...Mei...
As paredes do dormitório eram finas, mas protegiam o que eu mais precisava: isolamento.
Fechei a porta com calma, retirei o blazer da aula prática, e larguei a mochila no chão como se carregasse cimento. Meu corpo não estava cansado. Mas a minha mente…
Estava fervendo.
“Seu controle é nível tático.”
“Você foi treinada por um veterano.”
“Ou tem mais de um poder e está escondendo os outros.”
A voz do professor ainda ecoava na minha cabeça como um erro que eu não podia permitir acontecer de novo.
Eu me sentei na cama e encarei minhas mãos. Estavam frias, como sempre — mas agora com um leve tremor. Pequeno. Quase imperceptível.
Mas eu sentia.
Eu senti o olhar de todos.
Eu senti o peso do meu nome sendo repetido por estranhos.
Eu senti o jeito como Charlotte me encarava depois do combate.
E eu odeio ser sentida.
O quarto era simples: cama, escrivaninha, estante com livros de economia, física, psicologia. Tudo meticulosamente organizado. No canto, uma poltrona perto da janela, onde minha avó lia às vezes quando ficava por perto.
Ela estava lá hoje.
Como se soubesse que eu precisaria dela.
— Você voltou mais cedo do que imaginei — disse ela, com aquele tom calmo que só ela tinha. — Não gostou da aula prática?
— Foi tudo… como esperado — respondi, sentando no chão, encostada na parede.
Minha avó fechou o livro devagar e tirou os óculos. Ela sempre fazia isso quando ia falar sério.
— O que aconteceu, Mei?
Eu hesitei. Queria dizer "nada", como sempre. Mas por alguma razão… não disse.
Talvez fosse o cansaço.
Talvez fosse o fato de que, entre todas as pessoas do mundo, ela era a única que realmente me conhecia.
— Me notaram.
— Era inevitável.
— Eu não queria que fosse tão cedo.
Ela suspirou. Se levantou com dificuldade e veio até mim. Sentou no chão, ao meu lado, como fazia quando eu era criança e não conseguia dormir.
— Você pode controlar seus poderes, Mei…
— Eu sei.
— Mas precisa aprender a controlar o impacto deles nos outros também.
Eu virei o rosto pra ela.
— Eu não quero fazer parte disso. Do time de elite, da popularidade, dos olhares. Eu só quero passar despercebida.
— Mas você não nasceu pra isso — ela disse, com ternura. — Ninguém com cinco dons nasceu pra viver nas sombras.
— Você conseguiu.
Ela sorriu. Um sorriso cheio de dor e lembrança.
— E você sabe o quanto eu perdi pra isso.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. A noite começava a cair lá fora. O céu de tons roxos e azuis pintava o vidro da janela. O mundo seguia em movimento. Mas naquele quarto, o tempo parou.
— Mei… — ela disse baixinho — ...quem está te observando?
Eu hesitei.
Mas então respondi.
— Charlotte.
Minha avó fechou os olhos por um instante. Pensou. Respirou fundo.
— Então… cuidado.
— Ela é perigosa?
— Não sei. Mas pessoas como ela não gostam de ficar no escuro por muito tempo.
A noite caiu rápido.
Depois da conversa com minha avó, eu não quis jantar. Nem ler. Nem treinar.
Simplesmente fiquei olhando o teto.
Talvez eu estivesse tentando prever o que viria.
Mas, no fundo… eu já sabia.
Tudo está começando a sair do controle.
— Vai dormir cedo hoje — disse ela, arrumando os últimos papéis na escrivaninha.
Assenti com a cabeça.
Ela se aproximou da minha cama, ajeitou meu cobertor como fazia quando eu era pequena — um gesto simples, mas que sempre doía mais do que qualquer soco.
Me fez lembrar que… mesmo com tanto poder, ainda sou só uma garota de dezoito anos tentando não afundar.
— Vai sair amanhã? — perguntei, tentando parecer desinteressada.
— Não.
— Ah…
— Vou sair hoje.
Minha garganta travou.
Virei o rosto para ela.
— Hoje?
Ela assentiu.
— O voo está marcado para às 3h. Pegarei um carro em silêncio. Já avisei à direção.
