...Mei...
Eu avisei o Jinu.
Mais de uma vez. Mais de cem, se contarmos os olhares silenciosos que trocamos desde que pisei nessa escola.
Mas ele insiste.
Como se fosse difícil entender: não quero ser associada a eles. Não aqui. Não nesse lugar onde tudo gira em torno de status, poder e aparência. Onde cada sobrenome carrega um peso. Onde cada gesto pode virar boato.
Me esconder deles é minha única chance de passar despercebida.
Só que isso fica mais difícil a cada dia.
Primeiro Charlotte, me encarando como se eu fosse um mistério que ela precisa resolver.
Agora Jinu, me abordando no meio do intervalo como se nossa conexão fosse invisível aos olhos dos outros.
Eles não entendem o quanto isso me irrita.
Sim, eu sou a irmã de Jinu e Jade.
Sim, eu tenho cinco poderes.
E não, eu não quero ser mais uma peça no tabuleiro dessa escola.
Quero ficar no meu canto. Quero ler. Quero entender a lógica da economia mundial antes de dominar qualquer outro sistema. Não por ambição. Mas por controle. Porque quando o mundo quebra — e ele sempre quebra — quem entende as regras sobrevive.
Enquanto todos comem, socializam ou fingem gostar uns dos outros, eu observo.
E nos últimos dias, meus olhos voltaram para Charlotte mais do que eu gostaria.
Ela tem presença. Daquelas que você sente antes mesmo de ver. Anda como se controlasse o chão, fala como se cada palavra fosse medida com precisão cirúrgica. E o olhar dela... me incomoda.
Não por medo.
Mas porque ela me reconhece.
Ela vê que eu sou diferente.
Não como os outros veem. Ela enxerga além.
E isso... é perigoso.
Se tem uma coisa que aprendi com minha avó, é que ninguém deve saber de tudo.
Informação é poder. E se você revela tudo sobre si mesma, vira vulnerável.
Charlotte parece estar me cercando lentamente.
Como se quisesse invadir sem arrombar.
Como se estivesse testando os limites da minha paciência.
Mas se ela cruzar a linha…
Não vai gostar do que vai encontrar.
Que bom que essa escola tem dormitórios.
Significa que eu não preciso lidar com barulho de cidade, trânsito, gente demais… tudo isso me dá dor de cabeça. O prédio dos dormitórios fica mais afastado, cercado por árvores altas e muros antigos de pedra. Um refúgio perfeito. Isolado o suficiente pra me manter longe das distrações.
Ali, ninguém bate na porta.
Ninguém pergunta nada.
Ninguém entra no meu quarto.
E eu gosto assim.
Hoje é minha primeira aula prática de uso de poderes.
Excelente.
Mais um teste.
Mas diferente das matérias teóricas, aqui eu teria que tomar decisões mais cuidadosas. Não podia me permitir erros.
Não quando estou escondendo quatro partes de mim.
Cinco poderes.
Invisibilidade, telecinese, fogo, eletricidade…
Mas escolhi usar gelo.
Frio, controlável, limpo.
Gelo não chama tanta atenção como uma parede de fogo ou um relâmpago rasgando o céu.
É o poder mais silencioso que tenho.
E o que exige menos esforço pra fingir que é meu único dom.
No caminho para o campo de treinamento, vesti o uniforme de prática — uma versão mais leve do escolar, ajustado para movimentos de combate. Amplo o bastante pra esconder meus movimentos, mas justo o bastante pra não atrapalhar.
Entrei no campo.
Era gigante. Um espaço aberto, dividido em setores com painéis de resistência, bonecos de treino, áreas de combate e torres de observação para os instrutores. As arquibancadas dos outros alunos ficavam num nível acima, como se estivéssemos numa arena.
Me posicionei perto do canto, como sempre. Sozinha.
O professor entrou — um homem alto, expressão rígida, braços cruzados, um veterano de guerras que provavelmente acha que pode ensinar adolescentes mimados a sobreviver.
Ele ativou um painel flutuante ao lado e começou a chamar nomes e poderes.
“Jinu Kurisu — manipulação de fogo.”
“Jade Kurisu — manipulação de água.”
“Charlotte Taylor — poder divino.”
“Mei Kurisu — manipulação de gelo.”
Alguns alunos se viraram quando ouviram meu sobrenome. Eu mantive os olhos fixos no chão. Era inevitável. Mas ainda não era o suficiente para fazerem a conexão.
Ainda era apenas... uma coincidência.
O professor então estalou os dedos e falou:
— A aula de hoje será voltada ao combate corpo a corpo com apoio de seus poderes. Vocês terão liberdade para escolher seus pares. Escolham com inteligência. Não pensem só em vencer, pensem em aprender.
As duplas começaram a se formar.
Gente se agrupando entre risos, alguns hesitantes, outros se agarrando a quem já conheciam.
Eu não me movi.
Não vou pedir pra ninguém ser meu par.
Se ninguém me escolher, melhor.
Luto com o instrutor, com uma máquina, com o chão se for necessário.
Mas então, passos.
Firmes. Deliberados.
Olhei de lado — devagar.
E lá estava ela.
Charlotte Taylor.
Os olhos azuis fixos em mim, como se já soubesse o que eu ia dizer. Como se esperasse que eu recusasse. Como se estivesse desafiando o meu silêncio.
— Posso ser sua dupla? — ela perguntou.
Não havia sarcasmo na voz. Nem doçura.
Só... certeza.
Eu a encarei por dois segundos.
E então respondi, fria:
— Se você aguentar.
