...Mei...
O som das rodas da mala deslizando pelo chão impecável da escola me irritava. Alto demais. Qualquer coisa que chamasse atenção era um incômodo. Eu mantinha os olhos fixos à frente, ignorando os olhares que sentia nas costas — olhares curiosos, olhares julgadores. Olhares que queriam me colocar em alguma categoria. “Estrangeira”, provavelmente. “Japonesa”, “fria”, “bonita”, “nova”. Mas nenhuma dessas palavras me importava.
O colégio era gigantesco. Luxuoso demais. Tinha mais cara de castelo do que de escola, com paredes de mármore branco e vitrais coloridos iluminando o saguão principal como se fosse uma igreja. Claro. A elite inglesa precisava se sentir superior até estudando.
Minha avó andava alguns passos atrás de mim, sorridente como sempre, tentando acompanhar o meu ritmo sem demonstrar esforço. Ela sempre fazia isso. Sorria mesmo quando estava cansada. Eu não. Eu nunca finjo nada. Meus olhos pretos varriam o local enquanto eu mapeava mentalmente cada saída, cada corredor, cada câmera de segurança.
Havia três.
Sim, eu notei.
Quando finalmente paramos na secretaria, a recepcionista me lançou aquele sorriso automático, o tipo que me dá vontade de desaparecer.
“Você deve ser Mei Kurisu! Seja muito bem-vinda à nossa escola. Você veio do Japão, certo?”
Assenti, curta e seca. Ela pareceu hesitar por um segundo, mas logo continuou com aquele entusiasmo forçado.
“Você foi colocada na Turma A. Eles são os melhores entre os melhores! E... você vai gostar da sua nova classe. Temos um ambiente muito acolhedor.”
Mentira. Nada acolhedor sobre um lugar onde todo mundo é avaliado desde o primeiro segundo. Poder, aparência, influência. Aqui, tudo é uma competição. E eu não vim para competir.
Recebi meu horário e meu crachá de identificação. Evitei olhar para ele. Detestava ser rotulada.
Ao sairmos da secretaria, minha avó se virou para mim com aquele olhar gentil.
“Lembre-se do que conversamos, Mei. Apenas... seja você mesma.”
“Eu sempre sou, obaasan,” respondi, mas sem emoção.
Ela apenas sorriu, como se entendesse que essa era a melhor versão que eu podia oferecer ao mundo.
Caminhei sozinha até a sala da Turma A. Nenhuma pressa. Apenas passos firmes e calculados. A mochila pendia em um ombro só, e o cabelo preto, liso e impecável, balançava levemente conforme eu andava. Assim que parei diante da porta da sala, ouvi as vozes do lado de dentro.
Entre elas... uma voz familiar.
Jinu.
Eu a reconheceria até no meio do caos. Meu irmão mais velho, o prodígio do fogo, o queridinho da escola. Alto, bonito, carismático. Jade devia estar ali também. Os dois sempre andavam juntos, como se fossem um espelho um do outro. Mesmo assim, eu já tinha decidido.
Aqui, eu sou ninguém.
A porta se abriu sozinha. Uma garota loira, com olhos claros e expressão elegante, me encarava como se já soubesse tudo sobre mim. Usava o uniforme perfeitamente ajustado, o cabelo preso num coque impecável. Irritantemente perfeita.
“Você deve ser a nova aluna. Mei Kurisu, certo?”
Assenti, e dessa vez não disse nada.
“Sou Charlotte Taylor. Presidente da classe. Bem-vinda.”
Ela não estendeu a mão. Apenas me deu um leve aceno de cabeça. Como uma rainha cumprimentando uma desconhecida.
Meus olhos encontraram os dela por dois segundos. Foram suficientes para perceber algo: ela não era como os outros. Havia poder ali. Um tipo de poder... diferente. E ela sabia disso.
Interessante.
Meus irmãos me olharam do outro lado da sala, mas não disseram uma palavra. Como combinado. Eles entenderam. Aqui, eu era só uma estudante qualquer.
Mas os olhos de Charlotte continuavam sobre mim. Como se tentasse decifrar o que havia por trás da minha expressão vazia.
Boa sorte com isso.
Eu desviei o olhar de Charlotte sem dizer nada. Não fiz questão de retribuir o gesto, nem de fingir interesse. Ela podia ser a presidente da classe, a mais forte, a mais popular — isso não significava nada pra mim. Poder de verdade não se exibe. Ele se esconde, observa, espera... e quando precisa, destrói.
