Escola de Herói
...Mei...
O som das rodas da mala deslizando pelo chão impecável da escola me irritava. Alto demais. Qualquer coisa que chamasse atenção era um incômodo. Eu mantinha os olhos fixos à frente, ignorando os olhares que sentia nas costas — olhares curiosos, olhares julgadores. Olhares que queriam me colocar em alguma categoria. “Estrangeira”, provavelmente. “Japonesa”, “fria”, “bonita”, “nova”. Mas nenhuma dessas palavras me importava.
O colégio era gigantesco. Luxuoso demais. Tinha mais cara de castelo do que de escola, com paredes de mármore branco e vitrais coloridos iluminando o saguão principal como se fosse uma igreja. Claro. A elite inglesa precisava se sentir superior até estudando.
Minha avó andava alguns passos atrás de mim, sorridente como sempre, tentando acompanhar o meu ritmo sem demonstrar esforço. Ela sempre fazia isso. Sorria mesmo quando estava cansada. Eu não. Eu nunca finjo nada. Meus olhos pretos varriam o local enquanto eu mapeava mentalmente cada saída, cada corredor, cada câmera de segurança.
Havia três.
Sim, eu notei.
Quando finalmente paramos na secretaria, a recepcionista me lançou aquele sorriso automático, o tipo que me dá vontade de desaparecer.
“Você deve ser Mei Kurisu! Seja muito bem-vinda à nossa escola. Você veio do Japão, certo?”
Assenti, curta e seca. Ela pareceu hesitar por um segundo, mas logo continuou com aquele entusiasmo forçado.
“Você foi colocada na Turma A. Eles são os melhores entre os melhores! E... você vai gostar da sua nova classe. Temos um ambiente muito acolhedor.”
Mentira. Nada acolhedor sobre um lugar onde todo mundo é avaliado desde o primeiro segundo. Poder, aparência, influência. Aqui, tudo é uma competição. E eu não vim para competir.
Recebi meu horário e meu crachá de identificação. Evitei olhar para ele. Detestava ser rotulada.
Ao sairmos da secretaria, minha avó se virou para mim com aquele olhar gentil.
“Lembre-se do que conversamos, Mei. Apenas... seja você mesma.”
“Eu sempre sou, obaasan,” respondi, mas sem emoção.
Ela apenas sorriu, como se entendesse que essa era a melhor versão que eu podia oferecer ao mundo.
Caminhei sozinha até a sala da Turma A. Nenhuma pressa. Apenas passos firmes e calculados. A mochila pendia em um ombro só, e o cabelo preto, liso e impecável, balançava levemente conforme eu andava. Assim que parei diante da porta da sala, ouvi as vozes do lado de dentro.
Entre elas... uma voz familiar.
Jinu.
Eu a reconheceria até no meio do caos. Meu irmão mais velho, o prodígio do fogo, o queridinho da escola. Alto, bonito, carismático. Jade devia estar ali também. Os dois sempre andavam juntos, como se fossem um espelho um do outro. Mesmo assim, eu já tinha decidido.
Aqui, eu sou ninguém.
A porta se abriu sozinha. Uma garota loira, com olhos claros e expressão elegante, me encarava como se já soubesse tudo sobre mim. Usava o uniforme perfeitamente ajustado, o cabelo preso num coque impecável. Irritantemente perfeita.
“Você deve ser a nova aluna. Mei Kurisu, certo?”
Assenti, e dessa vez não disse nada.
“Sou Charlotte Taylor. Presidente da classe. Bem-vinda.”
Ela não estendeu a mão. Apenas me deu um leve aceno de cabeça. Como uma rainha cumprimentando uma desconhecida.
Meus olhos encontraram os dela por dois segundos. Foram suficientes para perceber algo: ela não era como os outros. Havia poder ali. Um tipo de poder... diferente. E ela sabia disso.
Interessante.
Meus irmãos me olharam do outro lado da sala, mas não disseram uma palavra. Como combinado. Eles entenderam. Aqui, eu era só uma estudante qualquer.
Mas os olhos de Charlotte continuavam sobre mim. Como se tentasse decifrar o que havia por trás da minha expressão vazia.
Boa sorte com isso.
