Quando Te Vi Outra Vez
Néridan era uma cidade que não sabia o que era descansar. As luzes dos arranha-céus competiam com o brilho das estrelas, e as avenidas pareciam nunca dormir. Carros, pessoas apressadas, anúncios luminosos e sons de vida se misturavam como uma melodia caótica — o tipo de lugar onde histórias se perdiam com facilidade. Mas naquele início de primavera, enquanto a capital do reino de Valdora girava em seu próprio ritmo impiedoso, uma história silenciosa nascia em uma pequena rua esquecida entre os bairros mais antigos da cidade.
A Rua Vélin era diferente. Um recanto quase escondido entre duas avenidas movimentadas, onde os prédios antigos ainda guardavam varandas com vasos de plantas e cortinas que dançavam com o vento. Lá, as manhãs ainda tinham cheiro de pão fresco vindo da padaria da esquina e as tardes eram preenchidas com o som de risadas infantis, bicicletas rangendo, jogos improvisados e folhas secas voando pelo asfalto rachado.
Kaela Vauren chegava àquela rua carregando mais do que malas e caixas. Trazia nos olhos a perda que não sabia nomear, a tristeza silenciosa de quem teve o chão arrancado sem aviso. Seu pai, um diplomata com fama de justo e corajoso, havia desaparecido durante uma missão no exterior. Oficialmente, estava "em investigação". Na prática, ele havia sumido — e com ele, metade do mundo de Kaela.
Sua mãe, mesmo com a voz doce e o sorriso forçado, estava distante. Mudaram-se para Néridan com a justificativa de “um novo começo”, mas Kaela sabia que era apenas um novo lugar para fingirem que tudo estava bem.
A casa era pequena, azul-clara, com um jardim abandonado e um portão que rangia como se reclamasse da chegada de novos moradores. Enquanto os carregadores entravam e saíam, Kaela se sentou no degrau da entrada, abraçada aos joelhos, observando a rua como quem observa um território desconhecido.
Foi então que o viu.
Do outro lado da rua, um menino da sua idade, talvez um pouco mais velho, a encarava sem qualquer constrangimento. Tinha a pele morena dourada de sol, olhos escuros e intensos, e o cabelo despenteado como se tivesse acabado de sair de uma árvore. E, de fato, talvez tivesse — havia um galho preso na alça de sua mochila. Nas mãos, segurava um livro.
— Você gosta de dragões? — ele perguntou, de repente, atravessando a rua sem medo.
Kaela ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Como?
Ele apontou para a camiseta dela: um dragão vermelho envolto em chamas e símbolos rúnicos.
— É da série Reino de Brael. Essa edição é antiga. Você leu o terceiro volume?
Kaela hesitou. Estava acostumada a ser ignorada — por adultos, por colegas, por vizinhos. Ninguém nunca notava suas camisetas, muito menos fazia perguntas inteligentes sobre elas.
— Já li sim — disse, tentando parecer casual. — Três vezes.
O menino sorriu de forma despretensiosa, como se aquele detalhe tivesse confirmado tudo que precisava saber sobre ela.
— Sou Ciro Ellemar. Meu cachorro comeu meu quarto livro. Acho que ele ficou com ciúmes.
Kaela riu. Foi um riso inesperado, o primeiro desde o desaparecimento do pai. Um riso leve, quase solto, que escapou antes que ela pudesse contê-lo. E naquele instante, algo invisível aconteceu. Algo que ela não entenderia por muitos anos. Algo que começava com um sorriso e cresceria em silêncio, como raízes sob a terra.
Os meses seguintes foram os melhores que Kaela conseguira viver desde a perda. Ciro era incansável. Ele a arrastava pelas ruas do bairro em aventuras improváveis, transformando árvores em fortalezas, bueiros em passagens secretas e caixas de papelão em espaçonaves. Ele falava sem parar, tinha opiniões fortes sobre livros de fantasia e acreditava piamente que ia escrever o maior épico do mundo um dia. Ela era o seu equilíbrio — quieta, sensível, observadora. Mas quando sorria, ele sempre dizia que era como se o mundo todo ficasse mais bonito.
Criaram um esconderijo secreto atrás de uma árvore retorcida no final da rua. Lá, enterraram um pequeno cofre de metal com cartas, desenhos, e uma promessa escrita com caneta roxa:
"Quando a gente crescer, a gente vai se encontrar aqui. Mesmo se o mundo inteiro esquecer, a gente vai lembrar."
O último dia feliz aconteceu numa tarde de domingo. O sol filtrava dourado pelas folhas e Kaela segurava a mão de Ciro enquanto caminhavam até a sorveteria do bairro. Ele dizia que queria inventar um sabor novo, com creme de chocolate e poeira estelar, e ela dizia que era uma péssima ideia.
— Quando eu crescer, vou ser editor. Quero publicar histórias que ninguém acredita, só porque acho que elas merecem existir — ele disse, lambendo um sorvete de pistache.
— E eu vou construir prédios que tenham mais janelas do que paredes — respondeu Kaela. — Quero que as pessoas tenham luz.
— Então você constrói e eu conto a história. Fechado?
— Fechado.
Eles selaram a promessa com um toque de dedos mínimos, sorrindo um para o outro sem saber que estavam congelando aquele momento para sempre.
Naquela noite, veio o incêndio.
A casa dos Ellemar foi engolida pelas chamas pouco depois da meia-noite. Os vizinhos disseram que ouviram um estrondo, depois viram a fumaça. Os jornais falavam em curto-circuito. Alguns diziam que não foi acidente. O pai de Ciro era conhecido por investigar nomes perigosos — e, estranhamente, havia sumido da cidade dois dias antes. A polícia não explicou nada. Apenas informou que Ciro havia sido levado por parentes para outra cidade. Ou outro país. Ninguém sabia ao certo.
Kaela ficou de joelhos diante da árvore do esconderijo, sozinha. Enterrou outra carta no cofre, com lágrimas nos olhos e uma promessa silenciosa nos lábios:
“Eu vou te encontrar, Ciro. Mesmo que você me esqueça.”
Mas o tempo, traiçoeiro e veloz, passou.
E com ele, as vozes da infância foram se apagando.
Os rostos borrando.
As lembranças embaralhando.
Até que tudo o que restou foi uma sensação estranha de ter perdido algo que ela não sabia mais o que era.
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Atualizado até capítulo 33
Comments
Vanildo Campos
😭😭😭😭😬😬🫣🫣
2025-07-16
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