Ciro não conseguia dormir.
Era a terceira noite consecutiva em que sua mente insistia em girar, como se estivesse tentando encaixar peças de um quebra-cabeça antigo — mas metade das peças tivesse sumido com o tempo, e a outra metade tivesse mudado de forma.
Desde o encontro com Kaela, algo dentro dele se agitava. Não era apenas admiração ou atração. Era mais profundo. Um desconforto quase físico. Como se seu corpo reconhecesse algo que sua mente ainda se recusava a nomear.
Ele não sabia por que ela o deixava tão… inquieto.
Na manhã seguinte, no escritório da Editora Vertus, Ciro mal conseguiu se concentrar. Seus olhos liam os relatórios, mas sua mente voltava, insistente, para o som da voz de Kaela. Para o modo como ela desviava o olhar. Para aquele instante, durante a reunião, em que ambos ficaram em silêncio — e, mesmo assim, disseram tudo.
— Ela parece alguém que eu conheci — murmurou, quase sem perceber.
— Kaela? — perguntou Amara, sua assistente, entrando com uma xícara de café. — Ela impressiona, não é? Uma mulher discreta, mas firme. A editora do Cênico adorou trabalhar com ela.
Ciro assentiu devagar.
— Você conseguiu as informações dela?
Amara entregou a pasta.
Ciro abriu. Nome completo, data de nascimento, escola primária. E então, uma linha chamou sua atenção:
Residência anterior: Rua Vélin, Bairro Sul de Néridan.
Vélin.
Aquela palavra atravessou seus pensamentos como uma lâmina.
Era isso. Era dali que o eco vinha.
Ele não contou a ninguém, mas naquela tarde, saiu do prédio sem avisar. Pegou o carro e dirigiu até o bairro antigo. O GPS ainda localizava a Rua Vélin, embora a maior parte da região estivesse em estado de abandono, cercada por tapumes de demolição.
Ao estacionar, ficou alguns minutos parado, observando o lugar pela janela do carro.
Os prédios estavam velhos, mas ainda de pé. As árvores crescidas tomavam conta das calçadas. Era como caminhar por um sonho esquecido.
Ele andou devagar, como se estivesse testando o chão. Até que viu a árvore. Aquela árvore torta, grossa, com raízes à mostra — como um sentinela da infância. E algo em seu peito apertou.
A imagem veio de forma fragmentada:
Ele e uma menina.
Crianças.
Rindo.
Sentados na sombra daquela árvore.
Prometendo algo.
"A gente vai se encontrar de novo. Mesmo se o mundo esquecer."
Ciro levou a mão ao peito.
A voz era dele.
A promessa era real.
E a menina…
— Ei, cara. — uma voz masculina soou atrás dele.
Ciro se virou.
Um homem jovem, de blazer cinza e sorriso simpático se aproximava com passos calculados.
— Milan Dovak — disse ele, estendendo a mão. — Acho que você me conhece da editora.
Ciro franziu o cenho, surpreso.
— Dovak... sim, sobrinho do Harven, certo?
— Exatamente. Vim ver o bairro antes que tudo seja apagado do mapa — Milan respondeu, colocando as mãos nos bolsos. — Lugar cheio de histórias.
Ciro observou o tom casual. Mas havia algo calculado naquele encontro.
— Você cresceu aqui? — perguntou.
— Por um tempo, sim — Milan respondeu com um encolher de ombros. — Tenho umas memórias antigas… difíceis de explicar. Mas acredite ou não, acho que conheci uma garota que morava por aqui. Ela desenhava casas. Tinha uma imaginação absurda. Acho que era… Kaela.
O nome caiu pesado no ar.
Ciro ficou parado, os olhos fixos em Milan.
— Você conhecia Kaela? — perguntou, tentando manter o tom neutro.
— Talvez — disse Milan, sorrindo. — Eu era muito pequeno. Mas me lembro da árvore. Me lembro de promessas. Você sabe como é… a infância se mistura com os sonhos.
Ciro não respondeu. Mas algo não batia. As palavras estavam corretas — promessas, infância, árvore — mas não soavam verdadeiras. Eram… ensaiadas.
— Por que está me dizendo isso? — perguntou, direto.
Milan deu um meio sorriso.
— Porque talvez, Ciro, você esteja procurando algo que já encontrei primeiro.
Naquela noite, Ciro abriu uma caixa que havia guardado no fundo de um armário por anos. Lá estavam desenhos antigos, livros rasgados, um pedaço de madeira com inscrições infantis, e… uma carta.
Uma carta que ele nunca teve coragem de abrir.
A letra era pequena, tremida. Com tinta roxa.
"Ciro, se você voltar um dia, eu vou estar aqui. Mesmo se você esquecer, mesmo se não me reconhecer, eu vou lembrar por nós dois. Kaela."
O ar pareceu sair dos pulmões de Ciro.
Ele fechou os olhos, deixando a memória vir como uma onda.
Kaela.
Era ela.
Sempre foi ela.
E agora… alguém estava tentando roubar a história que era deles.
Mas se Milan achava que podia se passar por ele, não entendia com quem estava lidando.
Porque Ciro Ellemar podia não lembrar de todos os detalhes…
Mas ele jamais deixaria alguém apagar aquilo que resistiu até mesmo ao esquecimento.
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Atualizado até capítulo 33
Comments
Graça Lobo Sales
mau caráter tentando roubar a história dos dois
2025-07-13
0
Vanildo Campos
😱😱😱😱😢😢😢💪💪💪💪💪
2025-07-16
0