Eu desviei o olhar de Charlotte sem dizer nada. Não fiz questão de retribuir o gesto, nem de fingir interesse. Ela podia ser a presidente da classe, a mais forte, a mais popular — isso não significava nada pra mim. Poder de verdade não se exibe. Ele se esconde, observa, espera... e quando precisa, destrói.
Caminhei entre as fileiras de carteiras como se eu já conhecesse o lugar. Escolhi um lugar no fundo, perto da janela. Precisava da visão externa. A luz do sol atravessava o vidro e tocava meu rosto, quente demais para alguém que preferia o frio. Mas não me importei.
Puxei a cadeira sem barulho, sentei, coloquei a mochila no chão e cruzei os braços. Silêncio.
Alguns sussurros surgiram na sala, provavelmente sobre mim. Perguntas óbvias: "Quem é ela?" — "Por que não falou com a Charlotte?" — "Ela é japonesa?" — "Bonita, mas estranha."
E então, a porta se abriu novamente. A professora entrou com passos firmes, cabelo preso num coque apertado e um jaleco leve sobre o vestido escuro. Ela não parecia do tipo que aceitava conversa paralela.
"Turma A, em silêncio."
A voz dela cortou o ambiente com precisão.
"Temos uma nova aluna."
Ela se virou para mim, que continuei sentada no meu canto. Quase invisível — se eu quisesse, poderia de fato estar invisível. Mas ainda não era hora.
"Você. Levante-se e se apresente à classe."
Me levantei devagar. Senti todos os olhos voltando para mim. Meus irmãos incluídos. Mas fingi que eles eram estranhos como qualquer outro.
"Mei Kurisu."
Minha voz saiu baixa, mas firme.
"Vim do Japão."
"Mais alguma coisa que queira dizer, senhorita Kurisu?"
Neguei com a cabeça. A professora arqueou uma sobrancelha, mas não insistiu.
"Muito bem. Pode se sentar."
Voltei ao meu lugar sem pressa. Alguns alunos cochicharam. Senti a tensão no ar — aquela tensão que surge quando algo novo entra em um ecossistema fechado.
Mas eu não estava ali pra me enturmar.
Nem pra chamar atenção.
E muito menos pra fazer amigos.
Charlotte me lançou um olhar lateral. Curioso, talvez até provocativo.
Mas não reagi.
Poder... reconhece poder.
Ela podia ser a estrela daquele lugar.
Mas eu era a sombra.
As primeiras aulas passaram como eu esperava: longas, entediantes, e previsíveis. Matemática avançada, química, literatura inglesa... todos os professores com aquele mesmo tom condescendente, como se estivessem falando com gênios adormecidos. A maioria dos alunos tentava parecer interessada. Eu só anotava o essencial, com a caligrafia perfeita e limpa que aprendi com minha avó.
Charlotte respondeu todas as perguntas que a professora fez — como era de se esperar da presidente da classe. Ninguém além dela ousava competir por atenção. Era como se o centro da escola girasse em torno daquela garota loira, e todo o resto orbitasse em silêncio.
Eu? Eu só observava.
Quando o sinal do intervalo tocou, suspirei aliviada. Peguei meu livro sobre economia — um manual sobre estratégias de colapso financeiro global — e me recostei na cadeira. Nada de ir à cantina, nada de se misturar. O silêncio era meu alimento. A lógica, meu abrigo.
Mas é claro... paz demais nunca dura.
Três garotas se aproximaram da minha mesa. Roupas alinhadas, maquiagem leve, mas calculada. Ricas, mimadas, e claramente fãs de Charlotte. O trio clássico de garotas que precisava estar sempre por dentro de tudo. Uma delas se apoiou na borda da minha carteira com o cotovelo, me encarando como se tivesse o direito de entrar na minha cabeça.
"Oi! Você é mesmo do Japão, né?"
Não respondi de imediato. Continuei lendo por mais alguns segundos, até marcar a página e fechar o livro com um estalo seco. Então levantei os olhos e encarei as três.
"Sim."
"Uau, que legal! Deve ser tão diferente estudar aqui. Você morava em Tóquio? Acha o uniforme estranho? E—"
Interrompi com uma voz cortante e baixa, clara como gelo:
"Por que minha vida importa pra vocês?"
