O som dos saltos ecoava pela calçada de pedra como uma batida ritmada. O trânsito caótico de Néridan rugia ao fundo, mas Kaela Vauren não se deixava distrair. Seus passos eram firmes, sua postura impecável. Ela estava atrasada, como quase sempre, e equilibrava a pasta de projetos com uma xícara de café amargo que já começava a esfriar em sua mão.
A cidade havia mudado desde que ela era criança. Ou talvez fosse ela quem tivesse mudado. Os bairros antigos haviam dado espaço a novos empreendimentos, os bondes foram substituídos por metrôs silenciosos, e o céu, antes límpido, agora vivia encoberto pelos arranha-céus de vidro e concreto. Ainda assim, havia algo em Néridan que pulsava forte dentro dela. Como uma memória enterrada sob as construções modernas, esperando ser descoberta.
Aos vinte e sete anos, Kaela era uma das arquitetas mais promissoras da firma Vollin & Harven, especializada em projetos de revitalização urbana. Era conhecida por seu olhar sensível, traços ousados e pela maneira quase intuitiva com que desenhava espaços que pareciam entender as pessoas. Seu nome já era comentado em círculos importantes da cidade, mesmo que ela evitasse festas e premiações como quem foge de um lugar que já conhece bem demais.
Ela não gostava de multidões. Não suportava perguntas pessoais. E detestava ser vista como alguém "em ascensão".
Kaela não queria subir. Queria construir.
Naquela manhã, seu destino era o antigo distrito de Vélin — o mesmo bairro onde crescera, mas que agora estava prestes a ser demolido para dar lugar a um conjunto de prédios luxuosos. O projeto não era seu, mas fora convocada para integrar a equipe de análise histórica da área. Seu papel era avaliar o que ainda poderia ser preservado.
Era só mais um trabalho. Pelo menos era o que tentava acreditar.
O carro a deixou a alguns metros da Rua Vélin. Ela caminhou lentamente, como quem pisa sobre uma lembrança. Os prédios agora estavam gastos, pichados, com janelas quebradas e portas seladas com tábuas. Mas o cheiro da terra molhada, a curva suave da rua, a árvore retorcida no fim da calçada... tudo estava ali.
Como um lugar que esperou, paciente, para ser lembrado.
Kaela parou diante do que um dia fora sua antiga casa. O portão azul ainda rangia, e o jardim, abandonado, era um retrato do tempo que passou. Seus olhos se perderam ali por instantes, até que um estalo suave dentro dela a fez seguir em frente.
Ela não estava ali para reviver nada. Estava ali para trabalhar.
No meio da rua, um grupo de crianças brincava com uma corda improvisada. E uma delas — uma garotinha de tranças e olhos vivos — sorriu para Kaela com uma doçura inexplicável.
— Você mora aqui? — perguntou, com voz tímida.
Kaela sorriu de leve.
— Já morei. Há muito tempo.
— Então você é da árvore?
Kaela franziu a testa, surpresa.
— Que árvore?
— Aquela — a menina apontou para o fim da rua, onde a árvore retorcida ainda resistia, firme e solitária. — Dizem que tem um tesouro enterrado lá. Mas ninguém acha.
O coração de Kaela acelerou. Por um segundo, seus olhos marejaram. Ela sentiu as palavras pesarem na garganta, mas não disse nada. Apenas sorriu, tocou o ombro da menina com delicadeza e seguiu o caminho em silêncio.
O restante do dia foi burocrático: reuniões com engenheiros, análises técnicas, planilhas intermináveis. Mas algo dentro dela não se calava. À noite, sentada em seu pequeno apartamento no centro da cidade, Kaela abriu a antiga caixa de madeira guardada no fundo do armário. Lá estavam seus cadernos de rascunho da adolescência… e entre eles, uma folha amarelada, com uma letra infantil e corações mal desenhados:
“Quando a gente crescer, a gente vai se encontrar aqui. Mesmo se o mundo inteiro esquecer, a gente vai lembrar.”
Ela passou os dedos sobre as palavras com cuidado, como se pudessem se desfazer. Uma saudade quente subiu por seu peito, e por um segundo ela quis acreditar que talvez ele ainda estivesse por aí. Que talvez não tivesse sido esquecido. Que talvez… ele também sentisse.
Mas a vida real não era feita de reencontros.
Ou era?
No dia seguinte, na sede da empresa, Kaela recebeu uma nova missão: supervisionar o projeto gráfico da primeira edição da revista Cênico, uma publicação de arquitetura e urbanismo que estrearia em parceria com uma editora promissora.
— O diretor editorial vai fazer uma visita hoje à tarde — avisou sua chefe. — Um tal de… Ciro Ellemar.
O nome soou como um sussurro antigo no ouvido de Kaela.
Ela congelou.
Por um segundo, não soube respirar.
O café que segurava tremulou levemente em suas mãos, e seu olhar se perdeu por uma janela qualquer.
Ciro Ellemar.
Era um nome que ela não ouvia há dezoito anos.
Um nome que o tempo havia coberto de poeira, mas nunca apagado.
Um nome que, até aquele instante, ela acreditava ter inventado.
O que o destino pretendia ao trazê-lo de volta?
E mais do que isso…
Será que ele lembraria dela?
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Atualizado até capítulo 33
Comments
Vanildo Campos
☺️☺️☺️☺️
2025-07-16
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