Caminhei entre as fileiras de carteiras como se eu já conhecesse o lugar. Escolhi um lugar no fundo, perto da janela. Precisava da visão externa. A luz do sol atravessava o vidro e tocava meu rosto, quente demais para alguém que preferia o frio. Mas não me importei.
Puxei a cadeira sem barulho, sentei, coloquei a mochila no chão e cruzei os braços. Silêncio.
Alguns sussurros surgiram na sala, provavelmente sobre mim. Perguntas óbvias: "Quem é ela?" — "Por que não falou com a Charlotte?" — "Ela é japonesa?" — "Bonita, mas estranha."
E então, a porta se abriu novamente. A professora entrou com passos firmes, cabelo preso num coque apertado e um jaleco leve sobre o vestido escuro. Ela não parecia do tipo que aceitava conversa paralela.
"Turma A, em silêncio."
A voz dela cortou o ambiente com precisão.
"Temos uma nova aluna."
Ela se virou para mim, que continuei sentada no meu canto. Quase invisível — se eu quisesse, poderia de fato estar invisível. Mas ainda não era hora.
"Você. Levante-se e se apresente à classe."
Me levantei devagar. Senti todos os olhos voltando para mim. Meus irmãos incluídos. Mas fingi que eles eram estranhos como qualquer outro.
"Mei Kurisu."
Minha voz saiu baixa, mas firme.
"Vim do Japão."
"Mais alguma coisa que queira dizer, senhorita Kurisu?"
Neguei com a cabeça. A professora arqueou uma sobrancelha, mas não insistiu.
"Muito bem. Pode se sentar."
Voltei ao meu lugar sem pressa. Alguns alunos cochicharam. Senti a tensão no ar — aquela tensão que surge quando algo novo entra em um ecossistema fechado.
Mas eu não estava ali pra me enturmar.
Nem pra chamar atenção.
E muito menos pra fazer amigos.
Charlotte me lançou um olhar lateral. Curioso, talvez até provocativo.
Mas não reagi.
Poder... reconhece poder.
Ela podia ser a estrela daquele lugar.
Mas eu era a sombra.
As primeiras aulas passaram como eu esperava: longas, entediantes, e previsíveis. Matemática avançada, química, literatura inglesa... todos os professores com aquele mesmo tom condescendente, como se estivessem falando com gênios adormecidos. A maioria dos alunos tentava parecer interessada. Eu só anotava o essencial, com a caligrafia perfeita e limpa que aprendi com minha avó.
Charlotte respondeu todas as perguntas que a professora fez — como era de se esperar da presidente da classe. Ninguém além dela ousava competir por atenção. Era como se o centro da escola girasse em torno daquela garota loira, e todo o resto orbitasse em silêncio.
Eu? Eu só observava.
Quando o sinal do intervalo tocou, suspirei aliviada. Peguei meu livro sobre economia — um manual sobre estratégias de colapso financeiro global — e me recostei na cadeira. Nada de ir à cantina, nada de se misturar. O silêncio era meu alimento. A lógica, meu abrigo.
Mas é claro... paz demais nunca dura.
Três garotas se aproximaram da minha mesa. Roupas alinhadas, maquiagem leve, mas calculada. Ricas, mimadas, e claramente fãs de Charlotte. O trio clássico de garotas que precisava estar sempre por dentro de tudo. Uma delas se apoiou na borda da minha carteira com o cotovelo, me encarando como se tivesse o direito de entrar na minha cabeça.
"Oi! Você é mesmo do Japão, né?"
Não respondi de imediato. Continuei lendo por mais alguns segundos, até marcar a página e fechar o livro com um estalo seco. Então levantei os olhos e encarei as três.
"Sim."
"Uau, que legal! Deve ser tão diferente estudar aqui. Você morava em Tóquio? Acha o uniforme estranho? E—"
Interrompi com uma voz cortante e baixa, clara como gelo:
"Por que minha vida importa pra vocês?"
A garota parou, surpresa. Eu continuei, sem mudar o tom:
"Eu vim do Japão. Sim. E não, não quero conversar sobre isso. Me deixem em paz."
Um silêncio pesado caiu. Elas pareciam não saber se se sentiam ofendidas ou humilhadas. Eu voltei os olhos para o livro e abri na página marcada, como se nada tivesse acontecido.
"...estranha", murmurou uma delas, enquanto se afastavam.
