêncio do quarto se estendia como um eco do vazio que senti ao não encontrá-la. O lenço ainda estava comigo, dobrado cuidadosamente dentro do meu colete, exalando aquele aroma inebriante de gardênia — floral, doce e sutilmente cremoso, como se ela ainda estivesse por perto, rindo baixinho de minha impulsividade.
Desci até as baias, cruzando os corredores de pedra que levavam aos estábulos reais. Era ali, entre os animais, que eu realmente respirava. Eles não exigiam posturas, reverências ou palavras envernizadas. Apenas presença.
Assim que entrei, os olhos castanhos de Dargo, meu cavalo mais velho, me seguiram com familiaridade. Ele era grande, de pelagem preta como a noite e temperamento firme. Ao lado dele, o temperamental Kairon, de pelos acobreados e crina alva, empinava levemente a cabeça como quem reclama da demora. Thalos, o mais veloz, de porte magro e pelagem prateada, relinchou baixo. Seu espírito livre sempre me lembrava daquilo que me era negado por dever.
Das fêmeas, a mais velha, Yllira, mantinha os olhos semicerrados, preguiçosos. De pelagem marrom-dourada, ela exalava serenidade. Vexa, sua irmã menor, era inquieta — de pelagem cinza-escura e olhos dourados, vivia batendo o casco, impaciente por correr.
E então havia Cristal, a potra. Branca como a neve sob luar, suas patas finas ainda aprendiam a tocar o mundo sem tropeços. Ela se aproximou com seu focinho gelado e olhos grandes, quase humanos. Acariciei sua testa e ela relinchou baixo, reconhecendo minha voz mental, meu afeto silencioso.
Salvei o nome de cada um deles, como marcas de algo meu em meio a tantas responsabilidades que me roubavam o tempo.
Fiquei ali, entre escovas, feno e respirações quentes. Cuidar deles me acalmava, me lembrava de que havia coisas que não exigiam máscaras. Mas nem mesmo o cheiro familiar dos animais ou o som dos cascos no chão úmido afastava a lembrança do toque dela. A visão de seus olhos azuis ainda me perseguia como uma maldição doce.
E eu sabia: eu não descansaria até encontrá-la.
⚔️
A noite ainda pesava sobre o reino como um segredo que se recusa a ser esquecido. O castelo dormia em silêncio, mas minha mente, como de costume, insistia em marchar para longe — por becos que nem mesmo meus instintos desejavam explorar.
Troquei as vestes reais por roupas simples. Tecido leve, sem brasão, sem peso. Apenas eu.
Caminhei até as baias com os ombros mais baixos que o habitual e a alma, bem… ela preferiu ficar atrás, quieta, fingindo que não estava sendo arrastada comigo. Assim que empurrei o portão de madeira, o cheiro familiar de feno, couro e vida me envolveu. Ah, enfim… um lugar onde não sou observado por mil olhos sedentos por fraqueza.
— Boa noite, monarca de quatro patas — murmurei, me aproximando de Thalos.
Ele ergueu a cabeça com seu ar soberano. A crina prateada caía como uma cascata de luar sobre os olhos escuros e atentos. Seu silêncio era o mesmo de sempre: julgador, fiel e, acima de tudo, presente.
Peguei a escova pendurada e comecei o ritual. Lento, cuidadoso, como se cada movimento limpasse não só o pelo, mas também a inquietação que rastejava em mim desde o pôr do sol.
— Não vai dizer nada sobre a noite passada? — questionei, a escova deslizando pelas costelas largas. — Achei que você, pelo menos, me repreenderia. Com um relincho indignado, talvez. Ou um coice bem direcionado, se estivesse de mau humor.
Thalos apenas respirou fundo, como se a sabedoria antiga de sua linhagem não tivesse paciência para as minhas ironias humanas.
— Eu sei. Foi imprudente. Ou… talvez necessário. — Fiz uma pausa, observando o movimento lento de seus flancos sob minha mão. — Às vezes eu me pergunto se ser rei é mesmo um título… ou uma maldição bem polida.
A brisa da noite adentrou pelas frestas da madeira, acariciando minha nuca como um sussurro esquecido dos deuses. Thalos inclinou levemente a cabeça e me encarou.
— Eu sei o que está pensando. Que estou me perdendo. Ou pior — sorri de lado —, que já me perdi há muito tempo e só agora percebi.
Me abaixei para verificar uma das ferraduras. Ele ficou imóvel. Sempre me respeitava, mesmo quando eu não respeitava a mim mesmo.
— Você ao menos teria seguido um caminho mais honesto… fugir pelos campos, livre. Correr até as patas não suportarem mais. — Me levantei, encostando a testa contra a lateral quente de seu pescoço. — Às vezes, invejo essa simplicidade.
Ele me respondeu do único jeito que sabia: com silêncio. Mas naquele silêncio havia algo... um consolo que não vinha de palavras, e sim de presença.
Continuei escovando, como quem procura respostas entre os pelos, ou talvez só um instante de paz entre tudo que se desmancha lá fora. No fundo, acho que ele entende mais de mim do que qualquer conselheiro com suas frases empoladas e alianças falsas.
O rangido da porta de madeira me alertou da presença dela antes mesmo que o cheiro doce de camomila e hortelã preenchesse o ar — o aroma que sempre cercava minha mãe, como se a própria natureza insistisse em suavizar sua presença.
— Falando com os cavalos de novo? — A voz de Hipólita soou baixa, entre um sorriso e um suspiro.
Continuei escovando o flanco brilhante de Thalos, como se ainda esperasse que ele me respondesse. Meus dedos seguiam o ritmo do silêncio, e só então olhei por sobre o ombro.
