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Vendida como Se Fosse Nada

Capítulo 1 - Quando tudo desaba, o que resta é você.

O relógio antigo marcava quase nove da noite quando Letícia desceu as escadas da mansão em silêncio, os passos suaves sendo engolidos pelos tapetes persas que cobriam os degraus. O som ecoava apenas em sua cabeça — uma mistura de batidas do próprio coração, estalos de lembranças e o zunido baixo da humilhação que vinha crescendo como uma febre.

A casa estava escura, com a maioria das luzes apagadas para economizar energia. Ironia cruel para quem, até semanas atrás, acendia candelabros de cristal em plena terça-feira por puro capricho estético.

O lar dos Fonseca agora era um lugar em ruínas. Não físicas — ainda —, mas morais. O império construído com discursos eloquentes, aparições em colunas sociais e investimentos milionários desabava com a força de um escândalo financeiro exposto à imprensa. Uma fraude, dissera o jornal. Um esquema de lavagem de dinheiro que agora engolia todos os bens, credibilidade e futuro da família.

Letícia encontrou o pai no escritório. A mesma sala onde, desde criança, ela era proibida de entrar sem bater. A madeira escura das estantes, os livros organizados por cor, a poltrona de couro — tudo ali era território sagrado. Mas agora, o espaço parecia menor, sufocante. Seu pai estava de costas para ela, diante da janela. O celular vibrava em cima da mesa, mas ele não atendeu.

— Chamou? — ela perguntou, com a voz firme, mesmo que o chão sob seus pés parecesse prestes a rachar.

Ele virou lentamente. Estava mais magro. Olheiras profundas, terno amassado. Os olhos, outrora cheios de orgulho e autoridade, agora carregavam um desespero mal disfarçado.

— Senta, filha. Precisamos conversar.

Ela sentou. E esperou.

— As coisas… estão difíceis. Você sabe. — Ele começou, e ela apenas assentiu com a cabeça. — Há uma forma de minimizar o impacto… preservar o nome, garantir alguma estabilidade.

Letícia já sabia. Havia escutado conversas sussurradas pelos corredores, palavras partidas ao telefone, nomes que ela não reconhecia. Mas nada a prepararia para ouvir, com todas as letras:

— Heitor Moretti está disposto a assumir a dívida... se você se casar com ele.

Por alguns segundos, a respiração dela parou. Piscou devagar. Engoliu em seco.

— Me desculpa, o quê?

— É um acordo. Ele propôs. Está nos ajudando — explicou, como se estivesse falando sobre uma negociação comum. Como se o nome dela fosse uma porcentagem em contrato. — Ele ainda tem influência, uma rede sólida, recursos. Está oferecendo uma solução... digna.

— Solução digna? — Letícia riu. Um som sem alegria, quase histérico. — Me vender como garantia é o que você chama de “solução digna”?

O pai esfregou o rosto, exausto.

— É o melhor que posso fazer. Eu… falhei com você. Com todos nós.

Ela levantou devagar. Caminhou até a estante e puxou um livro, sem ler o título. Só queria ocupar as mãos, fingir que ainda tinha algum controle.

— Ele tem 35 anos — disse, virando-se novamente. — Tem quase o dobro da minha idade, pai.

— Mas é um homem honesto. Respeitável.

— Ele está comprando uma esposa, isso não soa muito respeitável pra mim.

O silêncio caiu como pedra. O pai não respondeu. Também não tentou disfarçar. Letícia o observou por mais alguns segundos, esperando alguma reação que pudesse lhe devolver alguma fé. Mas ele parecia vazio.

Naquela noite, Letícia subiu para o quarto com um peso novo nos ombros. A cada degrau, lembrava de um momento: aniversários decorados como contos de fadas, os presentes importados, os jantares cheios de gente importante. Nada disso significava absolutamente nada agora.