Perfeito. Isso era exatamente o que eu queria.
O problema é que, mesmo quando você se isola, o mundo parece insistir em empurrar gente até você. Como pragas. Como desafios. Como... Charlotte Taylor.
Quando levantei os olhos pela segunda vez, ela estava me observando do outro lado da sala.
De novo.
Mas ainda assim... não disse nada.
Boa garota.
Os sussurros ainda ecoavam no fundo da sala, mas eu já havia silenciado o mundo novamente com a simples companhia do meu livro. Me esconder no fundo da sala não era só uma escolha — era um aviso: não se aproximem.
Mas, mesmo enquanto eu lia, minha mente viajava. Era inevitável. Toda vez que alguém tentava saber mais sobre mim, eu lembrava da mesma pergunta:
Por que eu moro com minha avó no Japão, e não com meus pais aqui na Inglaterra?
A resposta era simples. E ao mesmo tempo, impossível de explicar pra alguém comum.
Porque eu não sou comum.
Desde pequena, eu era… peculiar. Enquanto outras crianças se machucavam correndo ou brincavam com bonecas, eu estava ocupada… desaparecendo.
Literalmente.
Me lembro da primeira vez que fiquei invisível. Tinha uns seis anos. Estava assustada, com medo de um trovão. Fechei os olhos... e deixei de existir por alguns segundos. Quando abri os olhos novamente, minha mãe gritava, e meu pai não sabia o que fazer. Me procuraram por horas até que eu “reapareci” no meio da sala, como se tivesse voltado de outro mundo.
Mas aquilo foi só o começo.
Logo depois, vieram os impulsos de fogo. Depois o gelo. Um dia fiz um brinquedo flutuar com a força do pensamento, e numa outra manhã, meu quarto estava cheio de faíscas — eletricidade viva. Meus pais, mesmo com todos os recursos e dinheiro, não sabiam lidar com uma filha como eu.
Minha avó foi a única que entendeu.
Ela não teve medo. Não tentou me prender. Nem me estudar.
Ela me levou embora.
Disse que o mundo ainda não estava pronto pra mim. E talvez não estivesse mesmo.
Me treinou por anos nas montanhas silenciosas do Japão, longe da sociedade, longe da escola, longe de tudo. Me ensinou a controlar. A pensar. A nunca agir por impulso. Me ensinou a esconder.
Minha avó costumava ser uma lenda. Dizem que no passado, ela foi uma heroína com habilidades únicas — poderosa, respeitada, temida. Mas hoje ela só queria paz.
E eu também. Só que…
Eu não quero ser como ela.
Não quero ser heroína. Nem vilã.
Quero seguir meu próprio caminho. Mesmo que ninguém entenda. Mesmo que eu ande sozinha.
Porque quanto mais o mundo descobre sobre você, mais ele tenta controlar você.
E eu não vou ser controlada.
---
O sinal tocou, me puxando de volta ao presente.
O intervalo terminou. As pessoas começaram a se mover. Vozes. Passos. Risadas vazias. Eu permaneci sentada até que todos saíssem. Só então, lentamente, me levantei com meu livro na mão.
Na porta da sala, parada, me esperando… estava Charlotte.
Outra vez com aquele olhar — inquisitivo, calmo, como se estivesse lendo todas as camadas da minha mente.
Mas antes que ela dissesse qualquer coisa, eu a encarei e falei, seca:
“Se você está aqui pra perguntar de onde eu vim, ou tentar me encaixar em algum rótulo da sua cabeça… pode parar por aqui.”
Ela arqueou uma sobrancelha. E pela primeira vez, sorriu de canto.
“Não. Eu só queria saber… por que você está se escondendo.”
Eu não respondi. Apenas a encarei por dois segundos — longos, intensos — e então passei direto por ela, sem dizer uma palavra.
Ela que pensasse o que quisesse.
...Charlotte ...
Desde o momento em que ela entrou na sala... algo quebrou dentro da ordem perfeita que eu havia construído.
Ela. Mei Kurisu.
Alto controle emocional. Passos calculados. Nenhum traço de hesitação no olhar. Eu vejo pessoas todos os dias — dezenas, centenas. Alunos tentando provar algo, se exibir, se esconder. E normalmente, em cinco segundos, eu sei exatamente quem são.
Com ela, não.
