...Mei...
O dia amanheceu nublado.
O tipo de céu que eu gostava.
Cinza. Neutro. Sem extremos.
Como eu.
Vesti o uniforme prático de novo. Luvas pretas, cabelo preso, olhar sem expressão.
Com minha avó longe, o quarto parecia mais silencioso do que nunca — e eu gostava disso.
O silêncio é meu território.
É nele que eu penso.
É nele que eu escondo tudo.
A aula prática de hoje era diferente.
“Controle de elemento sob pressão física e mental”, dizia o título no painel ao centro do campo.
O professor de ontem estava de volta. Agora, ainda mais atento. Como se quisesse me testar.
— Hoje vamos repetir as práticas de controle — ele disse. — Só que com variáveis surpresa.
Variáveis surpresa?
Começou com os mais fracos. Obstáculos surgindo, plataformas que se moviam, alvos que mudavam de posição. Nada demais.
Até que ele chamou meu nome.
— Mei Kurisu.
De novo.
A sala ficou em silêncio.
Caminhei até o centro.
Me posicionei. Mãos firmes. Expressão neutra.
— Elemento: gelo — confirmou ele.
— Correto — respondi.
Ele ativou o cenário.
Cinco alvos metálicos surgiram ao meu redor, se movendo em círculos. O chão começou a girar levemente, desestabilizando o equilíbrio. Um timer foi ativado acima.
60 segundos.
Poderia congelar todos eles em menos de três segundos.
Mas eu precisava fazer parecer… difícil.
Criei lanças de gelo precisas, lentas. Mirei com “esforço”. Girei com o movimento da plataforma como se estivesse calculando sob pressão.
Fiz tudo parecer normal.
Até que…
O último alvo explodiu em direção a mim sem aviso.
Uma falha no sistema?
Ou um teste real?
Meus reflexos foram mais rápidos que minha lógica.
E antes que eu pudesse pensar, me defendi com um escudo de eletricidade.
Só por um segundo.
Um segundo que ninguém deveria ter visto.
Mas eu vi.
E…
Charlotte também.
Ela estava ali, ao lado do professor, observando cada detalhe como se a vida dependesse disso.
Os olhos dela se arregalaram — não de medo.
Mas de confirmação.
Cancelei o escudo no mesmo instante e ocultei o gesto com uma onda de gelo.
O professor pareceu ocupado demais com o sistema do campo para notar.
Mas Charlotte…
Charlotte me olhava como quem acabou de montar a primeira peça do quebra-cabeça.
— Boa execução, Kurisu — disse o professor. — Pode voltar.
Voltei. Rápida. Silenciosa.
Mas com o estômago travado.
Ela viu.
Ela definitivamente viu.
Assim que a aula prática terminou, eu fui a primeira a sair do campo.
Antes que Charlotte tentasse se aproximar.
Antes que alguém fizesse perguntas.
Antes que eu cometesse outro erro.
O escudo de eletricidade…
Foi rápido.
Quase imperceptível.
Mas rápido demais pro meu gosto.
Desviei atenção com uma onda de gelo logo depois. Ninguém comentou. Nem o professor, nem os alunos.
Mas Charlotte…
Ela me olhou diferente.
Ela não sabe o que viu.
Mas sentiu que tinha algo ali.
E isso já é perigoso o suficiente.
Fui direto pro vestiário. Troquei de roupa com pressa. Prendi o cabelo.
Não parei.
Não olhei pra ninguém.
Desci pela escada lateral do prédio, atravessando o corredor de pedra até o jardim dos fundos da escola. Era o único lugar onde o vento abafava os sons e o silêncio me protegia como uma armadura.
Só que…
Ela já estava lá.
Charlotte.
Sentada num banco de pedra como se me esperasse.
— Você é rápida pra fugir — ela disse, sem nem olhar pra mim.
— E você rápida pra seguir — respondi, fria.
Ela se virou, encarando meus olhos.
— Eu queria conversar.
— Não tenho tempo.
— Mentira. Você só não quer que alguém chegue perto.
Travei a mandíbula.
Ela estava certa, mas isso não dava a ela o direito de dizer.
— Por que você me defendeu ontem? — disparei, mudando o foco.
— Porque odeio gente burra se achando superior — respondeu, direta. — E… porque gosto de você.
Meu corpo enrijeceu.
— Você não me conhece.
— Mas quero conhecer.
Fiquei em silêncio.
Ela deu dois passos à frente, parando perto de mim — não invasiva, mas… determinada.
— Você tem talento. Disciplina. Frieza. Mas também tem algo a mais. Eu vi hoje.
— Viu o quê?
Ela hesitou por um segundo.
— Não sei. Mas… por um instante, parecia que você reagiu antes mesmo do perigo chegar. Como se tivesse outra coisa ali. Uma intuição afiada. Reflexos diferentes.
Ela balançou a cabeça.
— Desculpa. Talvez só esteja imaginando.
Respirei fundo.
Ela não sabe.
Mas ela sente.
Isso é pior.
A dúvida… abre portas perigosas.
— Treine comigo — ela disse de repente.
— O quê?
— Sozinhas. Amanhã, depois das aulas. Sem plateia. Sem professor. Só você e eu.
— Pra quê?
— Quero ver do que você é feita.
— E se eu não quiser?
Ela sorriu.
— Aí vou continuar te seguindo até descobrir sozinha.
Meu coração bateu mais forte. Não por medo.
Por instinto.
— Tá bom. Mas uma condição — falei, firme.
— Diga.
— O que quer que veja… fica entre nós.
Ela estendeu a mão.
— Feito.
Demorei alguns segundos.
Depois… apertei.
E naquele momento, no meio daquele jardim silencioso…
Charlotte Taylor se tornou meu risco mais próximo.