A verdade nua e crua é que ela era a última peça de barganha da família Fonseca. E amanhã, deixaria de ser Letícia como conhecia. Ela se tornaria a esposa de um homem que ela nunca viu, nunca tocou, e que a queria por uma razão que ela ainda não compreendia.

Talvez status. Talvez controle. Talvez vingança.

Ao fechar a porta do quarto, olhou pela última vez ao redor. As paredes cor de creme, a penteadeira com seus perfumes caros, o mural de fotos com amigas que já não ligavam mais. Seu mundo estava ali, empacotado em duas malas que deixara prontas por obrigação.

Ela deitou-se na cama de lençóis finos, cobriu-se até o queixo, e ficou ali, imóvel, encarando o teto, até o sono vir como fuga.

No dia seguinte, ela partiria.

Para longe do escândalo.

Para a casa de um estranho.

Para dentro de uma vida que nunca escolheu.

O céu estava cinzento quando Letícia entrou no carro enviado por Heitor Moretti. Um motorista de meia-idade, de olhar discreto e expressão fechada, abriu a porta traseira para ela sem uma palavra. Não havia ninguém da família para se despedir. Nem a mãe, que passava os dias trancada no quarto desde o escândalo, nem o pai, que não teve coragem de encará-la mais uma vez.

Ela ajeitou as malas no banco ao lado e afundou no assento de couro. O carro cheirava a novo, mas o silêncio dentro dele era velho. Um silêncio pesado, incômodo, como o de velórios.

Durante o trajeto, as ruas foram se tornando menos familiares. Letícia via, pela janela, a cidade que sempre fora seu playground se transformar em cenário distante. As vitrines das lojas de grife, os cafés onde encontrava as amigas, os prédios altos que abrigavam executivos poderosos… tudo passava como um filme de outro tempo. Outro mundo.

Ela não chorou. Não por orgulho, mas porque já havia chorado tudo por dentro.

A viagem durou quase quatro horas até o interior de São Paulo. A estrada parecia interminável, e em alguns momentos ela pensou em pedir para o motorista parar o carro. Fugir. Mas para onde? Ela não tinha dinheiro. Não tinha apoio. Nem sequer tinha mais um sobrenome que abrisse portas.

Quando o portão eletrônico da casa de Heitor se abriu, Letícia sentiu um calafrio percorrer a espinha. Era uma mansão, sim — moderna, elegante, silenciosa. Mas havia algo nela que a fez pensar em um castelo cercado por muros altos demais. Imponente demais. Solitário demais.

O carro estacionou em frente à entrada principal, e uma empregada apareceu para abrir a porta. Vestia uniforme discreto e a cumprimentou com um aceno respeitoso.

— Boa tarde, senhora Letícia. O senhor Moretti está esperando no escritório.

“Senhora Letícia.” As palavras bateram como martelo em sua consciência.

Ela desceu do carro com movimentos lentos, tentando absorver o que via. O jardim era milimetricamente aparado, as pedras da calçada perfeitamente alinhadas, a fachada pintada num tom acinzentado que combinava com o céu carregado.

Ao entrar, sentiu o cheiro sutil de lavanda e madeira polida. Os cômodos eram espaçosos, mas havia algo estéril naquela beleza toda. Nenhuma fotografia, nenhum objeto pessoal. Tudo parecia limpo demais. Controlado demais.

— Pode me acompanhar, por favor? — a funcionária pediu, conduzindo-a por um longo corredor até uma porta dupla de madeira escura.

Letícia respirou fundo antes de entrar.

Heitor Moretti estava de pé, em frente à lareira apagada. Alto, de postura rígida, terno impecável mesmo estando em casa. Os cabelos negros penteados para trás, o rosto de traços fortes, barba por fazer. Era bonito, mas não havia ternura em sua expressão. Seus olhos — escuros como noite sem lua — a fitaram com frieza calculada.

— Seja bem-vinda — ele disse. A voz era firme, baixa, sem calor.

Letícia deu um passo para dentro, a espinha ereta, como se usasse uma armadura invisível.