Ela entrou com um silêncio tão pesado que a sala pareceu encolher. Olhos pretos como se não refletissem nada. E ao mesmo tempo... eu senti algo. Um impulso.
Instinto.
Poder.
Talvez até mais do que o meu.
E o mais estranho… foi que ela não fez nada.
Ela apenas ignorou meu nome, minha posição, meu status. Eu, Charlotte Taylor, a mais forte da escola, a presidente do conselho, filha do dono da academia… fui tratada como qualquer outra figurante. Ou pior — como nada.
Fiquei olhando ela se sentar no fundo, sozinha, como se aquela sala não tivesse importância alguma. O jeito que ela posicionou a mochila, que abriu o livro, que simplesmente ignorou o mundo. Foi fascinante.
Durante a aula, eu continuei observando de relance. Suas expressões não mudavam. O olhar não vacilava. Ela não tentava impressionar ninguém. Mas era justamente isso que a fazia chamar atenção.
E então, no intervalo, eu vi as garotas se aproximarem. Claro que iriam. Curiosas. Fofoqueiras. Sempre querendo se aproximar de tudo que é novo.
E ela?
Ela cortou as três com uma frase.
> “Por que minha vida importa pra vocês? Me deixem em paz.”
Foi seco. Frio. Cruel até.
Eu deveria ter achado grosseiro.
Mas em vez disso… eu sorri.
Me levantei, ainda no intervalo, e fui até a porta da sala. Parei ali. Só observei. Queria ver se ela levantava. Se me notava. Se dizia algo.
E ela notou.
Quando nossos olhos se encontraram, senti o mesmo que senti quando era criança e enfrentei um tornado com as próprias mãos pela primeira vez. Perigo. Caos. Desconhecido. Mas também… um tipo estranho de admiração.
Ela falou primeiro.
> “Se você está aqui pra perguntar de onde eu vim, ou tentar me encaixar em algum rótulo da sua cabeça… pode parar por aqui.”
Eu quase ri. Não por desprezo. Por surpresa.
Ela não tem ideia de quem eu sou.
Ou pior — ela sabe.
E não se importa.
Quando ela passou por mim, senti um arrepio. Não de medo.
De curiosidade.
Mei Kurisu era um erro no meu sistema.
E erros… eu não ignoro.
Meu nome é Charlotte Taylor. E ao contrário do que todos acham, eu não nasci forte.
Fui moldada.
Criada como uma arma.
Projetada para ser perfeita.
Nasci no berço da elite inglesa, filha única de um dos homens mais poderosos da Europa — o diretor desta escola e CEO de metade das corporações tecnológicas do continente. Meu pai sempre fez questão de lembrar que não podia ter filhos fracos. Ele dizia que, no nosso mundo, ou você domina... ou é esmagado.
Minha mãe morreu quando eu era pequena. Nunca soube direito do quê. Tudo foi silenciado, abafado pela influência da família. Tudo o que me restou dela foi um colar quebrado que guardo até hoje, e uma frase que ouvi uma vez, quando eu ainda nem entendia o que significava:
> “Você não precisa ser como eles.”
Mas eu fui.
Porque não tive escolha.
Aos sete anos, meu poder despertou. Não foi bonito, nem mágico. Foi destrutivo.
Toda a ala leste da mansão explodiu numa onda de luz branca. O jardim virou cinzas. Metade da ala de segurança precisou de semanas de recuperação. Meu pai assistiu à cena em silêncio... e então, sorriu.
Era isso que ele esperava. Um poder “divino”. O dom que nenhuma outra linhagem Taylor teve antes. E a partir daquele dia, minha vida virou um treinamento constante.
Controle absoluto.
Emoção mínima.
Excelência obrigatória.
Nunca tive amigos. Tive aliados.
Nunca tive descanso. Tive resultados.
Entrei na escola com doze anos e assumi a presidência do conselho aos catorze.Agora com dezoito anos.Desde então, ninguém ousa me questionar. Nem os professores. Nem os filhos dos ministros. Nem os mimados herdeiros que se acham especiais por controlar água, vento ou ferro.
Eu sou a base dessa escola.
Sou o topo.
E é por isso que Mei Kurisu... me irrita.
Ela não me desafia.
Ela não me reconhece.
Como se o meu nome, minha posição e meu poder… fossem irrelevantes.
Eu estudei todos aqui. Cada novo aluno, cada transferência, cada família envolvida.
Mas Mei não aparece em lugar nenhum.
Zero registros na rede do colégio antes da matrícula.