O quarto estava escuro.
Só uma fresta de luz da lua entrava pela cortina mal fechada.
Joguei a mochila na cadeira, tirei o uniforme com um movimento rápido e me joguei na cama. O lençol estava frio, como sempre. Silencioso, como tudo aqui dentro.
Era o tipo de silêncio que eu sempre busquei.
Mas hoje… estava estranho.
Fechei os olhos.
A cena se repetia como um filme na minha cabeça:
Charlotte me olhando.
Firme.
Sincera.
E eu… apertando a mão dela.
Por quê?
Por que fiz isso?
Foi impulso?
Curiosidade?
Ou só… cansaço?
Talvez…
Porque ela não teve medo.
Charlotte me olhou diferente de todos os outros.
Não como quem julga.
Mas como quem quer ver.
E eu estou tão acostumada a esconder, que quando alguém tenta enxergar… parece perigoso.
Mas também… parece real.
Revirei na cama. O travesseiro estava gelado. A cabeça, cheia.
Fechei os olhos com força, tentando afastar o peso que crescia no peito.
Mas então, como sempre acontece quando tudo silencia, ela veio.
A voz da minha avó.
> “Você é forte, Mei. Mas até os fortes precisam de alguém que olhe por eles.”
> “Eu não preciso de ninguém.”
> “Disso… eu sei que é mentira.”
Engoli seco.
Apertei os olhos.
Não vou chorar.
Não por isso.
Amanhã é só um treino.
Uma aula.
Um momento qualquer.
Não vai mudar nada.
Não pode mudar nada.
Me levantei da cama, caminhei até a estante e peguei um livro grosso de economia política. Me sentei na escrivaninha e abri na página 241.
Era isso.
Foco. Controle. Mente ocupada.
Se eu conseguir manter isso… Charlotte não vai ser problema.
Nem o que ela viu.
Nem o que ela vai tentar descobrir.
Porque amanhã…
Eu serei só gelo.
Nada mais.
O céu estava limpo.
Azul profundo. Silencioso. Quase calmo demais.
Desci pelos corredores laterais, com passos lentos, como se meu corpo soubesse exatamente onde ir… mesmo que minha mente ainda tentasse me convencer a virar e fugir.
Campo dois.
Distante dos prédios principais, cercado por árvores altas e um portão de metal enferrujado. Quase ninguém treinava ali.
Perfeito.
Charlotte já estava no centro do campo quando cheguei. Cabelos presos, expressão calma, roupas de treino ajustadas ao corpo. Mas o olhar…
O olhar era diferente.
Curioso.
Afiado.
Atento demais.
— Achei que não viria — disse ela.
— Eu nunca fujo de um acordo.
— Bom saber.
Mei Kurisu e Charlotte Taylor.
Frente a frente.
Sem plateia.
Sem instrução.
Somente instinto.
Ela deu dois passos pra trás, ficando a dez metros de mim.
— Prontas?
— Sempre.
Ela ergueu uma das mãos, sem avisar, e lançou uma rajada de luz condensada. A energia era pura — branca, quente, quase divina. Mas eu já esperava que começasse assim.
Rolei pro lado, deslizando com perfeição. Girei o punho e criei lanças de gelo, mirando não nela… mas no chão ao redor, forçando-a a recuar.
Ela sorriu.
— Vai usar só gelo de novo?
— Vai descobrir com o tempo.
Charlotte avançou com um salto, os pés tocando o chão com leveza, mas as mãos acendendo com luz vibrante. Um golpe direto veio em minha direção — eu bloqueei com um escudo de gelo espesso, que rachou sob a força dela, mas aguentou.
— Você luta como se não quisesse ferir ninguém — ela comentou, afastando-se num salto.
— Eu luto como quem pensa antes de agir.
Charlotte se moveu ao redor, circulando lentamente.
— E se eu for a pessoa que merece ser ferida?
Meus olhos se estreitaram.
Ela atacou de novo.
Dessa vez com mais agressividade — rajadas curtas, rápidas, quase dançantes. Cada movimento era como uma batida de tambor: leve, mas forte. Ela queria me testar. Me forçar a reagir. Me tirar do controle.
E quase conseguiu.
Um dos ataques veio muito próximo. Me fez girar o corpo e, num reflexo quase involuntário, minhas mãos brilharam por um milésimo de segundo com uma faísca elétrica.
Não.
Fechei os dedos. Imediatamente. Recompus a postura. Respirei.
Charlotte parou.
Ela não viu.
Mas sentiu algo.
— Você hesitou — disse ela.
— Foi o vento.
Ela deu um pequeno sorriso.
— Você é interessante, Kurisu.
— E você fala demais.
Charlotte deu um passo à frente. Não pra atacar — mas pra encarar.
— Você não é como os outros. Você não se exibe. Não se defende com palavras. Só age. Fria. Precisa.
— E isso te incomoda?
— Não. Isso me atrai.
Fiquei em silêncio.
Charlotte continuou:
— Sabe… eu achei que esse treino fosse pra descobrir seu limite.
— E não é?
— Talvez… seja pra descobrir o meu.
O campo ficou em silêncio. Só o som das folhas ao vento.
— Podemos parar por hoje — ela disse, recuando um pouco.
— Medo?
— Não. Só respeito.
Guardei o gelo dentro de mim. Apaguei qualquer traço do que podia escapar.
Charlotte passou por mim devagar, indo em direção à saída.
Antes de sair, virou o rosto por cima do ombro.
— Treine comigo de novo amanhã?
Fiquei imóvel por um momento. Depois respondi:
— No mesmo lugar.
Ela sorriu.
— Até lá, Mei Kurisu.
E foi embora.
Me deixando sozinha… no único lugar onde eu me permiti existir por completo.
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Atualizado até capítulo 162
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