— Obrigada — respondeu, mantendo o tom neutro. Ela não iria se curvar. Nem ali. Nem nunca.

Os dois se encararam por alguns segundos. Longos. Silenciosos.

— Espero que sua viagem tenha sido tranquila.

— Dentro do possível.

Ele assentiu. Caminhou até a escrivaninha e pegou um envelope.

— Este é o contrato pré-nupcial. O casamento será no civil, na sexta-feira. Simples. Discreto. Sem convidados. Você assina hoje.

Ela se aproximou lentamente, pegou o envelope e leu as primeiras linhas. Era frio. Objetivo. Como se tratassem de uma fusão empresarial, não de uma união entre duas vidas.

— Posso ler com calma? — ela perguntou, mantendo o olhar fixo nele.

— Claro. Leia tudo. Não tenho nada a esconder.

Letícia percebeu algo naquela frase. Ele não disfarçava o jogo. Não fingia gentileza. Era prático. Cruel na sinceridade.

— E o que acontece depois?

— Depois, você viverá aqui. Terá tudo de que precisa. Mas não espero que sejamos… um casal. Não no sentido convencional. Nosso acordo é prático. E quanto menos você interferir na minha rotina, melhor.

Ela soltou um leve sorriso irônico.

— Que sorte a minha.

Heitor arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu. Apenas fez um gesto para a porta.

— A funcionária, dona Célia, vai lhe mostrar o quarto. Se precisar de algo, fale com ela.

Letícia virou as costas e saiu da sala com o envelope nas mãos, sentindo o peso do papel como se fosse uma algema.

Ela ainda não sabia, mas aquele castelo frio escondia mais do que regras e contratos. Escondia fantasmas. Mágoas. E um homem que aprendera a endurecer para não quebrar.

E ela… não era feita de vidro.

Era aço se moldando no fogo.

Capítulo 2 - Uma casa pode ter paredes de mármore e, ainda assim, ser feita de grades.

O quarto que Letícia recebeu era enorme, elegante e impessoal. As janelas altas deixavam entrar uma luz suave que não aquecia, e os móveis, embora luxuosos, pareciam dispostos de forma ensaiada, como um cenário montado para impressionar, não para acolher. Tudo era excessivamente organizado — os lençóis perfeitamente esticados, o armário já abastecido com roupas novas do seu tamanho, todas etiquetadas e dobradas com precisão. Nem nos tempos de luxo na casa dos pais ela tivera algo tão meticulosamente preparado.

E, ainda assim, ela se sentia uma intrusa.

Célia, a funcionária encarregada de acompanhá-la, era uma mulher de cinquenta e poucos anos, de voz calma, mãos ágeis e olhos que pareciam enxergar mais do que deveriam. Apesar da aparência austera, havia algo no modo como falava com Letícia que transbordava cuidado disfarçado de formalidade.

— Se precisar de qualquer coisa, basta me chamar. Meu quarto fica no fim do corredor. A porta estará entreaberta.

Letícia assentiu com um leve movimento de cabeça. Não queria parecer ingrata, mas também não sabia o que dizer. Estava exausta, mas não queria dormir. Estava faminta, mas o estômago se recusava a aceitar qualquer coisa.

— Célia… — chamou, antes que a mulher saísse.

— Sim?

— Há quanto tempo trabalha aqui?

Célia a olhou por um instante mais longo do que o necessário.

— Tempo suficiente para saber que essa casa tem mais segredos do que portas — respondeu, enigmática. — Mas também tempo suficiente para saber que nem tudo o que começa de forma errada precisa terminar assim.

E saiu, deixando Letícia com a mente fervilhando.

Nas horas seguintes, ela caminhou pela casa tentando entender o território em que havia sido jogada. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas por algum relógio distante ou o som abafado de passos. Passou pela biblioteca, pelo jardim interno, por corredores extensos que pareciam não levar a lugar algum. Percebeu que poucos cômodos tinham sinais de uso real. A mansão era habitada, sim, mas não vivida. Como se Heitor estivesse ali por obrigação, não por desejo.

