Vendida como Se Fosse Nada
O relógio antigo marcava quase nove da noite quando Letícia desceu as escadas da mansão em silêncio, os passos suaves sendo engolidos pelos tapetes persas que cobriam os degraus. O som ecoava apenas em sua cabeça — uma mistura de batidas do próprio coração, estalos de lembranças e o zunido baixo da humilhação que vinha crescendo como uma febre.
A casa estava escura, com a maioria das luzes apagadas para economizar energia. Ironia cruel para quem, até semanas atrás, acendia candelabros de cristal em plena terça-feira por puro capricho estético.
O lar dos Fonseca agora era um lugar em ruínas. Não físicas — ainda —, mas morais. O império construído com discursos eloquentes, aparições em colunas sociais e investimentos milionários desabava com a força de um escândalo financeiro exposto à imprensa. Uma fraude, dissera o jornal. Um esquema de lavagem de dinheiro que agora engolia todos os bens, credibilidade e futuro da família.
Letícia encontrou o pai no escritório. A mesma sala onde, desde criança, ela era proibida de entrar sem bater. A madeira escura das estantes, os livros organizados por cor, a poltrona de couro — tudo ali era território sagrado. Mas agora, o espaço parecia menor, sufocante. Seu pai estava de costas para ela, diante da janela. O celular vibrava em cima da mesa, mas ele não atendeu.
— Chamou? — ela perguntou, com a voz firme, mesmo que o chão sob seus pés parecesse prestes a rachar.
Ele virou lentamente. Estava mais magro. Olheiras profundas, terno amassado. Os olhos, outrora cheios de orgulho e autoridade, agora carregavam um desespero mal disfarçado.
— Senta, filha. Precisamos conversar.
Ela sentou. E esperou.
— As coisas… estão difíceis. Você sabe. — Ele começou, e ela apenas assentiu com a cabeça. — Há uma forma de minimizar o impacto… preservar o nome, garantir alguma estabilidade.
Letícia já sabia. Havia escutado conversas sussurradas pelos corredores, palavras partidas ao telefone, nomes que ela não reconhecia. Mas nada a prepararia para ouvir, com todas as letras:
— Heitor Moretti está disposto a assumir a dívida... se você se casar com ele.
Por alguns segundos, a respiração dela parou. Piscou devagar. Engoliu em seco.
— Me desculpa, o quê?
— É um acordo. Ele propôs. Está nos ajudando — explicou, como se estivesse falando sobre uma negociação comum. Como se o nome dela fosse uma porcentagem em contrato. — Ele ainda tem influência, uma rede sólida, recursos. Está oferecendo uma solução... digna.
— Solução digna? — Letícia riu. Um som sem alegria, quase histérico. — Me vender como garantia é o que você chama de “solução digna”?
O pai esfregou o rosto, exausto.
— É o melhor que posso fazer. Eu… falhei com você. Com todos nós.
Ela levantou devagar. Caminhou até a estante e puxou um livro, sem ler o título. Só queria ocupar as mãos, fingir que ainda tinha algum controle.
— Ele tem 35 anos — disse, virando-se novamente. — Tem quase o dobro da minha idade, pai.
— Mas é um homem honesto. Respeitável.
— Ele está comprando uma esposa, isso não soa muito respeitável pra mim.
O silêncio caiu como pedra. O pai não respondeu. Também não tentou disfarçar. Letícia o observou por mais alguns segundos, esperando alguma reação que pudesse lhe devolver alguma fé. Mas ele parecia vazio.
Naquela noite, Letícia subiu para o quarto com um peso novo nos ombros. A cada degrau, lembrava de um momento: aniversários decorados como contos de fadas, os presentes importados, os jantares cheios de gente importante. Nada disso significava absolutamente nada agora.
A verdade nua e crua é que ela era a última peça de barganha da família Fonseca. E amanhã, deixaria de ser Letícia como conhecia. Ela se tornaria a esposa de um homem que ela nunca viu, nunca tocou, e que a queria por uma razão que ela ainda não compreendia.
Talvez status. Talvez controle. Talvez vingança.
Ao fechar a porta do quarto, olhou pela última vez ao redor. As paredes cor de creme, a penteadeira com seus perfumes caros, o mural de fotos com amigas que já não ligavam mais. Seu mundo estava ali, empacotado em duas malas que deixara prontas por obrigação.
Ela deitou-se na cama de lençóis finos, cobriu-se até o queixo, e ficou ali, imóvel, encarando o teto, até o sono vir como fuga.
No dia seguinte, ela partiria.
Para longe do escândalo.
Para a casa de um estranho.
Para dentro de uma vida que nunca escolheu.
O céu estava cinzento quando Letícia entrou no carro enviado por Heitor Moretti. Um motorista de meia-idade, de olhar discreto e expressão fechada, abriu a porta traseira para ela sem uma palavra. Não havia ninguém da família para se despedir. Nem a mãe, que passava os dias trancada no quarto desde o escândalo, nem o pai, que não teve coragem de encará-la mais uma vez.
