O envelope branco ainda estava sobre a escrivaninha quando Letícia acordou naquela manhã.
Ela não havia assinado nada. Dormira pouco, envolta em pensamentos e suposições. Sonhara com portas trancadas, com corredores que não levavam a lugar algum, com uma voz masculina chamando seu nome e sumindo antes que ela pudesse virar para ver de onde vinha.
A luz do sol entrava pelas frestas da cortina pesada, dourando o quarto em tons suaves. Mesmo assim, o ar permanecia denso. As paredes pareciam absorver os pensamentos dela, devolvendo apenas reflexos de incerteza.
Após tomar um banho demorado, vestiu-se com uma das roupas novas deixadas no armário — um vestido azul de tecido leve, simples, mas elegante. Não por vaidade, mas por estratégia. Havia aprendido, observando a mãe durante anos em eventos sociais, que a forma como uma mulher se apresentava era sua primeira armadura. E Letícia precisava de todas as que pudesse vestir.
Ao descer para o café da manhã, esperava encontrar apenas a funcionária. Mas, para sua surpresa, Heitor estava sentado à cabeceira da mesa, lendo o jornal impresso com a concentração de quem parece querer escapar do presente.
Ela hesitou por um segundo na porta, depois se recompôs e caminhou até o outro lado da mesa, sentando-se com a postura de quem está prestes a fechar um negócio — não de quem está prestes a se casar.
— Bom dia — disse ela, cortando o silêncio antes que ele pudesse ignorá-la.
Heitor ergueu os olhos. Havia algo cortante em seu olhar, mas também… um leve sinal de surpresa.
— Bom dia.
A mesa estava impecável. Suco natural, frutas frescas, pão aquecido, café passado. Letícia não tinha apetite, mas também não queria parecer frágil. Serviu-se de um pouco de tudo, com gestos calmos.
Ele não disse mais nada por alguns minutos. Apenas observava, com a sutileza de um homem acostumado a ler os outros sem ser lido.
— Não assinou o contrato — comentou, por fim, virando a página do jornal como se aquele detalhe fosse apenas uma nota de rodapé.
— Ainda não — ela respondeu. — Quero entender tudo o que estou aceitando.
Heitor assentiu, como se já esperasse aquilo.
— Tem dúvidas específicas?
Letícia o encarou, a xícara de café entre as mãos.
— Na cláusula sobre... liberdade de movimento. Há restrições?
— Você pode sair da casa, desde que me comunique antes. Apenas por segurança.
— Segurança ou controle?
Os olhos dele se apertaram ligeiramente.
— Os dois. O mundo é cruel, Letícia. E seu sobrenome, no momento, ainda é um alvo para muitos.
Ela se recostou na cadeira.
— O senhor é sempre assim… prático?
— Só com quem tenta me testar.
O silêncio voltou, mas agora era outro. Mais afiado.
Letícia apoiou os cotovelos sobre a mesa, cruzou os dedos e encarou-o com frieza elegante.
— Eu não sou idiota, Heitor. Sei que esse casamento não tem nada a ver com “ajuda”. Isso é um jogo de poder. Uma transação. Só ainda não entendi qual é o seu verdadeiro ganho nisso.
Ele abaixou lentamente o jornal, dobrando-o com precisão cirúrgica. Os olhos dele cravaram nos dela como se pudessem perfurar a camada que ela havia construído naquela manhã.
— O meu ganho é controle.
— Controle sobre o quê? — ela devolveu.
— Sobre a narrativa — disse com calma. — Sobre a imagem pública. Sobre o fim da história dos Fonseca não parecer uma tragédia, mas uma fusão. E sobre deixar claro que ainda sei dominar o que um dia tentaram manipular.
Letícia respirou fundo, engolindo a vontade de reagir. Ao invés disso, apenas disse:
— Então está tudo claro.
Levantou-se, foi até o escritório e voltou minutos depois com o envelope. Sentou-se novamente à mesa, retirou os papéis com firmeza e assinou um a um com mãos firmes.
Heitor apenas observava. Não agradeceu. Não sorriu. Mas havia algo no modo como a olhava — como se ela tivesse feito mais do que ele esperava. Como se, por um instante, ele a visse como igual.