Zero antecedentes de atividades extracurriculares.
Zero envolvimento político, social, ou familiar.
É como se ela tivesse surgido do nada.
Mas então… algo me chamou atenção.
Ontem à noite, por impulso, abri os arquivos privados da escola — os que nem mesmo o conselho estudantil pode acessar. Usei a autorização do meu pai, escondida, como sempre.
E lá estava.
Kurisu Mei.
Nome verdadeiro. Nacionalidade japonesa.
Parentesco... Jade Kurisu e Jinu Kurisu.
Meus olhos se arregalaram.
Eles estudam aqui há dois anos. São praticamente celebridades internas.
E mesmo assim... ela os ignorou.
Ela escolheu não dizer que é irmã deles.
Ela escolheu se esconder.
E agora, eu quero saber o porquê.
No dia seguinte, vesti o uniforme como sempre: perfeitamente alinhado, gravata justa, blazer sem uma dobra fora do lugar. O emblema da presidência do conselho sobre meu peito cintilava sob a luz. A maioria usava aquilo com orgulho. Eu usava como uma lembrança constante: poder exige controle.
Mas algo estava diferente naquela manhã.
Minha mente, mesmo entre cálculos de relatórios, discussões estratégicas do conselho e reuniões de evento, não saía dela.
Mei Kurisu.
Ela ainda não havia dito mais do que duas frases desde que chegou. Mas era como se falasse o tempo todo com o silêncio. E eu... nunca soube lidar com silêncio assim.
Entrei na escola com o habitual passo firme. Alunos se afastaram quando me viram. Alguns acenaram com um sorriso forçado. Outros apenas abaixaram os olhos. Eu gostava daquilo. Da ordem. Do respeito. Do reconhecimento.
Mas nada disso parecia importar quando olhei para o fundo do pátio e a vi sentada sozinha — de novo.
Com o mesmo livro. A mesma expressão.
Como se o mundo inteiro fosse pequeno demais pra merecer atenção.
As meninas do conselho estavam ao meu lado. Sabrina, Ava e Millie — três das mais influentes alunas do campus. Bonitas, inteligentes, e... rasas. Eu as tolerava porque me serviam.
“Elas estavam falando da nova garota ontem na minha aula de feitiologia,” disse Millie, com um tom afetado. “Aquela... Mei. Parece que ela foi extremamente grossa com umas garotas no intervalo. Quase fez uma delas chorar.”
“Dizem que ela é metida,” completou Ava, jogando o cabelo pro lado. “E que ignora todo mundo porque se acha superior.”
“Ou talvez ela só seja antissocial e estranha mesmo,” Sabrina riu. “Você viu o jeito que ela olha? Parece que quer matar alguém.”
Elas riram. Eu não.
Continuei olhando para Mei ao longe. O jeito como ela virava a página devagar. Como ela sequer parecia ouvir o barulho à sua volta. Como se tivesse criado uma bolha onde ninguém podia entrar.
Não era arrogância. Não era presunção.
Era... defesa.
“Charlotte?” Ava cutucou. “Você tá ouvindo?”
“Estou,” respondi, seca.
“Então você também acha que ela é estranha, né?”
Não respondi.
Continuei observando Mei enquanto as outras falavam dela como se fosse uma mancha fora de lugar num vestido caro. Como se ela fosse algo a ser eliminado.
Mas a verdade era outra.
Elas têm medo.
Mesmo sem saber por quê, elas sentem que Mei carrega algo que ninguém ali entende. Algo que pode destruir tudo o que elas acham que controlam.
E eu?
Eu também sinto.
A diferença é que eu não fujo disso. Eu quero entender.
No intervalo seguinte, eu não fui para o salão do conselho como de costume. Também não segui as garotas até a parte VIP da cafeteria.
Fiquei no corredor do segundo andar, no ponto exato de onde dava pra ver o pátio central. Mei estava no mesmo banco de antes. A postura reta. O livro apoiado nas pernas. A expressão... inabalável.
Era quase irritante.
Eu não estava acostumada a não ser notada. Não mesmo. A maioria das pessoas fazia questão de me agradar, me bajular, ou pelo menos me temer.
Mas ela? Ela simplesmente... não reagia.
Eu podia sentir que aquilo me afetava mais do que deveria.
“Você vai ficar observando a esquisita todos os intervalos agora?”
A voz de Millie soou atrás de mim. Irritante como sempre.