Ela ajeitou as malas no banco ao lado e afundou no assento de couro. O carro cheirava a novo, mas o silêncio dentro dele era velho. Um silêncio pesado, incômodo, como o de velórios.
Durante o trajeto, as ruas foram se tornando menos familiares. Letícia via, pela janela, a cidade que sempre fora seu playground se transformar em cenário distante. As vitrines das lojas de grife, os cafés onde encontrava as amigas, os prédios altos que abrigavam executivos poderosos… tudo passava como um filme de outro tempo. Outro mundo.
Ela não chorou. Não por orgulho, mas porque já havia chorado tudo por dentro.
A viagem durou quase quatro horas até o interior de São Paulo. A estrada parecia interminável, e em alguns momentos ela pensou em pedir para o motorista parar o carro. Fugir. Mas para onde? Ela não tinha dinheiro. Não tinha apoio. Nem sequer tinha mais um sobrenome que abrisse portas.
Quando o portão eletrônico da casa de Heitor se abriu, Letícia sentiu um calafrio percorrer a espinha. Era uma mansão, sim — moderna, elegante, silenciosa. Mas havia algo nela que a fez pensar em um castelo cercado por muros altos demais. Imponente demais. Solitário demais.
O carro estacionou em frente à entrada principal, e uma empregada apareceu para abrir a porta. Vestia uniforme discreto e a cumprimentou com um aceno respeitoso.
— Boa tarde, senhora Letícia. O senhor Moretti está esperando no escritório.
“Senhora Letícia.” As palavras bateram como martelo em sua consciência.
Ela desceu do carro com movimentos lentos, tentando absorver o que via. O jardim era milimetricamente aparado, as pedras da calçada perfeitamente alinhadas, a fachada pintada num tom acinzentado que combinava com o céu carregado.
Ao entrar, sentiu o cheiro sutil de lavanda e madeira polida. Os cômodos eram espaçosos, mas havia algo estéril naquela beleza toda. Nenhuma fotografia, nenhum objeto pessoal. Tudo parecia limpo demais. Controlado demais.
— Pode me acompanhar, por favor? — a funcionária pediu, conduzindo-a por um longo corredor até uma porta dupla de madeira escura.
Letícia respirou fundo antes de entrar.
Heitor Moretti estava de pé, em frente à lareira apagada. Alto, de postura rígida, terno impecável mesmo estando em casa. Os cabelos negros penteados para trás, o rosto de traços fortes, barba por fazer. Era bonito, mas não havia ternura em sua expressão. Seus olhos — escuros como noite sem lua — a fitaram com frieza calculada.
— Seja bem-vinda — ele disse. A voz era firme, baixa, sem calor.
Letícia deu um passo para dentro, a espinha ereta, como se usasse uma armadura invisível.
— Obrigada — respondeu, mantendo o tom neutro. Ela não iria se curvar. Nem ali. Nem nunca.
Os dois se encararam por alguns segundos. Longos. Silenciosos.
— Espero que sua viagem tenha sido tranquila.
— Dentro do possível.
Ele assentiu. Caminhou até a escrivaninha e pegou um envelope.
— Este é o contrato pré-nupcial. O casamento será no civil, na sexta-feira. Simples. Discreto. Sem convidados. Você assina hoje.
Ela se aproximou lentamente, pegou o envelope e leu as primeiras linhas. Era frio. Objetivo. Como se tratassem de uma fusão empresarial, não de uma união entre duas vidas.
— Posso ler com calma? — ela perguntou, mantendo o olhar fixo nele.
— Claro. Leia tudo. Não tenho nada a esconder.
Letícia percebeu algo naquela frase. Ele não disfarçava o jogo. Não fingia gentileza. Era prático. Cruel na sinceridade.
— E o que acontece depois?
— Depois, você viverá aqui. Terá tudo de que precisa. Mas não espero que sejamos… um casal. Não no sentido convencional. Nosso acordo é prático. E quanto menos você interferir na minha rotina, melhor.
Ela soltou um leve sorriso irônico.
— Que sorte a minha.
Heitor arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu. Apenas fez um gesto para a porta.
— A funcionária, dona Célia, vai lhe mostrar o quarto. Se precisar de algo, fale com ela.
Letícia virou as costas e saiu da sala com o envelope nas mãos, sentindo o peso do papel como se fosse uma algema.
Ela ainda não sabia, mas aquele castelo frio escondia mais do que regras e contratos. Escondia fantasmas. Mágoas. E um homem que aprendera a endurecer para não quebrar.
E ela… não era feita de vidro.
Era aço se moldando no fogo.
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Atualizado até capítulo 67
Comments
Nalu Correa
pelo visto tem muitos segredos muitos sofrimentos que ela vai quebrar todos
mais antes ele vai fazer ela sofre muito vamos esperar
2025-07-17
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