Os dias seguintes se arrastaram em uma espécie de rotina cautelosa. Ele saía cedo, retornava apenas à noite. Letícia passava as manhãs explorando a casa e os jardins. Conversava com Célia, visitava dona Odete, e se sentava à beira da fonte principal com um livro aberto que raramente lia. Estava ali para observar. Para absorver o ritmo da nova prisão.
Não havia toques. Nem mesmo um gesto de aproximação entre ela e Heitor. Ele era educado, mas mantinha distância. Não jantavam juntos, não trocavam mais que frases básicas. Era como se estivessem presos no mesmo palácio de gelo, esperando para ver quem derretia primeiro.
Letícia não reclamava. Mas também não se escondia.
Célia notou.
— Você não abaixou a cabeça — disse, enquanto dobrava roupas no quarto.
— Nunca aprendi a fazer isso.
— Vai ser difícil, menina. Mas talvez seja o que vai te salvar aqui dentro.
— A senhora também foi “vendida”? — Letícia perguntou de repente.
Célia parou por um segundo.
— Fui entregue a um homem que achava que me possuía. E levei anos pra entender que não era ele quem me possuía, era o medo.
Letícia não respondeu. Mas aquilo a marcou como um corte lento. Medo era o que ela mais sentia. Mas não o tipo que a paralisava — o tipo que dava combustível.
Na noite anterior ao casamento civil, Letícia desceu até a sala principal. Estava sozinha, usando um robe de cetim claro, os cabelos soltos, os pés descalços sobre o piso frio. Caminhou até o piano fechado e passou os dedos sobre a tampa de madeira.
— Você toca? — a voz de Heitor soou atrás dela.
Ela se virou devagar, surpresa por vê-lo sem terno. Estava com uma camisa de algodão escura, as mangas dobradas, a barba por fazer mais evidente. Ele parecia menos rígido. Menos máscara.
— Aprendi quando era criança. Mas parei.
— Por quê?
— Porque ninguém mais parava pra ouvir.
Heitor deu dois passos à frente. Não se aproximou demais.
— Amanhã será oficial.
— Eu sei.
— Alguma dúvida?
— Muitas. Mas nenhuma que você possa responder.
Ele ficou em silêncio por um momento. Então disse, baixo:
— Não vou forçar nada, Letícia. Nem toque. Nem cama. Nem sentimento.
Ela ergueu o queixo, firme.
— Ótimo. Porque eu não sou o tipo de mulher que se força a nada.
Heitor sorriu. Não de verdade, mas com o canto da boca. Quase como se estivesse diante de algo raro.
— Boa noite, Letícia.
— Boa noite, Heitor.
O dia do casamento civil amanheceu nublado. Letícia despertou cedo, mas ficou deitada por longos minutos encarando o teto. O quarto ainda não era seu, mas começava a ter traços seus. A gaveta com os livros que ela gostava, os perfumes na penteadeira, o vestido que escolhera por conta própria.
Levantou-se com calma, tomou um banho demorado e vestiu-se para o casamento. O vestido era bege claro, sóbrio, mas elegante. O tipo de roupa que uma mulher discreta usaria num evento formal. Célia a ajudou com os cabelos, prendendo-os em um coque simples, com alguns fios soltos. Letícia dispensou maquiagem pesada. Queria parecer inteira. Queria que cada olhar percebesse que ela estava ali por escolha — mesmo que não tivesse tido outra opção.
Quando desceu para o saguão principal, Heitor já a aguardava. Estava com um terno cinza-escuro e gravata preta. Postura ereta, expressão neutra, mãos nos bolsos. Seus olhos a percorreram de cima a baixo, mas sem desejo. Havia algo diferente naquele olhar — uma mistura de respeito contido e curiosidade cautelosa. Como se ele estivesse tentando decifrá-la, página por página.
— Está pronta? — ele perguntou.
— Desde que me tiraram de casa com duas malas, estou me preparando.
Ele não respondeu. Apenas estendeu o braço. Letícia hesitou por um segundo antes de aceitar. E, juntos, caminharam até o carro.