“Isso tá virando obsessão, Charlotte.”
Eu a encarei por um segundo — só um segundo. Ela engoliu em seco e saiu sem dizer mais nada.
Silêncio. Paz de novo.
Voltei meu olhar para baixo, onde Mei ainda lia seu livro de economia como se fosse a única coisa que existia no planeta. O mais engraçado era que, apesar do desprezo aparente por qualquer interação humana, ela parecia estar sempre... alerta.
Como se tudo fosse parte de um plano maior.
E então, como se o universo estivesse testando os limites dela... alguém se aproximou do banco.
Um garoto alto, bonito, expressão relaxada e confiante. Famoso. Desejado.
Jinu.
Eu o reconheceria até de longe. O controle de fogo mais refinado da escola. Um dos queridinhos do público, sempre cercado de atenção. Mas ali... ele parecia hesitar. Como se tivesse esquecido como se aproximar de alguém.
Mei nem levantou o olhar.
Jinu coçou a nuca, claramente desconfortável.
“Você... tá bem?” — ele perguntou, como se as palavras fossem proibidas.
“Saia daqui,” ela respondeu, fria. “Agora.”
A resposta foi tão seca, tão cortante, que ele parou por um segundo. Mas não foi surpresa. Foi culpa. Foi... algo mais.
“Você podia pelo menos fingir que não odeia a gente,” ele sussurrou.
Mas Mei apenas virou a página do livro. Como se ele fosse o vento. Invisível.
“Vocês aceitaram o jogo. Eu não. Agora suma antes que alguém perceba.”
Perceba o quê?
Que ela era irmã dele?
Eu senti minha mente disparar. Eles eram mesmo irmãos — e ela estava escondendo isso com unhas e dentes.
Mas por quê?
Jinu recuou, derrotado, voltando para a parte movimentada do pátio com a cabeça baixa.
Mei ficou. Inabalável.
Como sempre.
E eu…
Eu desci as escadas.
Sem dizer nada.
Ela ia me ver de perto, mais cedo ou mais tarde.
E agora, eu queria que fosse logo.
...Mei...
Eu avisei o Jinu.
Mais de uma vez. Mais de cem, se contarmos os olhares silenciosos que trocamos desde que pisei nessa escola.
Mas ele insiste.
Como se fosse difícil entender: não quero ser associada a eles. Não aqui. Não nesse lugar onde tudo gira em torno de status, poder e aparência. Onde cada sobrenome carrega um peso. Onde cada gesto pode virar boato.
Me esconder deles é minha única chance de passar despercebida.
Só que isso fica mais difícil a cada dia.
Primeiro Charlotte, me encarando como se eu fosse um mistério que ela precisa resolver.
Agora Jinu, me abordando no meio do intervalo como se nossa conexão fosse invisível aos olhos dos outros.
Eles não entendem o quanto isso me irrita.
Sim, eu sou a irmã de Jinu e Jade.
Sim, eu tenho cinco poderes.
E não, eu não quero ser mais uma peça no tabuleiro dessa escola.
Quero ficar no meu canto. Quero ler. Quero entender a lógica da economia mundial antes de dominar qualquer outro sistema. Não por ambição. Mas por controle. Porque quando o mundo quebra — e ele sempre quebra — quem entende as regras sobrevive.
Enquanto todos comem, socializam ou fingem gostar uns dos outros, eu observo.
E nos últimos dias, meus olhos voltaram para Charlotte mais do que eu gostaria.
Ela tem presença. Daquelas que você sente antes mesmo de ver. Anda como se controlasse o chão, fala como se cada palavra fosse medida com precisão cirúrgica. E o olhar dela... me incomoda.
Não por medo.
Mas porque ela me reconhece.
Ela vê que eu sou diferente.
Não como os outros veem. Ela enxerga além.
E isso... é perigoso.
Se tem uma coisa que aprendi com minha avó, é que ninguém deve saber de tudo.
Informação é poder. E se você revela tudo sobre si mesma, vira vulnerável.
Charlotte parece estar me cercando lentamente.
Como se quisesse invadir sem arrombar.
Como se estivesse testando os limites da minha paciência.
Mas se ela cruzar a linha…
Não vai gostar do que vai encontrar.
Que bom que essa escola tem dormitórios.
Significa que eu não preciso lidar com barulho de cidade, trânsito, gente demais… tudo isso me dá dor de cabeça. O prédio dos dormitórios fica mais afastado, cercado por árvores altas e muros antigos de pedra. Um refúgio perfeito. Isolado o suficiente pra me manter longe das distrações.
