Capítulo 2 — Ecos na Cidade

O som dos saltos ecoava pela calçada de pedra como uma batida ritmada. O trânsito caótico de Néridan rugia ao fundo, mas Kaela Vauren não se deixava distrair. Seus passos eram firmes, sua postura impecável. Ela estava atrasada, como quase sempre, e equilibrava a pasta de projetos com uma xícara de café amargo que já começava a esfriar em sua mão.

A cidade havia mudado desde que ela era criança. Ou talvez fosse ela quem tivesse mudado. Os bairros antigos haviam dado espaço a novos empreendimentos, os bondes foram substituídos por metrôs silenciosos, e o céu, antes límpido, agora vivia encoberto pelos arranha-céus de vidro e concreto. Ainda assim, havia algo em Néridan que pulsava forte dentro dela. Como uma memória enterrada sob as construções modernas, esperando ser descoberta.

Aos vinte e sete anos, Kaela era uma das arquitetas mais promissoras da firma Vollin & Harven, especializada em projetos de revitalização urbana. Era conhecida por seu olhar sensível, traços ousados e pela maneira quase intuitiva com que desenhava espaços que pareciam entender as pessoas. Seu nome já era comentado em círculos importantes da cidade, mesmo que ela evitasse festas e premiações como quem foge de um lugar que já conhece bem demais.

Ela não gostava de multidões. Não suportava perguntas pessoais. E detestava ser vista como alguém "em ascensão".

Kaela não queria subir. Queria construir.

Naquela manhã, seu destino era o antigo distrito de Vélin — o mesmo bairro onde crescera, mas que agora estava prestes a ser demolido para dar lugar a um conjunto de prédios luxuosos. O projeto não era seu, mas fora convocada para integrar a equipe de análise histórica da área. Seu papel era avaliar o que ainda poderia ser preservado.

Era só mais um trabalho. Pelo menos era o que tentava acreditar.

O carro a deixou a alguns metros da Rua Vélin. Ela caminhou lentamente, como quem pisa sobre uma lembrança. Os prédios agora estavam gastos, pichados, com janelas quebradas e portas seladas com tábuas. Mas o cheiro da terra molhada, a curva suave da rua, a árvore retorcida no fim da calçada... tudo estava ali.

Como um lugar que esperou, paciente, para ser lembrado.

Kaela parou diante do que um dia fora sua antiga casa. O portão azul ainda rangia, e o jardim, abandonado, era um retrato do tempo que passou. Seus olhos se perderam ali por instantes, até que um estalo suave dentro dela a fez seguir em frente.

Ela não estava ali para reviver nada. Estava ali para trabalhar.

No meio da rua, um grupo de crianças brincava com uma corda improvisada. E uma delas — uma garotinha de tranças e olhos vivos — sorriu para Kaela com uma doçura inexplicável.

— Você mora aqui? — perguntou, com voz tímida.

Kaela sorriu de leve.

— Já morei. Há muito tempo.

— Então você é da árvore?

Kaela franziu a testa, surpresa.

— Que árvore?

— Aquela — a menina apontou para o fim da rua, onde a árvore retorcida ainda resistia, firme e solitária. — Dizem que tem um tesouro enterrado lá. Mas ninguém acha.

O coração de Kaela acelerou. Por um segundo, seus olhos marejaram. Ela sentiu as palavras pesarem na garganta, mas não disse nada. Apenas sorriu, tocou o ombro da menina com delicadeza e seguiu o caminho em silêncio.

O restante do dia foi burocrático: reuniões com engenheiros, análises técnicas, planilhas intermináveis. Mas algo dentro dela não se calava. À noite, sentada em seu pequeno apartamento no centro da cidade, Kaela abriu a antiga caixa de madeira guardada no fundo do armário. Lá estavam seus cadernos de rascunho da adolescência… e entre eles, uma folha amarelada, com uma letra infantil e corações mal desenhados:

“Quando a gente crescer, a gente vai se encontrar aqui. Mesmo se o mundo inteiro esquecer, a gente vai lembrar.”

Ela passou os dedos sobre as palavras com cuidado, como se pudessem se desfazer. Uma saudade quente subiu por seu peito, e por um segundo ela quis acreditar que talvez ele ainda estivesse por aí. Que talvez não tivesse sido esquecido. Que talvez… ele também sentisse.

Mas a vida real não era feita de reencontros.

Ou era?

No dia seguinte, na sede da empresa, Kaela recebeu uma nova missão: supervisionar o projeto gráfico da primeira edição da revista Cênico, uma publicação de arquitetura e urbanismo que estrearia em parceria com uma editora promissora.

— O diretor editorial vai fazer uma visita hoje à tarde — avisou sua chefe. — Um tal de… Ciro Ellemar.

O nome soou como um sussurro antigo no ouvido de Kaela.

Ela congelou.

Por um segundo, não soube respirar.

O café que segurava tremulou levemente em suas mãos, e seu olhar se perdeu por uma janela qualquer.