No fim do corredor leste, encontrou uma porta entreaberta. Havia algo de diferente no ar — um cheiro suave de lavanda e livros antigos. Bateu suavemente antes de espiar.

— Pode entrar — disse uma voz feminina, enfraquecida, mas gentil.

Letícia entrou devagar. O quarto era acolhedor. As janelas estavam abertas, deixando o vento brincar com as cortinas. Sobre a cama, uma senhora de cabelos brancos e feições delicadas sorria para ela.

— Você deve ser a nova esposa do meu neto.

Letícia corou.

— Ainda não somos casados oficialmente… — respondeu, sentindo o peso daquelas palavras. — Eu sou Letícia.

— Eu sou Odete. Mas pode me chamar de vovó, se quiser. Faz tempo que ninguém me chama assim com afeto.

Aquela frase a tocou mais do que esperava. Letícia se aproximou, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama.

— A senhora mora aqui há muito tempo?

— Desde que Heitor perdeu os pais. Fui mãe da madrasta dele. Ela me trouxe pra cá quando ele tinha doze anos.

Letícia hesitou antes de perguntar:

— E… a senhora gosta dele?

Odete sorriu de forma triste.

— Heitor é um homem bom. Só que esqueceu como se ama. Foi moldado no rigor, no silêncio, na dor. A mãe dele morreu muito cedo, e a mulher que veio depois… bom, digamos que ela não foi feita para ser mãe de ninguém.

Letícia engoliu em seco. O olhar da idosa era terno, mas carregava um cansaço acumulado por décadas.

— Ele não é um monstro, Letícia. Só está preso a uma armadura. E quando a gente veste uma armadura por tempo demais… esquece onde termina o aço e começa a pele.

A jovem abaixou os olhos. Não sabia o que sentia por Heitor ainda. Ódio? Raiva? Curiosidade? Talvez tudo ao mesmo tempo. Mas uma coisa era certa: por mais que se sentisse uma prisioneira ali, ele também parecia ser.

— Ele te tratou bem? — Odete perguntou de repente.

Letícia pensou por alguns segundos antes de responder.

— Ele foi educado. Frio, mas… direto.

— Então isso é um começo. Nessa casa, minha querida, até a frieza é uma forma de proteção.

Naquela noite, Letícia ficou deitada por horas sem conseguir dormir. As palavras de Célia, o olhar de Odete, o silêncio cortante de Heitor — tudo se misturava como peças de um quebra-cabeça que ela ainda não sabia montar.

Olhou para o envelope com o contrato pré-nupcial sobre a escrivaninha. Poderia rasgá-lo. Poderia fugir. Poderia explodir.

Mas não.

Ela precisava ser inteligente. Astuta. Sutil. Não ia se render, nem aceitar passivamente o papel que escreveram para ela.

Se Heitor Moretti achava que havia comprado uma garota submissa, ele logo descobriria que havia trazido para dentro de sua casa uma mulher disposta a lutar — mesmo que em silêncio. Mesmo que com as armas que ainda nem sabia usar.

E no escuro do quarto, enquanto a casa dormia, Letícia prometeu a si mesma:

Ela não seria apenas mais um nome num contrato. Ela faria daquela prisão, o começo da sua liberdade.

Capítulo 3 - Tudo começa com o silêncio. Depois vêm os olhos. E só então, as palavras.

O envelope branco ainda estava sobre a escrivaninha quando Letícia acordou naquela manhã.

Ela não havia assinado nada. Dormira pouco, envolta em pensamentos e suposições. Sonhara com portas trancadas, com corredores que não levavam a lugar algum, com uma voz masculina chamando seu nome e sumindo antes que ela pudesse virar para ver de onde vinha.

A luz do sol entrava pelas frestas da cortina pesada, dourando o quarto em tons suaves. Mesmo assim, o ar permanecia denso. As paredes pareciam absorver os pensamentos dela, devolvendo apenas reflexos de incerteza.