Ali, ninguém bate na porta.
Ninguém pergunta nada.
Ninguém entra no meu quarto.
E eu gosto assim.
Hoje é minha primeira aula prática de uso de poderes.
Excelente.
Mais um teste.
Mas diferente das matérias teóricas, aqui eu teria que tomar decisões mais cuidadosas. Não podia me permitir erros.
Não quando estou escondendo quatro partes de mim.
Cinco poderes.
Invisibilidade, telecinese, fogo, eletricidade…
Mas escolhi usar gelo.
Frio, controlável, limpo.
Gelo não chama tanta atenção como uma parede de fogo ou um relâmpago rasgando o céu.
É o poder mais silencioso que tenho.
E o que exige menos esforço pra fingir que é meu único dom.
No caminho para o campo de treinamento, vesti o uniforme de prática — uma versão mais leve do escolar, ajustado para movimentos de combate. Amplo o bastante pra esconder meus movimentos, mas justo o bastante pra não atrapalhar.
Entrei no campo.
Era gigante. Um espaço aberto, dividido em setores com painéis de resistência, bonecos de treino, áreas de combate e torres de observação para os instrutores. As arquibancadas dos outros alunos ficavam num nível acima, como se estivéssemos numa arena.
Me posicionei perto do canto, como sempre. Sozinha.
O professor entrou — um homem alto, expressão rígida, braços cruzados, um veterano de guerras que provavelmente acha que pode ensinar adolescentes mimados a sobreviver.
Ele ativou um painel flutuante ao lado e começou a chamar nomes e poderes.
“Jinu Kurisu — manipulação de fogo.”
“Jade Kurisu — manipulação de água.”
“Charlotte Taylor — poder divino.”
“Mei Kurisu — manipulação de gelo.”
Alguns alunos se viraram quando ouviram meu sobrenome. Eu mantive os olhos fixos no chão. Era inevitável. Mas ainda não era o suficiente para fazerem a conexão.
Ainda era apenas... uma coincidência.
O professor então estalou os dedos e falou:
— A aula de hoje será voltada ao combate corpo a corpo com apoio de seus poderes. Vocês terão liberdade para escolher seus pares. Escolham com inteligência. Não pensem só em vencer, pensem em aprender.
As duplas começaram a se formar.
Gente se agrupando entre risos, alguns hesitantes, outros se agarrando a quem já conheciam.
Eu não me movi.
Não vou pedir pra ninguém ser meu par.
Se ninguém me escolher, melhor.
Luto com o instrutor, com uma máquina, com o chão se for necessário.
Mas então, passos.
Firmes. Deliberados.
Olhei de lado — devagar.
E lá estava ela.
Charlotte Taylor.
Os olhos azuis fixos em mim, como se já soubesse o que eu ia dizer. Como se esperasse que eu recusasse. Como se estivesse desafiando o meu silêncio.
— Posso ser sua dupla? — ela perguntou.
Não havia sarcasmo na voz. Nem doçura.
Só... certeza.
Eu a encarei por dois segundos.
E então respondi, fria:
— Se você aguentar.
O sorriso que ela deu em seguida foi quase imperceptível.
Mas eu vi.
Charlotte ficou de frente pra mim, os braços abaixados, postura firme. O campo de treinamento agora parecia menor. Não pelos limites físicos — mas pela forma como tudo ao redor sumia.
Ela só me via.
E eu só via ela.
O resto dos alunos formaram um círculo ao redor de nós. Curiosos. Ansiosos. Alguns sorrindo, esperando ver a presidente do conselho derrotar a garota estranha e calada da sala.
Coitados.
O professor ergueu a mão.
— Podem começar quando quiserem.
Não houve contagem. Não houve saudação.
Charlotte foi a primeira a se mover.
Rápida.
Rápida demais.
Ela avançou como uma flecha, os pés quase não tocando o chão. Eu desviei no último segundo com um passo lateral, deixando que ela passasse por mim. O vento da velocidade dela levantou parte do meu cabelo, mas não tocou meu corpo.
Fria.
Controlada.
Ela se virou com um giro elegante e sorriu.
— Refletos bons.
— Sorte — respondi.