A garota parou, surpresa. Eu continuei, sem mudar o tom:
"Eu vim do Japão. Sim. E não, não quero conversar sobre isso. Me deixem em paz."
Um silêncio pesado caiu. Elas pareciam não saber se se sentiam ofendidas ou humilhadas. Eu voltei os olhos para o livro e abri na página marcada, como se nada tivesse acontecido.
"...estranha", murmurou uma delas, enquanto se afastavam.
Perfeito. Isso era exatamente o que eu queria.
O problema é que, mesmo quando você se isola, o mundo parece insistir em empurrar gente até você. Como pragas. Como desafios. Como... Charlotte Taylor.
Quando levantei os olhos pela segunda vez, ela estava me observando do outro lado da sala.
De novo.
Mas ainda assim... não disse nada.
Boa garota.
Os sussurros ainda ecoavam no fundo da sala, mas eu já havia silenciado o mundo novamente com a simples companhia do meu livro. Me esconder no fundo da sala não era só uma escolha — era um aviso: não se aproximem.
Mas, mesmo enquanto eu lia, minha mente viajava. Era inevitável. Toda vez que alguém tentava saber mais sobre mim, eu lembrava da mesma pergunta:
Por que eu moro com minha avó no Japão, e não com meus pais aqui na Inglaterra?
A resposta era simples. E ao mesmo tempo, impossível de explicar pra alguém comum.
Porque eu não sou comum.
Desde pequena, eu era… peculiar. Enquanto outras crianças se machucavam correndo ou brincavam com bonecas, eu estava ocupada… desaparecendo.
Literalmente.
Me lembro da primeira vez que fiquei invisível. Tinha uns seis anos. Estava assustada, com medo de um trovão. Fechei os olhos... e deixei de existir por alguns segundos. Quando abri os olhos novamente, minha mãe gritava, e meu pai não sabia o que fazer. Me procuraram por horas até que eu “reapareci” no meio da sala, como se tivesse voltado de outro mundo.
Mas aquilo foi só o começo.
Logo depois, vieram os impulsos de fogo. Depois o gelo. Um dia fiz um brinquedo flutuar com a força do pensamento, e numa outra manhã, meu quarto estava cheio de faíscas — eletricidade viva. Meus pais, mesmo com todos os recursos e dinheiro, não sabiam lidar com uma filha como eu.
Minha avó foi a única que entendeu.
Ela não teve medo. Não tentou me prender. Nem me estudar.
Ela me levou embora.
Disse que o mundo ainda não estava pronto pra mim. E talvez não estivesse mesmo.
Me treinou por anos nas montanhas silenciosas do Japão, longe da sociedade, longe da escola, longe de tudo. Me ensinou a controlar. A pensar. A nunca agir por impulso. Me ensinou a esconder.
Minha avó costumava ser uma lenda. Dizem que no passado, ela foi uma heroína com habilidades únicas — poderosa, respeitada, temida. Mas hoje ela só queria paz.
E eu também. Só que…
Eu não quero ser como ela.
Não quero ser heroína. Nem vilã.
Quero seguir meu próprio caminho. Mesmo que ninguém entenda. Mesmo que eu ande sozinha.
Porque quanto mais o mundo descobre sobre você, mais ele tenta controlar você.
E eu não vou ser controlada.
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O sinal tocou, me puxando de volta ao presente.
O intervalo terminou. As pessoas começaram a se mover. Vozes. Passos. Risadas vazias. Eu permaneci sentada até que todos saíssem. Só então, lentamente, me levantei com meu livro na mão.
Na porta da sala, parada, me esperando… estava Charlotte.
Outra vez com aquele olhar — inquisitivo, calmo, como se estivesse lendo todas as camadas da minha mente.
Mas antes que ela dissesse qualquer coisa, eu a encarei e falei, seca:
“Se você está aqui pra perguntar de onde eu vim, ou tentar me encaixar em algum rótulo da sua cabeça… pode parar por aqui.”
Ela arqueou uma sobrancelha. E pela primeira vez, sorriu de canto.
“Não. Eu só queria saber… por que você está se escondendo.”
Eu não respondi. Apenas a encarei por dois segundos — longos, intensos — e então passei direto por ela, sem dizer uma palavra.
Ela que pensasse o que quisesse.
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Atualizado até capítulo 162
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