Após tomar um banho demorado, vestiu-se com uma das roupas novas deixadas no armário — um vestido azul de tecido leve, simples, mas elegante. Não por vaidade, mas por estratégia. Havia aprendido, observando a mãe durante anos em eventos sociais, que a forma como uma mulher se apresentava era sua primeira armadura. E Letícia precisava de todas as que pudesse vestir.

Ao descer para o café da manhã, esperava encontrar apenas a funcionária. Mas, para sua surpresa, Heitor estava sentado à cabeceira da mesa, lendo o jornal impresso com a concentração de quem parece querer escapar do presente.

Ela hesitou por um segundo na porta, depois se recompôs e caminhou até o outro lado da mesa, sentando-se com a postura de quem está prestes a fechar um negócio — não de quem está prestes a se casar.

— Bom dia — disse ela, cortando o silêncio antes que ele pudesse ignorá-la.

Heitor ergueu os olhos. Havia algo cortante em seu olhar, mas também… um leve sinal de surpresa.

— Bom dia.

A mesa estava impecável. Suco natural, frutas frescas, pão aquecido, café passado. Letícia não tinha apetite, mas também não queria parecer frágil. Serviu-se de um pouco de tudo, com gestos calmos.

Ele não disse mais nada por alguns minutos. Apenas observava, com a sutileza de um homem acostumado a ler os outros sem ser lido.

— Não assinou o contrato — comentou, por fim, virando a página do jornal como se aquele detalhe fosse apenas uma nota de rodapé.

— Ainda não — ela respondeu. — Quero entender tudo o que estou aceitando.

Heitor assentiu, como se já esperasse aquilo.

— Tem dúvidas específicas?

Letícia o encarou, a xícara de café entre as mãos.

— Na cláusula sobre... liberdade de movimento. Há restrições?

— Você pode sair da casa, desde que me comunique antes. Apenas por segurança.

— Segurança ou controle?

Os olhos dele se apertaram ligeiramente.

— Os dois. O mundo é cruel, Letícia. E seu sobrenome, no momento, ainda é um alvo para muitos.

Ela se recostou na cadeira.

— O senhor é sempre assim… prático?

— Só com quem tenta me testar.

O silêncio voltou, mas agora era outro. Mais afiado.

Letícia apoiou os cotovelos sobre a mesa, cruzou os dedos e encarou-o com frieza elegante.

— Eu não sou idiota, Heitor. Sei que esse casamento não tem nada a ver com “ajuda”. Isso é um jogo de poder. Uma transação. Só ainda não entendi qual é o seu verdadeiro ganho nisso.

Ele abaixou lentamente o jornal, dobrando-o com precisão cirúrgica. Os olhos dele cravaram nos dela como se pudessem perfurar a camada que ela havia construído naquela manhã.

— O meu ganho é controle.

— Controle sobre o quê? — ela devolveu.

— Sobre a narrativa — disse com calma. — Sobre a imagem pública. Sobre o fim da história dos Fonseca não parecer uma tragédia, mas uma fusão. E sobre deixar claro que ainda sei dominar o que um dia tentaram manipular.

Letícia respirou fundo, engolindo a vontade de reagir. Ao invés disso, apenas disse:

— Então está tudo claro.

Levantou-se, foi até o escritório e voltou minutos depois com o envelope. Sentou-se novamente à mesa, retirou os papéis com firmeza e assinou um a um com mãos firmes.

Heitor apenas observava. Não agradeceu. Não sorriu. Mas havia algo no modo como a olhava — como se ela tivesse feito mais do que ele esperava. Como se, por um instante, ele a visse como igual.

Os dias seguintes se arrastaram em uma espécie de rotina cautelosa. Ele saía cedo, retornava apenas à noite. Letícia passava as manhãs explorando a casa e os jardins. Conversava com Célia, visitava dona Odete, e se sentava à beira da fonte principal com um livro aberto que raramente lia. Estava ali para observar. Para absorver o ritmo da nova prisão.