Minha mente se encheu de perguntas que eu não podia fazer.
Ela não me deixaria aqui se não tivesse certeza de que eu aguentaria.
Mas mesmo assim… doeu.
— Por quê?
Ela se sentou à beira da cama.
— Porque agora você está pronta.
— Eu não pedi isso.
— Eu sei. Mas vai ser necessário.
Ela segurou minha mão.
A única pessoa nesse mundo que consegue fazer isso sem que eu recuse o toque.
— As coisas vão começar a se mover, Mei. Gente como Charlotte, como seus irmãos… estão em jogo. E você, querendo ou não, também está.
— Eu não quero ser lenda.
— Então seja real. Mas continue sendo viva.
Fechei os olhos.
Ela se inclinou e beijou minha testa, bem no centro, onde nenhuma cicatriz ou marca poderia existir.
— Cuide de si.
— Cuide de mim — sussurrei de volta, quase como uma oração.
Quando acordei no dia seguinte…
O quarto estava vazio.
A poltrona, fria.
A escrivaninha, arrumada.
O chá que ela sempre deixava, ausente.
Ela se foi.
E agora…
Sou só eu.
Acordei antes do despertador.
O quarto estava em silêncio absoluto. Nenhum sinal da voz da minha avó dizendo pra eu não esquecer o café. Nenhum barulho do livro dela virando página atrás de mim. Nenhum chá no canto da mesa. Nada.
Exatamente como eu gosto.
Ou… como aprendi a gostar.
Me levantei. Vesti o uniforme com calma. Prendi o cabelo. Enfiei os fones nos ouvidos — mas nem liguei a música. Era só pra afastar o mundo. Às vezes, o melhor jeito de ficar invisível é fingir que não ouve ninguém.
Caminhei pelos corredores da escola como uma sombra entre vultos coloridos.
Murmúrios surgiam quando eu passava.
Alguns cochichavam meu nome.
Outros citavam o treino de ontem.
"Ela derrotou a Charlotte?"
"Será que ela é irmã do Jinu mesmo?"
"Ela não tem expressão nenhuma. Parece um robô."
"Talvez ela nem seja humana."
Todos acham que sabem alguma coisa.
Mas ninguém sabe de verdade.
E assim eu prefiro.
Entrei na sala antes da maioria. Me sentei no mesmo lugar, no fundo, onde a luz da janela não alcança direito. Abri meu livro de economia.
Fingi que o mundo não existia.
Fingi tão bem que… quase acreditei.
Até sentir a presença dela se aproximando de novo.
Charlotte.
Ela não disse nada.
Não puxou conversa.
Apenas se sentou no lugar da frente, como quem decidiu que aquele era o novo normal.
E ficou lá.
Por minutos.
Quietamente.
Como se o simples ato de estar perto de mim fosse parte de um plano maior.
Mas eu não ia ceder.
Não ia começar amizade.
Não ia responder provocação.
Não ia deixar que ninguém ocupasse o espaço que minha avó deixou vazio.
Isso é meu. Só meu.
Não preciso de Charlotte.
Não preciso do time de elite.
Não preciso de Jinu, nem de Jade, nem de ninguém.
A única coisa que eu preciso agora…
É continuar lendo.
Treinando.
Sobrevivendo.
Sozinha.
Como sempre.
O som da sala se preenchia aos poucos com vozes arrastadas, carteiras sendo arrastadas, e gente tentando parecer interessante.
Charlotte continuava sentada à minha frente.
Parada. Silenciosa.
Como se estivesse esperando… algo.
Mas eu não dei nada.
Mantive os olhos no livro, mesmo quando sentia que os dela se voltavam pra mim de tempos em tempos. Se ela queria atenção, ia morrer tentando.
Foi quando elas entraram.
O grupinho.
Sabrina. Millie. Ava.
As três garotas mais fofoqueiras e vazias dessa escola — e, infelizmente, as mais próximas de Charlotte.
Elas notaram que ela estava sentada perto de mim. E não gostaram.
— O que você tá fazendo aqui? — sussurrou Millie para Charlotte. — Tem um milhão de lugares melhores do que ficar do lado dessa... esquisita.