Ciro Ellemar.

Era um nome que ela não ouvia há dezoito anos.

Um nome que o tempo havia coberto de poeira, mas nunca apagado.

Um nome que, até aquele instante, ela acreditava ter inventado.

O que o destino pretendia ao trazê-lo de volta?

E mais do que isso…

Será que ele lembraria dela?

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Comments

Vanildo Campos

Vanildo Campos

☺️☺️☺️☺️

2025-07-16

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Capítulos
1 Capítulo 1 — O Começo de Tudo
2 Capítulo 2 — Ecos na Cidade
3 Capítulo 3 – Aquilo Que Faltava um Nome
4 Capítulo 4 — O Peso do Quase
5 Capítulo 5 – Memórias que Não Sabem Morrer
6 Capítulo 6 – Entre o Instinto e a Lembrança
7 Capítulo 7 – Os Vazios Também Têm Voz
8 Capítulo 8 – A Mentira Que Quase Convence
9 Capítulo 9 – Quando a Dúvida Grita Mais Alto
10 Capítulo 10 – Aquilo Que Nem o Tempo Pode Apagar
11 Capítulo 11 – Onde Tudo Começou
12 Capítulo 12 – Toda Verdade Carrega um Preço
13 Capítulo 13 – Aquilo Que Nunca Foi Dito em Voz Alta
14 Capítulo 14 – A Voz Que Ninguém Calou
15 Capítulo 15 – Quando Amar é Dizer a Verdade
16 Capítulo 16 – Aquilo Que Voltou a Ser Inteiro
17 Capítulo 17 – O Dia em Que Ninguém Mais Se Calou
18 Capítulo 18 – Quando o Futuro Bate à Porta
19 Capítulo 19 – O Som de Voltar Para Casa
20 Capítulo 20 – Quando o Silêncio se Torna Voz
21 Capítulo 21 – Quando o Mundo Ouve Você
22 Capítulo 22 – Os Dias em Que o Amor Mora com a Gente
23 Capítulo 23 – O Silêncio Que Gera Vida
24 Capítulo 24 – A Vida Escrevendo Por Dentro
25 Capítulo 25 – Um Nome para o Amor
26 Capítulo 26 – Onde a Vida Começa de Novo
27 Capítulo 27 – Quando o Amor Vira Rotina (e Ainda Encanta)
28 Capítulo 28 – As Palavras Que Não Foram Ditas
29 Capítulo 29 – Entre o Que Fica e o Que Volta
30 Capítulo 30 – A Coragem de Ficar
31 Capítulo 31 – Felicidade em Passos Pequenos
32 Capítulo 32 – Aquilo Que Cresce Devagar
33 Epílogo – O Amor Que Permaneceu
Capítulos

Atualizado até capítulo 33

1
Capítulo 1 — O Começo de Tudo
2
Capítulo 2 — Ecos na Cidade
3
Capítulo 3 – Aquilo Que Faltava um Nome
4
Capítulo 4 — O Peso do Quase
5
Capítulo 5 – Memórias que Não Sabem Morrer
6
Capítulo 6 – Entre o Instinto e a Lembrança
7
Capítulo 7 – Os Vazios Também Têm Voz
8
Capítulo 8 – A Mentira Que Quase Convence
9
Capítulo 9 – Quando a Dúvida Grita Mais Alto
10
Capítulo 10 – Aquilo Que Nem o Tempo Pode Apagar
11
Capítulo 11 – Onde Tudo Começou
12
Capítulo 12 – Toda Verdade Carrega um Preço
13
Capítulo 13 – Aquilo Que Nunca Foi Dito em Voz Alta
14
Capítulo 14 – A Voz Que Ninguém Calou
15
Capítulo 15 – Quando Amar é Dizer a Verdade
16
Capítulo 16 – Aquilo Que Voltou a Ser Inteiro
17
Capítulo 17 – O Dia em Que Ninguém Mais Se Calou
18
Capítulo 18 – Quando o Futuro Bate à Porta
19
Capítulo 19 – O Som de Voltar Para Casa
20
Capítulo 20 – Quando o Silêncio se Torna Voz
21
Capítulo 21 – Quando o Mundo Ouve Você
22
Capítulo 22 – Os Dias em Que o Amor Mora com a Gente
23
Capítulo 23 – O Silêncio Que Gera Vida
24
Capítulo 24 – A Vida Escrevendo Por Dentro
25
Capítulo 25 – Um Nome para o Amor
26
Capítulo 26 – Onde a Vida Começa de Novo
27
Capítulo 27 – Quando o Amor Vira Rotina (e Ainda Encanta)
28
Capítulo 28 – As Palavras Que Não Foram Ditas
29
Capítulo 29 – Entre o Que Fica e o Que Volta
30
Capítulo 30 – A Coragem de Ficar
31
Capítulo 31 – Felicidade em Passos Pequenos
32
Capítulo 32 – Aquilo Que Cresce Devagar
33
Epílogo – O Amor Que Permaneceu

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