Três dias após o casamento, Letícia ainda acordava com a sensação de estar vivendo num cenário montado para outra pessoa. Sabia onde estavam as portas, os móveis, o cheiro do café pela manhã… mas havia um tipo de estranhamento que não passava. Era como estar vestindo uma roupa bonita que não se encaixava no corpo.
A convivência com Heitor seguiu discreta, quase invisível. Ele saía cedo, ela passava as manhãs com dona Odete, cuidava das plantas na estufa, lia na biblioteca e jantava sozinha. Às vezes, à noite, ouvia seus passos do lado de fora do quarto, mas ele nunca bateu. Nem tentou entrar. E, curiosamente, ela não sabia se isso a tranquilizava ou a incomodava.
Naquela manhã, estava sentada no jardim externo com Odete, tricotando ao lado da idosa, quando Célia apareceu com expressão tensa.
— Dona Letícia… me desculpe interromper, mas tem uma visita.
Letícia franziu o cenho.
— Visita? Pra mim?
— Não, senhora. Para o senhor Heitor. Mas… — Célia hesitou, olhando para Odete como quem buscava permissão — …é alguém que talvez a senhora devesse conhecer.
A idosa largou o tricô.
— Quem é?
— A senhora Isadora Moretti.
O silêncio se instalou como um vento gelado.
Letícia não conhecia o nome. Mas bastou olhar para o rosto de dona Odete para entender: não era uma visita qualquer.
— A madrasta — murmurou a avó, com a voz mais grave. — Ele não fala dela há anos.
Letícia se levantou devagar.
— Ela está na sala?
— Sim. Chegou sem avisar, com motorista e acompanhante. Disse que vai aguardar.
A jovem hesitou por alguns segundos, depois respirou fundo.
— Me avise quando o Heitor chegar. Quero estar lá.
Quando Heitor entrou na casa no início da tarde, seus passos ecoaram no hall com mais força que o habitual. Ele ainda tirava o paletó quando a viu: Letícia estava parada no topo da escada, observando tudo.
— Ela está aqui — ela disse, direto.
Heitor não fingiu surpresa. Apenas fechou os olhos por um segundo.
— Eu imaginei que apareceria, mais cedo ou mais tarde.
— Vai querer que eu suba?
Ele a encarou, e por um instante, havia cansaço em seus olhos.
— Não. Fique. Mas não espere educação.
Letícia desceu com calma, como se cada degrau fosse um teste de resistência. Queria observar. Queria entender que tipo de sombra havia se instalado na alma dele. Porque ninguém endurece tanto sem motivo.
Na sala, uma mulher elegante de meia-idade estava sentada no sofá de linho, vestindo um conjunto bege impecável e óculos escuros mesmo dentro de casa. Havia algo de calculado em cada gesto dela, como se tivesse sido treinada para parecer superior sem esforço.
— Heitor — disse ela, sem se levantar, sem sorrir. — Casado. Finalmente.
— Isadora — ele respondeu, seco. — O que veio fazer aqui?
Ela tirou os óculos com lentidão e apoiou-os na mesinha de centro. Os olhos eram frios como o resto dela.
— Vim conhecer sua esposa, claro. — E então virou-se para Letícia. — Você deve ser a moça colocada como dote de uma dívida.
Letícia sentiu o tapa invisível atravessar o rosto. Mas manteve-se ereta.
— E a senhora deve ser a mulher que criou um menino como se ele fosse um fardo.
O silêncio na sala ficou afiado.
Heitor ergueu uma sobrancelha, quase surpreso. Isadora sorriu com cinismo.
— Que língua afiada. Isso será útil, se você quiser sobreviver aqui.
Letícia se aproximou devagar e sentou-se no sofá oposto, cruzando as pernas com elegância.
— Não costumo me preocupar em sobreviver. Prefiro viver com dignidade.
— Dignidade não existe nesse mundo, querida. Só conveniência — Isadora rebateu.
— Que pena. Parece que a senhora confundiu frieza com sabedoria.
Heitor pigarreou, interrompendo o embate.
— Diga o que veio dizer, Isadora.
A mulher virou-se para ele, agora mais direta.
— Vim fazer uma proposta. Há pessoas interessadas em comprar as cotas restantes do hospital. Você sabe disso. E sabe também que uma união estável com alguém em crise de reputação pode… atrapalhar negócios.
— Você está sugerindo que eu anule o casamento?
— Estou sugerindo que não se esqueça do que está em jogo. Você é um Moretti. Ou ao menos, metade de um.
Letícia se levantou.
— Eu saio, se quiserem discutir esse tipo de sujeira entre família.
Mas Heitor também se levantou, a expressão dura.
— Não, Letícia. Fique. Ela precisa saber.
Ele se virou para a madrasta.
— Este casamento pode ter começado por conveniência, mas não será desfeito por ameaça. E você — apontou para Isadora — perdeu o poder que achava que tinha no dia em que me deixou trancado naquele quarto por horas, aos catorze anos, por ter desobedecido um jantar.
Letícia congelou. Célia, que ouvia da porta, levou uma das mãos ao coração.
Isadora se levantou devagar. A máscara quase caiu.
— Você sempre foi fraco. Sentimental. Como a mãe.
— E você sempre foi uma mulher vazia, se escondendo atrás de controle.
A mulher pegou a bolsa, os óculos, e se dirigiu à porta.
— Vai se arrepender.
— Não mais do que me arrependi de ter te obedecido.
A porta se fechou com força. O silêncio voltou. Mas era outro tipo de silêncio agora. Mais cru. Mais revelador.
