Capítulo 4 - Um copo entre duas mãos que não sabem como se tocar

Letícia acordou antes do sol nascer. Não por insônia, mas por estranhamento. A cama parecia grande demais, o silêncio da casa mais denso do que nos dias anteriores. Era o primeiro dia oficialmente casada com um homem que ainda parecia mais um patrão do que um companheiro. A aliança em seu dedo era leve, discreta, fria. Ainda não pesava — mas incomodava.

Levantou-se devagar, abriu a cortina e encarou a manhã nublada lá fora. O céu carregava a mesma tonalidade que ela sentia por dentro: um cinza suspenso entre o que passou e o que ainda não começou de verdade.

Vestiu-se com um suéter claro e calça de tecido leve. Prendeu os cabelos em um rabo de cavalo simples e desceu para o café da manhã antes que qualquer funcionário a chamasse. Encontrou a cozinha já aquecida pelo cheiro de pão fresco e café forte.

Célia sorriu ao vê-la.

— Dormiu bem?

Letícia deu de ombros.

— O suficiente.

— Heitor saiu cedo. Foi à sede do hospital. Costuma passar o dia por lá nas segundas.

Letícia assentiu e se serviu de café. A cada gole, sentia um estranho vazio sendo preenchido lentamente. Não era fome. Era necessidade de controle. De criar alguma normalidade em meio ao absurdo.

— Posso te mostrar o escritório hoje, se quiser — Célia ofereceu. — Ou a ala de hóspedes. É um espaço mais calmo, fica no fundo da casa. Quase ninguém vai lá.

Letícia pensou por um instante.

— Quero ver o jardim da estufa.

Célia a olhou com surpresa discreta.

— Não é um lugar que Heitor gosta de mostrar.

— Justamente por isso — Letícia respondeu, bebendo o último gole do café com um sorriso contido.

O jardim da estufa ficava nos fundos, cercado por um muro de heras antigas e uma pequena estufa de vidro em formato octogonal. Era como um relicário esquecido. As plantas estavam bem cuidadas, mas o lugar tinha o silêncio de algo que havia sido deixado de lado há muito tempo.

Letícia entrou devagar. Lá dentro, o ar era mais quente, mais úmido, e o cheiro de terra molhada se misturava ao perfume das orquídeas, das violetas e das pequenas flores silvestres que cresciam em vasos de barro.

No centro, um banco de ferro coberto por um cobertor dobrado. Ela sentou-se ali, observando os detalhes. Uma pequena mesa com livros de jardinagem antigos, ferramentas organizadas com perfeição, potes com sementes rotuladas à mão.

— Ele vem aqui? — perguntou, quase num sussurro.

— Não há anos — respondeu Célia, parada à porta. — Era o lugar preferido da mãe dele. Ela cuidava de cada flor com as próprias mãos. Depois que morreu, Heitor trancou a estufa por meses. Só reabriu porque dona Odete insistiu que a vida precisa de luz.

Letícia olhou ao redor. Era o primeiro lugar naquela casa onde sentia algo parecido com calor. Não físico. Humano.

Ao fim da tarde, ouviu o som dos pneus na entrada. Heitor havia voltado. Ela, que lia na biblioteca, não se mexeu. Queria entender quanto tempo levaria até ele vir procurá-la.

Demorou exatos cinquenta minutos.

Ele apareceu à porta da biblioteca, sem bater.

— Célia me disse que você passou o dia na estufa.

Ela fechou o livro devagar.

— Me disseram que era proibida. Fiquei curiosa.

Heitor não sorriu, mas tampouco pareceu irritado.

— A maioria das coisas nesta casa são acessíveis. Desde que com respeito.

— E curiosidade, pra você, é desrespeito?

— Às vezes.

Letícia se levantou e caminhou em direção à estante, como se a conversa não lhe causasse impacto. Mas causava. Sempre causava. Ele era tão bom com frases curtas e olhares longos que parecia saber onde atingir mesmo sem levantar a voz.

— A estufa é linda — ela comentou, ainda de costas. — Mesmo com toda a dor que carrega, ainda parece viva. Mais do que qualquer outro cômodo da casa.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos antes de responder.

— A dor pode ser um excelente adubo, se souber como usá-la.

Ela o encarou por sobre o ombro.

— Você usa ou se enterra nela?

Dessa vez, o silêncio foi mais longo. E mais pessoal.

Heitor desviou o olhar primeiro.

— O jantar está sendo servido. Se quiser descer…

— Estou sem fome.

Ele assentiu e saiu. Mas dessa vez, bateu a porta com delicadeza ao sair.

Horas depois, já deitada, Letícia ouviu uma batida leve na porta. Ela levantou-se, com o coração acelerado.

Ao abrir, encontrou uma bandeja. Um copo de leite quente. Um pedaço de bolo simples. E um bilhete.

A letra era firme, masculina:

“Nem sempre é fome. Às vezes, é só o corpo querendo um gesto de cuidado.”

Não havia assinatura. Mas ela sabia quem era.

Fechou a porta devagar, voltou para a cama e bebeu o leite com calma.

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Nalu Correa

Nalu Correa

ele é muito fixado mais já está se preocupando com ela

2025-07-17

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Capítulos
1 Capítulo 1 - Quando tudo desaba, o que resta é você.
2 Capítulo 2 - Uma casa pode ter paredes de mármore e, ainda assim, ser feita de grades.
3 Capítulo 3 - Tudo começa com o silêncio. Depois vêm os olhos. E só então, as palavras.
4 Capítulo 4 - Um copo entre duas mãos que não sabem como se tocar
5 Capítulo 5 - Primeiro se aprende a ouvir o silêncio. Depois, a escutá-lo.
6 Capítulo 6 - Entre dois estranhos, o perigo às vezes é a primeira ponte.
7 Capítulo 7
8 Capítulo 8
9 Capítulo 9
10 Capítulo 10
11 Capítulo 11
12 Capítulo 12
13 Capítulo 13
14 Capítulo 14
15 Capítulo 15
16 Capítulo 16
17 Capítulo 17
18 Capítulo 18
19 Capítulo 19
20 Capítulo 20
21 Capítulo 21
22 Capítulo 22
23 Capítulo 23
24 Capítulo 24
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61 Capítulo 61
62 Capítulo 62
63 Capítulo 63
64 Capítulo 64
65 Capítulo 65
66 Capítulo 66
67 Epílogo
Capítulos

Atualizado até capítulo 67

1
Capítulo 1 - Quando tudo desaba, o que resta é você.
2
Capítulo 2 - Uma casa pode ter paredes de mármore e, ainda assim, ser feita de grades.
3
Capítulo 3 - Tudo começa com o silêncio. Depois vêm os olhos. E só então, as palavras.
4
Capítulo 4 - Um copo entre duas mãos que não sabem como se tocar
5
Capítulo 5 - Primeiro se aprende a ouvir o silêncio. Depois, a escutá-lo.
6
Capítulo 6 - Entre dois estranhos, o perigo às vezes é a primeira ponte.
7
Capítulo 7
8
Capítulo 8
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10
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Capítulo 58
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Capítulo 59
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Capítulo 60
61
Capítulo 61
62
Capítulo 62
63
Capítulo 63
64
Capítulo 64
65
Capítulo 65
66
Capítulo 66
67
Epílogo

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