— Pelo menos eles escutam sem julgamento — murmurei, virando-me lentamente. — E às vezes... entendem mais do que os próprios conselheiros do reino.
Ela se afastou da porta e caminhou devagar até mim, as dobras do vestido deslizando pela palha como se não tocassem o chão. Seus olhos dourados tinham aquele brilho que os anos jamais conseguiram apagar — uma mistura de sabedoria, ternura... e tristeza.
— Não vi você sorrir uma vez sequer ontem — disse ela, parando ao lado de Cristal, que relinchou suavemente. — Não dançou mais do que uma vez, não bebeu mais do que um gole. Parecia estar em outro lugar.
— Talvez eu estivesse — confessei, apoiando o queixo nas costas da mão ainda sobre o dorso quente de Thalos. — Em olhos que não conheço. Em um gesto que ainda sinto nos dedos. Em uma fuga que deixou um perfume no ar... e nada mais.
Ela me olhou com aquele modo que só mães têm — como se conseguisse enxergar cada cicatriz que tentei esconder até de mim mesmo.
— Quem era ela?
— Eu não sei — respondi, com a voz mais baixa que pretendia. — Mas ela fugiu como se eu fosse fogo. E, talvez... talvez eu seja.
Hipólita tocou meu ombro com delicadeza. Não havia repreensão, apenas silêncio e presença. Uma mãe que já perdera amores, impérios e noites demais para se preocupar com convenções.
— Não tema o que arde, meu filho. Alguns só têm medo da chama porque sabem que podem se queimar... e nunca mais ser os mesmos.
Suspirei. A noite ainda parecia presa em minha pele, como se aquele baile tivesse deixado mais do que lembranças. Deixou fome.
— Se eu pudesse... só mais uma vez... ver os olhos dela — sussurrei. — Dizer algo, qualquer coisa. Saber seu nome. Saber se fui só mais um príncipe com boa postura... ou se ela também... sentiu.
Hipólita me puxou para um breve abraço. Breve, mas suficiente para me lembrar que, mesmo rei, ainda era filho. Ainda era humano.
— Quando o destino quer brincar de esconder, meu caro... ele o faz com maestria. Mas nenhuma névoa dura para sempre.
Cristal relinchou outra vez, como se aprovasse. Sorri, enfim. Pouco, mas real.
— Vamos ver o que o destino faz amanhã, então — murmurei, olhando para a porta do estábulo como se ela ainda pudesse surgir ali, com o vestido leve e o olhar de vendaval.
...⚔️...
O som cadenciado das correntes se erguendo e baixando enchia o ar da arena de treinos. O ferro tilintava como uma trilha metálica para a tensão que queimava em meus músculos. O suor descia pelas têmporas, e o peso em minhas mãos parecia mais leve do que a confusão que carregava nos pensamentos.
— Então… ela deixou só um lenço — comentou Idril, com aquele meio sorriso que sempre antecedia uma provocação. Ele estava de pé ao meu lado, segurando uma barra com facilidade, como se não pesasse o triplo do que um homem comum aguentaria.
— Um lenço com cheiro de gardênia — respondi, prendendo a respiração antes de levantar mais uma vez. — Como se deixasse um pouco de si e, ao mesmo tempo, me desafiasse a encontrá-la.
— Dramático como sempre. Já pensou em escrever poesia, alteza?
Bufei, deitando a barra no chão com mais força do que o necessário. O impacto ecoou.
— Não consigo tirá-la da cabeça, Idril.
Ele se aproximou e jogou uma toalha no meu ombro. Os olhos verdes brilharam com aquele traço sarcástico que nunca o abandonava, mas havia também compreensão neles — uma profundidade silenciosa, moldada por histórias que ele raramente contava.
— Essa é nova. O Cardan que conheço sempre teve controle — ele disse, apoiando-se na parede, cruzando os braços. — Mas aí vem uma donzela misteriosa com cheiro de jardim e te faz agir como um adolescente descompassado?
— Ela não é qualquer uma — repliquei, enxugando o rosto. — Ela surgiu como se fosse feita de caos e silêncio. Disse meu nome como se soubesse quem eu sou por dentro, como se me enxergasse além da coroa.
Idril arqueou uma sobrancelha.
— Talvez tenha enxergado mesmo. E isso te assustou, não?
Assenti, encarando o chão por um instante, como se ele tivesse todas as respostas que eu procurava.
— Eu a procurei a noite inteira… e encontrei apenas o rastro de um perfume e aquele maldito lenço.
Idril deu uma risada curta.
— A primeira queda é sempre a mais funda. E a mais idiota. Mas se for real… também é a única que vale.
Ficamos em silêncio por um momento. A respiração desacelerava, o corpo começava a ceder ao cansaço, mas a mente seguia desperta — cheia de imagens dela.
— Você acha que devo esquecê-la? — perguntei, mesmo sabendo que não conseguiria.
Ele olhou para mim como quem pesa as opções entre a loucura e a lucidez.
— Eu acho que você deve encontrá-la. Porque, se não fizer isso, vai passar o resto da vida se perguntando. E, convenhamos, você é insuportável quando está arrependido.
Sorri pela primeira vez desde a noite anterior. Idril sempre soube o que dizer, mesmo quando não era o que eu queria ouvir.
— Obrigado.
— Não me agradeça ainda — ele respondeu, voltando a pegar a barra. — Vamos terminar o treino. Se você vai correr atrás dessa garota, vai precisar estar mais forte do que nunca.
E eu sabia… que ele estava certo.
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