Não havia toques. Nem mesmo um gesto de aproximação entre ela e Heitor. Ele era educado, mas mantinha distância. Não jantavam juntos, não trocavam mais que frases básicas. Era como se estivessem presos no mesmo palácio de gelo, esperando para ver quem derretia primeiro.

Letícia não reclamava. Mas também não se escondia.

Célia notou.

— Você não abaixou a cabeça — disse, enquanto dobrava roupas no quarto.

— Nunca aprendi a fazer isso.

— Vai ser difícil, menina. Mas talvez seja o que vai te salvar aqui dentro.

— A senhora também foi “vendida”? — Letícia perguntou de repente.

Célia parou por um segundo.

— Fui entregue a um homem que achava que me possuía. E levei anos pra entender que não era ele quem me possuía, era o medo.

Letícia não respondeu. Mas aquilo a marcou como um corte lento. Medo era o que ela mais sentia. Mas não o tipo que a paralisava — o tipo que dava combustível.

Na noite anterior ao casamento civil, Letícia desceu até a sala principal. Estava sozinha, usando um robe de cetim claro, os cabelos soltos, os pés descalços sobre o piso frio. Caminhou até o piano fechado e passou os dedos sobre a tampa de madeira.

— Você toca? — a voz de Heitor soou atrás dela.

Ela se virou devagar, surpresa por vê-lo sem terno. Estava com uma camisa de algodão escura, as mangas dobradas, a barba por fazer mais evidente. Ele parecia menos rígido. Menos máscara.

— Aprendi quando era criança. Mas parei.

— Por quê?

— Porque ninguém mais parava pra ouvir.

Heitor deu dois passos à frente. Não se aproximou demais.

— Amanhã será oficial.

— Eu sei.

— Alguma dúvida?

— Muitas. Mas nenhuma que você possa responder.

Ele ficou em silêncio por um momento. Então disse, baixo:

— Não vou forçar nada, Letícia. Nem toque. Nem cama. Nem sentimento.

Ela ergueu o queixo, firme.

— Ótimo. Porque eu não sou o tipo de mulher que se força a nada.

Heitor sorriu. Não de verdade, mas com o canto da boca. Quase como se estivesse diante de algo raro.

— Boa noite, Letícia.

— Boa noite, Heitor.

O dia do casamento civil amanheceu nublado. Letícia despertou cedo, mas ficou deitada por longos minutos encarando o teto. O quarto ainda não era seu, mas começava a ter traços seus. A gaveta com os livros que ela gostava, os perfumes na penteadeira, o vestido que escolhera por conta própria.

Levantou-se com calma, tomou um banho demorado e vestiu-se para o casamento. O vestido era bege claro, sóbrio, mas elegante. O tipo de roupa que uma mulher discreta usaria num evento formal. Célia a ajudou com os cabelos, prendendo-os em um coque simples, com alguns fios soltos. Letícia dispensou maquiagem pesada. Queria parecer inteira. Queria que cada olhar percebesse que ela estava ali por escolha — mesmo que não tivesse tido outra opção.

Quando desceu para o saguão principal, Heitor já a aguardava. Estava com um terno cinza-escuro e gravata preta. Postura ereta, expressão neutra, mãos nos bolsos. Seus olhos a percorreram de cima a baixo, mas sem desejo. Havia algo diferente naquele olhar — uma mistura de respeito contido e curiosidade cautelosa. Como se ele estivesse tentando decifrá-la, página por página.

— Está pronta? — ele perguntou.

— Desde que me tiraram de casa com duas malas, estou me preparando.

Ele não respondeu. Apenas estendeu o braço. Letícia hesitou por um segundo antes de aceitar. E, juntos, caminharam até o carro.