O cartório ficava no centro da pequena cidade onde Heitor mantinha sua sede administrativa. O local era discreto. Não havia fotógrafos, nem flores, nem convidados. Apenas os dois, o motorista, Célia como testemunha, e um advogado que falava como se recitasse uma bula de remédio.
A sala era fria, com paredes bege e uma mesa de madeira onde repousavam os papéis do contrato, já assinados. A cerimônia durou menos de vinte minutos.
Letícia assinou com firmeza, sem vacilar. Quando foi a vez de Heitor, ele também não hesitou. Nenhum dos dois trocou votos. Nenhum sorriso. Nenhuma promessa.
A única troca de olhares aconteceu no momento em que o oficial os declarou, com voz monótona:
— Marido e mulher.
Letícia não sabia o que esperava sentir. Talvez raiva. Tristeza. Rejeição. Mas sentiu apenas uma certeza: a de que a partir daquele momento, tudo que ela faria seria dela.
Ao deixarem o cartório, Célia entrou no carro da frente, e os dois foram sozinhos no veículo principal. O motorista seguiu em silêncio, e o ar dentro do carro ficou pesado de palavras não ditas.
— Não vai perguntar se estou arrependida? — Letícia soltou, fitando a estrada pela janela.
Heitor manteve o olhar fixo à frente.
— Não sou o tipo de homem que espera arrependimento de ninguém. Arrependimentos vêm do que foi escolhido. E você não escolheu nada disso.
Ela o encarou, surpresa com a resposta. Havia verdade ali. E uma pontada de… compreensão?
— E você, Heitor? Por que aceitou isso?
Ele respirou fundo.
— Porque, por mais que eu despreze alianças forjadas, às vezes é preciso amarrar pontas soltas para manter em pé o que ainda não desabou.
Ela riu, amarga.
— Você fala como se ainda quisesse salvar alguma coisa.
— Eu quero. Mas não o que você pensa.
— Então o que?
Ele virou-se levemente para ela, com uma expressão carregada.
— Quero me salvar de mim mesmo, Letícia.
Ela não esperava ouvir aquilo. Aquilo não era calculado. Não era frase feita.
Era verdade.
De volta à casa, foram recebidos apenas por Célia e dona Odete, que aguardava na varanda coberta com um buquê simples de flores do campo nas mãos. Letícia sentiu o peito se apertar ao vê-la ali, esperando por eles como se aquilo fosse, de alguma forma, um momento bonito.
— Que Deus abençoe vocês — disse a senhora, entregando as flores a Letícia com um sorriso sincero.
Heitor se abaixou e beijou o rosto da avó com cuidado.
— Obrigado por estar aqui.
— Só não vim de branco porque minhas pernas não aguentam mais vestidos longos — respondeu, fazendo Letícia soltar um pequeno sorriso.
Dentro da casa, Célia preparou um jantar discreto. Não houve festa. Não houve brinde. Apenas uma refeição silenciosa, em que Letícia se sentou à mesa com Heitor e Odete, mastigando mais a tensão do que a comida.
— Vocês vão dividir o mesmo quarto? — perguntou dona Odete, com a naturalidade de quem esqueceu o filtro.
Heitor limpou os lábios com o guardanapo e respondeu sem alterar o tom:
— Ainda não. Letícia precisa de tempo.
A resposta caiu como uma toalha quente sobre os ombros dela. Não por causa do conteúdo — mas pela forma. Ele não a forçaria. Não a pressionaria. E isso, vindo de um homem como ele, era… inesperado.
Mais tarde, já de volta ao quarto, Letícia deitou-se na cama com o vestido ainda no corpo. Não tinha forças para se trocar. Tudo parecia imóvel. A casa. A noite. A vida.
Mas dentro dela, uma semente começava a se mover. Algo pequeno, mas poderoso.
Ela estava oficialmente casada. Presa a um contrato, a um sobrenome, a um homem que ninguém realmente conhecia.
Mas, ainda assim…
Ela sentia que ainda podia se reescrever. E faria isso, palavra por palavra.
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Atualizado até capítulo 67
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