O sorriso que ela deu em seguida foi quase imperceptível.
Mas eu vi.
Charlotte ficou de frente pra mim, os braços abaixados, postura firme. O campo de treinamento agora parecia menor. Não pelos limites físicos — mas pela forma como tudo ao redor sumia.
Ela só me via.
E eu só via ela.
O resto dos alunos formaram um círculo ao redor de nós. Curiosos. Ansiosos. Alguns sorrindo, esperando ver a presidente do conselho derrotar a garota estranha e calada da sala.
Coitados.
O professor ergueu a mão.
— Podem começar quando quiserem.
Não houve contagem. Não houve saudação.
Charlotte foi a primeira a se mover.
Rápida.
Rápida demais.
Ela avançou como uma flecha, os pés quase não tocando o chão. Eu desviei no último segundo com um passo lateral, deixando que ela passasse por mim. O vento da velocidade dela levantou parte do meu cabelo, mas não tocou meu corpo.
Fria.
Controlada.
Ela se virou com um giro elegante e sorriu.
— Refletos bons.
— Sorte — respondi.
Ela veio de novo, dessa vez com um golpe direto no estômago. Eu bloqueei com o antebraço, e quando ela tentou agarrar minha perna, deslizei para trás e joguei uma camada fina de gelo sob os pés dela — quase invisível, mas escorregadia o bastante pra quebrar o equilíbrio.
Charlotte caiu de joelhos, mas apoiou-se com uma das mãos e sorriu outra vez.
— Inteligente.
— Eu sei — falei, e estendi a mão.
Um espinho de gelo emergiu do solo, quase atingindo o ombro dela — ela desviou por milímetros, rolando para o lado. O público prendeu a respiração. O professor apenas observava.
Mas... eu estava testando.
Ela também.
Charlotte então ativou algo.
Por um segundo, o ar ao redor dela pareceu curvar. Como se uma pressão invisível tivesse caído sobre o campo. Não havia elemento. Não havia cor. Era só... poder puro.
Poder divino.
Ela avançou com um soco, e dessa vez, eu precisei deslizar para trás e levantar uma parede de gelo entre nós — o impacto rachou a barreira, espalhando estilhaços pelo campo. A luz do sol refletiu nos fragmentos congelados como se fossem cristal.
Eu respirei fundo.
Meu coração estava calmo.
Mas minhas mãos… formigavam.
Foi por pouco.
Se eu tivesse usado qualquer outro poder, ela teria percebido.
Charlotte limpou o suor da testa e me olhou com aquele olhar curioso, quase faminto.
— Seu controle é impressionante — disse.
— E você esconde algo — completei.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Isso não é óbvio?
Ficamos ali, frente a frente.
Ninguém se aproximava.
Ninguém falava.
Estávamos duelando… sem declarar guerra.
Eu poderia vencê-la agora. Com telecinese, com eletricidade, com fogo. Poderia encerrar tudo em um piscar de olhos.
Mas não é isso que eu quero.
O jogo... ainda não começou.
O combate cessou num instante silencioso.
Charlotte manteve a postura de ataque, mas não avançou.
E eu… permaneci imóvel, com as mãos relaxadas, como se nada tivesse acontecido.
Por dentro, minha mente girava. Avaliava. Calculava.
Mas por fora… sempre o mesmo rosto.
Indiferente. Frio. Vazio.
O professor caminhou até nós com passos pesados. Todos ao redor se calaram.
Ele nos olhou de cima a baixo, cruzando os braços como quem avalia diamantes brutos.
— Excelente.
A palavra ecoou pelo campo.
Ele apontou para Charlotte:
— Você já é conhecida. Precisa parar de segurar tanto seu poder. Nem todo oponente vai brincar com você.
Charlotte sorriu, um pouco — como se aquilo não fosse novidade.
Depois ele virou pra mim.
Eu quis que ele não dissesse nada.
Quis que passasse reto.
Que me ignorasse como os outros professores faziam.
Mas não.
Ele apontou diretamente pra mim, a voz mais alta:
— E você, Mei Kurisu…
Silêncio.
— Seu controle é nível tático. Precisão, tempo de reação, uso do gelo com mínima exposição de energia. Eu diria que… ou você foi treinada por um veterano, ou tem mais de um poder e tá escondendo os outros.
A frase caiu como uma lâmina sobre o campo.
Alguns riram, achando que era piada.
Outros… olharam demais.
Jinu desviou o olhar.
Charlotte… me observava com ainda mais atenção.
Meus dedos gelaram. Mas não por causa do poder.
— Eu só treino — respondi, fria, sem hesitar.
— Hm. — O professor estreitou os olhos, como se testasse minha mentira.
— Seja como for… bom trabalho. Você acaba de ser incluída na próxima seleção para o time de elite.
Merda.
Era isso que eu queria evitar.
Aplausos surgiram do nada. Pequenos. Discretos. Mas estavam lá.
Gente que antes me ignorava agora sussurrava meu nome.
Meu nome.
Não o da "irmã de Jinu".
Não o da "garota estranha".
Meu.
Mas esse não era o tipo de reconhecimento que eu queria.
Eu dei um passo pra trás.
Depois mais um.
— Onde você vai? — Charlotte perguntou, se aproximando.
— Longe do barulho — respondi, sem sequer encará-la.
E antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, virei as costas e fui embora.
Meus passos eram firmes.
Mas por dentro…
Eu sentia.
A atenção.
O peso.
A aproximação de tudo o que eu passei anos evitando.
E pela primeira vez desde que cheguei naquela escola…
Eu senti que estava em perigo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 162
Comments