O cartório ficava no centro da pequena cidade onde Heitor mantinha sua sede administrativa. O local era discreto. Não havia fotógrafos, nem flores, nem convidados. Apenas os dois, o motorista, Célia como testemunha, e um advogado que falava como se recitasse uma bula de remédio.

A sala era fria, com paredes bege e uma mesa de madeira onde repousavam os papéis do contrato, já assinados. A cerimônia durou menos de vinte minutos.

Letícia assinou com firmeza, sem vacilar. Quando foi a vez de Heitor, ele também não hesitou. Nenhum dos dois trocou votos. Nenhum sorriso. Nenhuma promessa.

A única troca de olhares aconteceu no momento em que o oficial os declarou, com voz monótona:

— Marido e mulher.

Letícia não sabia o que esperava sentir. Talvez raiva. Tristeza. Rejeição. Mas sentiu apenas uma certeza: a de que a partir daquele momento, tudo que ela faria seria dela.

Ao deixarem o cartório, Célia entrou no carro da frente, e os dois foram sozinhos no veículo principal. O motorista seguiu em silêncio, e o ar dentro do carro ficou pesado de palavras não ditas.

— Não vai perguntar se estou arrependida? — Letícia soltou, fitando a estrada pela janela.

Heitor manteve o olhar fixo à frente.

— Não sou o tipo de homem que espera arrependimento de ninguém. Arrependimentos vêm do que foi escolhido. E você não escolheu nada disso.

Ela o encarou, surpresa com a resposta. Havia verdade ali. E uma pontada de… compreensão?

— E você, Heitor? Por que aceitou isso?

Ele respirou fundo.

— Porque, por mais que eu despreze alianças forjadas, às vezes é preciso amarrar pontas soltas para manter em pé o que ainda não desabou.

Ela riu, amarga.

— Você fala como se ainda quisesse salvar alguma coisa.

— Eu quero. Mas não o que você pensa.

— Então o que?

Ele virou-se levemente para ela, com uma expressão carregada.

— Quero me salvar de mim mesmo, Letícia.

Ela não esperava ouvir aquilo. Aquilo não era calculado. Não era frase feita.

Era verdade.

De volta à casa, foram recebidos apenas por Célia e dona Odete, que aguardava na varanda coberta com um buquê simples de flores do campo nas mãos. Letícia sentiu o peito se apertar ao vê-la ali, esperando por eles como se aquilo fosse, de alguma forma, um momento bonito.

— Que Deus abençoe vocês — disse a senhora, entregando as flores a Letícia com um sorriso sincero.

Heitor se abaixou e beijou o rosto da avó com cuidado.

— Obrigado por estar aqui.

— Só não vim de branco porque minhas pernas não aguentam mais vestidos longos — respondeu, fazendo Letícia soltar um pequeno sorriso.

Dentro da casa, Célia preparou um jantar discreto. Não houve festa. Não houve brinde. Apenas uma refeição silenciosa, em que Letícia se sentou à mesa com Heitor e Odete, mastigando mais a tensão do que a comida.

— Vocês vão dividir o mesmo quarto? — perguntou dona Odete, com a naturalidade de quem esqueceu o filtro.

Heitor limpou os lábios com o guardanapo e respondeu sem alterar o tom:

— Ainda não. Letícia precisa de tempo.

A resposta caiu como uma toalha quente sobre os ombros dela. Não por causa do conteúdo — mas pela forma. Ele não a forçaria. Não a pressionaria. E isso, vindo de um homem como ele, era… inesperado.

Mais tarde, já de volta ao quarto, Letícia deitou-se na cama com o vestido ainda no corpo. Não tinha forças para se trocar. Tudo parecia imóvel. A casa. A noite. A vida.

Mas dentro dela, uma semente começava a se mover. Algo pequeno, mas poderoso.

Ela estava oficialmente casada. Presa a um contrato, a um sobrenome, a um homem que ninguém realmente conhecia.

Mas, ainda assim…

Ela sentia que ainda podia se reescrever. E faria isso, palavra por palavra.

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