Charlotte não respondeu. Só manteve os olhos à frente.
Eu continuei lendo, como se não tivesse ouvido.
Mas elas não iam parar por aí.
Sabrina se aproximou da minha carteira com um sorriso venenoso.
— Ei, Kurisu… você tem sangue ou é feita de gelo mesmo?
Eu continuei lendo.
— Será que se empurrar ela, ela reage? — Ava riu, puxando uma cadeira e sentando do meu lado como se fosse engraçado.
Queriam atenção.
Mas de mim… não teriam.
— Vai falar alguma coisa? — Sabrina insistiu, inclinando-se sobre minha carteira. — Ou só sabe congelar as pessoas como um robozinho?
Eu respirei fundo, contando mentalmente até três. Não por medo.
Por controle.
Porque se eu levantasse dali, não ia ser bonito.
Mas então…
Charlotte se levantou.
Do nada.
A sala inteira parou por um segundo.
— Já deu. — A voz dela soou baixa, firme, como uma ordem velada.
As três se calaram, confusas.
— Vocês estão fazendo papel de idiotas — disse ela, encarando Millie direto nos olhos. — E não me importa se gostam ou não dela. Esse lugar aqui é meu, não de vocês. Se quiserem continuar circulando no conselho estudantil, sugiro que aprendam a calar a boca.
Sabrina piscou, sem reação. Ava corou. Millie parecia ter levado um soco invisível.
— Agora sumam — Charlotte completou, sentando de volta.
Elas saíram.
Simples assim.
E eu… continuei lendo.
Mas agora sentia algo novo:
A proteção de alguém que não pedi.
A presença de alguém que não recua.
Charlotte não olhou pra mim.
Nem sorriu.
Ela só ficou ali, em silêncio.
E, mesmo contra minha vontade…
Isso mexeu comigo.
A aula seguiu.
Palavras no quadro. Fórmulas flutuando nos hologramas. Alunos fingindo anotar.
Eu absorvia tudo sem esforço, como sempre. Mas pela primeira vez desde que cheguei… meus olhos voltavam à mesma página.
Repetidamente.
Me desconcentrei.
Não por causa do conteúdo.
Mas por causa dela.
Charlotte.
A forma como ela agiu.
Sem hesitação. Sem necessidade.
Sem me pedir nada em troca.
Ela podia ter deixado as amigas fazerem o que quisessem.
Podia ter me ignorado.
Podia ter continuado no mundo dela, onde tudo gira ao redor do sobrenome Taylor e do poder divino que carrega.
Mas não.
Ela escolheu se meter.
E agora…
Ela estava me esperando na porta da sala.
Fingi que não vi.
Segui pelo corredor com passos firmes, como sempre.
Mas ela me alcançou sem esforço.
— Você sempre anda rápido assim ou é só quando quer fugir de mim?
Continuei andando.
— Não estou fugindo — respondi.
— Ótimo. Assim não preciso correr.
Ela sorriu com o canto da boca. Irritante. Natural.
Mas tinha algo naquela leveza dela… que me desconcertava.
— Você não precisava fazer aquilo — falei, finalmente parando.
Charlotte se encostou na parede, de braços cruzados.
— Eu sei.
— Então por quê?
Ela me olhou por um segundo.
— Porque eu não gosto de ver gente estúpida testando limites que não entendem.
Silêncio.
— E porque eu… — ela hesitou, olhando nos meus olhos — …tô tentando entender você.
Meu corpo ficou tenso.
Minhas mãos se fecharam discretamente.
— Não tem nada pra entender.
— Discordo.
— Charlotte… — falei, mais firme agora — …não perca seu tempo comigo.
Ela se aproximou um passo. Não ameaçador. Mas direto.
— Já estou perdendo. Então pelo menos me deixa fazer valer a pena.
Fiquei em silêncio.
Ela esperou. Por uma resposta. Um gesto. Qualquer coisa.
Mas eu dei as costas.
— Até mais. — disse, fria.
E me afastei.
Mas dessa vez…
Não consegui esquecer o som da voz dela.
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Atualizado até capítulo 162
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