Letícia acordou antes do sol nascer. Não por insônia, mas por estranhamento. A cama parecia grande demais, o silêncio da casa mais denso do que nos dias anteriores. Era o primeiro dia oficialmente casada com um homem que ainda parecia mais um patrão do que um companheiro. A aliança em seu dedo era leve, discreta, fria. Ainda não pesava — mas incomodava.
Levantou-se devagar, abriu a cortina e encarou a manhã nublada lá fora. O céu carregava a mesma tonalidade que ela sentia por dentro: um cinza suspenso entre o que passou e o que ainda não começou de verdade.
Vestiu-se com um suéter claro e calça de tecido leve. Prendeu os cabelos em um rabo de cavalo simples e desceu para o café da manhã antes que qualquer funcionário a chamasse. Encontrou a cozinha já aquecida pelo cheiro de pão fresco e café forte.
Célia sorriu ao vê-la.
— Dormiu bem?
Letícia deu de ombros.
— O suficiente.
— Heitor saiu cedo. Foi à sede do hospital. Costuma passar o dia por lá nas segundas.
Letícia assentiu e se serviu de café. A cada gole, sentia um estranho vazio sendo preenchido lentamente. Não era fome. Era necessidade de controle. De criar alguma normalidade em meio ao absurdo.
— Posso te mostrar o escritório hoje, se quiser — Célia ofereceu. — Ou a ala de hóspedes. É um espaço mais calmo, fica no fundo da casa. Quase ninguém vai lá.
Letícia pensou por um instante.
— Quero ver o jardim da estufa.
Célia a olhou com surpresa discreta.
— Não é um lugar que Heitor gosta de mostrar.
— Justamente por isso — Letícia respondeu, bebendo o último gole do café com um sorriso contido.
O jardim da estufa ficava nos fundos, cercado por um muro de heras antigas e uma pequena estufa de vidro em formato octogonal. Era como um relicário esquecido. As plantas estavam bem cuidadas, mas o lugar tinha o silêncio de algo que havia sido deixado de lado há muito tempo.
Letícia entrou devagar. Lá dentro, o ar era mais quente, mais úmido, e o cheiro de terra molhada se misturava ao perfume das orquídeas, das violetas e das pequenas flores silvestres que cresciam em vasos de barro.
No centro, um banco de ferro coberto por um cobertor dobrado. Ela sentou-se ali, observando os detalhes. Uma pequena mesa com livros de jardinagem antigos, ferramentas organizadas com perfeição, potes com sementes rotuladas à mão.
— Ele vem aqui? — perguntou, quase num sussurro.
— Não há anos — respondeu Célia, parada à porta. — Era o lugar preferido da mãe dele. Ela cuidava de cada flor com as próprias mãos. Depois que morreu, Heitor trancou a estufa por meses. Só reabriu porque dona Odete insistiu que a vida precisa de luz.
Letícia olhou ao redor. Era o primeiro lugar naquela casa onde sentia algo parecido com calor. Não físico. Humano.
Ao fim da tarde, ouviu o som dos pneus na entrada. Heitor havia voltado. Ela, que lia na biblioteca, não se mexeu. Queria entender quanto tempo levaria até ele vir procurá-la.
Demorou exatos cinquenta minutos.
Ele apareceu à porta da biblioteca, sem bater.
— Célia me disse que você passou o dia na estufa.
Ela fechou o livro devagar.
— Me disseram que era proibida. Fiquei curiosa.
Heitor não sorriu, mas tampouco pareceu irritado.
— A maioria das coisas nesta casa são acessíveis. Desde que com respeito.
— E curiosidade, pra você, é desrespeito?
— Às vezes.
Letícia se levantou e caminhou em direção à estante, como se a conversa não lhe causasse impacto. Mas causava. Sempre causava. Ele era tão bom com frases curtas e olhares longos que parecia saber onde atingir mesmo sem levantar a voz.
— A estufa é linda — ela comentou, ainda de costas. — Mesmo com toda a dor que carrega, ainda parece viva. Mais do que qualquer outro cômodo da casa.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos antes de responder.
— A dor pode ser um excelente adubo, se souber como usá-la.
Ela o encarou por sobre o ombro.
— Você usa ou se enterra nela?
Dessa vez, o silêncio foi mais longo. E mais pessoal.
Heitor desviou o olhar primeiro.
— O jantar está sendo servido. Se quiser descer…
— Estou sem fome.
Ele assentiu e saiu. Mas dessa vez, bateu a porta com delicadeza ao sair.
Horas depois, já deitada, Letícia ouviu uma batida leve na porta. Ela levantou-se, com o coração acelerado.
Ao abrir, encontrou uma bandeja. Um copo de leite quente. Um pedaço de bolo simples. E um bilhete.
A letra era firme, masculina:
“Nem sempre é fome. Às vezes, é só o corpo querendo um gesto de cuidado.”
Não havia assinatura. Mas ela sabia quem era.
Fechou a porta devagar, voltou para a cama e bebeu o leite com calma.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 67
Comments
Nalu Correa
ele é muito fixado mais já está se preocupando com ela
2025-07-17
0