Letícia e Heitor ficaram se encarando por um momento. Pela primeira vez, ela não o viu como o homem que a comprou. Mas como o menino que teve que se endurecer para sobreviver.
— Você está bem? — ela perguntou, a voz mais suave.
Ele assentiu. Depois olhou para a escada.
— Me avise se for subir. Não quero que ande sozinha hoje.
Ela se aproximou.
— Não ando sozinha há muito tempo, Heitor. Só não estava acostumada a alguém se importar.
Letícia não subiu direto para o quarto. Precisava respirar. Precisava entender por que aquela cena mexera tanto com ela. Caminhou até o jardim de trás, onde as sombras das árvores balançavam como se o vento também carregasse as memórias da casa.
O que ouvira naquela sala não saía de sua cabeça.
“Você me deixou trancado por horas…”
A imagem era vívida. Um menino adolescente, sozinho, num quarto escuro. E então, muitos anos depois, um homem duro, frio, com o olhar de quem aprendeu a nunca mais depender de ninguém.
Ela sempre imaginara que Heitor fosse feito de pedra. Mas agora, começava a perceber que por trás da rocha havia rachaduras. Algumas antigas. Algumas recentes. E todas ainda vivas.
— Achei que estivesse no quarto.
A voz dele, baixa, surgiu às costas dela. Letícia não se virou de imediato. Apenas permaneceu ali, parada, observando as folhas se moverem com suavidade.
— Achei que você quisesse ficar sozinho.
Heitor parou ao lado dela, mantendo uma distância respeitosa. As mãos nos bolsos, os ombros tensos.
— Estou acostumado a ficar sozinho. Mas hoje… não sei.
Letícia finalmente o olhou.
— Você falou algo lá dentro que me surpreendeu.
— Qual parte? — ele perguntou, sem ironia.
— A parte em que você me defendeu. Mesmo sem gostar de mim.
Heitor apertou os lábios.
— Eu não disse que não gosto de você.
— Mas também nunca disse que gosta.
Ele virou o rosto levemente para ela. Havia sinceridade crua em sua expressão.
— Porque ainda não sei o que sinto. E porque estou tentando não machucar ninguém enquanto descubro.
Ela respirou fundo.
— Eu também estou tentando.
O silêncio se instalou de novo. Mas não era mais o mesmo silêncio do início. Era mais... íntimo. Menos afiado. Como se ali houvesse espaço para algo nascer — mesmo que lentamente.
— Por que você ficou? — ele perguntou, de repente. — Quando te levaram da casa do seu pai… por que não fugiu?
Letícia ergueu o olhar para o céu nublado.
— Porque fugir me faria parecer pequena. E eu me recusei a ser menor do que sou, mesmo quando me venderam como se eu fosse nada.
Heitor engoliu seco. Não havia resposta à altura. Nenhuma defesa.
— Desculpe — disse ele. Baixo, sincero.
Letícia o encarou. Pela primeira vez, a palavra tinha peso. Peso real. Peso de verdade.
— Você vai levar tempo pra saber como me tratar. E eu vou levar tempo pra saber se confio em você — disse ela. — Mas se a gente continuar se ferindo só porque foi assim que ensinaram a gente a amar, nunca vai sair disso.
Ele assentiu.
— Eu não sei cuidar. Mas talvez eu possa aprender.
— Então comece… com coisas simples — ela sugeriu. — Como jantar comigo. Como falar quando estiver bravo. Como perguntar se estou bem, mesmo quando não quiser saber.
— E você?
— Eu começo não esperando que você leia minha mente. Nem que me salve. Eu não preciso de um salvador. Preciso de um aliado.
Os olhos dele brilharam, por um segundo. Um brilho quase imperceptível. Como se uma tranca interna tivesse cedido um centímetro.
— Jantar às oito?
— Estarei pronta.
E então ela caminhou de volta à casa. Com passos lentos, mas firmes. Sabendo que, naquele dia, pela primeira vez, os dois haviam dado um passo fora da armadura.
Às oito em ponto, Letícia desceu. Estava com um vestido simples, mas que acentuava sua presença. Os cabelos soltos. A pele leve. O olhar, atento.
A sala de jantar estava com as luzes mais baixas, e a mesa posta para dois. Pratos brancos, taças alinhadas, guardanapos de linho. Simples. Intencional.
Heitor estava de pé ao lado da cadeira, esperando.
— Boa noite — ele disse.
— Boa noite.
Sentaram-se. O jantar foi servido por Célia em silêncio. Risoto, legumes grelhados, vinho tinto. Tudo sutil. Mas o clima entre eles era diferente. Menos formal. Mais humano.
— Quando eu era pequeno, minha mãe fazia uma sopa horrível — ele contou, de repente. — Mas eu fingia que gostava, só pra vê-la sorrir.
Letícia sorriu.
— E quando ela morreu, você ficou sem sorrisos.
— Exato.
— A minha mãe nunca cozinhou nada. Ela dizia que tinha alergia a cozinha. Mas me ensinou a dançar bolero no meio da sala. Ela achava que mulher nenhuma podia crescer sem saber como se mover no próprio corpo.
— E funcionou?
— Um pouco. Mas acho que só agora estou aprendendo de verdade.
Eles se olharam. Um instante longo. Sem máscaras. Sem defesas.
E foi ali, entre garfadas silenciosas e lembranças compartilhadas, que Letícia percebeu:
Talvez o amor não precisasse começar com paixão. Talvez pudesse começar com uma escuta. Com um reconhecimento. Com dois silêncios que, juntos, soavam menos dolorosos.
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Atualizado até capítulo 67
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