Ela veio de novo, dessa vez com um golpe direto no estômago. Eu bloqueei com o antebraço, e quando ela tentou agarrar minha perna, deslizei para trás e joguei uma camada fina de gelo sob os pés dela — quase invisível, mas escorregadia o bastante pra quebrar o equilíbrio.
Charlotte caiu de joelhos, mas apoiou-se com uma das mãos e sorriu outra vez.
— Inteligente.
— Eu sei — falei, e estendi a mão.
Um espinho de gelo emergiu do solo, quase atingindo o ombro dela — ela desviou por milímetros, rolando para o lado. O público prendeu a respiração. O professor apenas observava.
Mas... eu estava testando.
Ela também.
Charlotte então ativou algo.
Por um segundo, o ar ao redor dela pareceu curvar. Como se uma pressão invisível tivesse caído sobre o campo. Não havia elemento. Não havia cor. Era só... poder puro.
Poder divino.
Ela avançou com um soco, e dessa vez, eu precisei deslizar para trás e levantar uma parede de gelo entre nós — o impacto rachou a barreira, espalhando estilhaços pelo campo. A luz do sol refletiu nos fragmentos congelados como se fossem cristal.
Eu respirei fundo.
Meu coração estava calmo.
Mas minhas mãos… formigavam.
Foi por pouco.
Se eu tivesse usado qualquer outro poder, ela teria percebido.
Charlotte limpou o suor da testa e me olhou com aquele olhar curioso, quase faminto.
— Seu controle é impressionante — disse.
— E você esconde algo — completei.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Isso não é óbvio?
Ficamos ali, frente a frente.
Ninguém se aproximava.
Ninguém falava.
Estávamos duelando… sem declarar guerra.
Eu poderia vencê-la agora. Com telecinese, com eletricidade, com fogo. Poderia encerrar tudo em um piscar de olhos.
Mas não é isso que eu quero.
O jogo... ainda não começou.
O combate cessou num instante silencioso.
Charlotte manteve a postura de ataque, mas não avançou.
E eu… permaneci imóvel, com as mãos relaxadas, como se nada tivesse acontecido.
Por dentro, minha mente girava. Avaliava. Calculava.
Mas por fora… sempre o mesmo rosto.
Indiferente. Frio. Vazio.
O professor caminhou até nós com passos pesados. Todos ao redor se calaram.
Ele nos olhou de cima a baixo, cruzando os braços como quem avalia diamantes brutos.
— Excelente.
A palavra ecoou pelo campo.
Ele apontou para Charlotte:
— Você já é conhecida. Precisa parar de segurar tanto seu poder. Nem todo oponente vai brincar com você.
Charlotte sorriu, um pouco — como se aquilo não fosse novidade.
Depois ele virou pra mim.
Eu quis que ele não dissesse nada.
Quis que passasse reto.
Que me ignorasse como os outros professores faziam.
Mas não.
Ele apontou diretamente pra mim, a voz mais alta:
— E você, Mei Kurisu…
Silêncio.
— Seu controle é nível tático. Precisão, tempo de reação, uso do gelo com mínima exposição de energia. Eu diria que… ou você foi treinada por um veterano, ou tem mais de um poder e tá escondendo os outros.
A frase caiu como uma lâmina sobre o campo.
Alguns riram, achando que era piada.
Outros… olharam demais.
Jinu desviou o olhar.
Charlotte… me observava com ainda mais atenção.
Meus dedos gelaram. Mas não por causa do poder.
— Eu só treino — respondi, fria, sem hesitar.
— Hm. — O professor estreitou os olhos, como se testasse minha mentira.
— Seja como for… bom trabalho. Você acaba de ser incluída na próxima seleção para o time de elite.
Merda.
Era isso que eu queria evitar.
Aplausos surgiram do nada. Pequenos. Discretos. Mas estavam lá.
Gente que antes me ignorava agora sussurrava meu nome.
Meu nome.
Não o da "irmã de Jinu".
Não o da "garota estranha".
Meu.
Mas esse não era o tipo de reconhecimento que eu queria.
Eu dei um passo pra trás.
Depois mais um.
— Onde você vai? — Charlotte perguntou, se aproximando.
— Longe do barulho — respondi, sem sequer encará-la.
E antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, virei as costas e fui embora.
Meus passos eram firmes.
Mas por dentro…
Eu sentia.
A atenção.
O peso.
A aproximação de tudo o que eu passei anos evitando.
E pela primeira vez desde que cheguei naquela escola…
Eu senti que estava em perigo.
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