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Quando Te Vi Outra Vez

Capítulo 1 — O Começo de Tudo

Néridan era uma cidade que não sabia o que era descansar. As luzes dos arranha-céus competiam com o brilho das estrelas, e as avenidas pareciam nunca dormir. Carros, pessoas apressadas, anúncios luminosos e sons de vida se misturavam como uma melodia caótica — o tipo de lugar onde histórias se perdiam com facilidade. Mas naquele início de primavera, enquanto a capital do reino de Valdora girava em seu próprio ritmo impiedoso, uma história silenciosa nascia em uma pequena rua esquecida entre os bairros mais antigos da cidade.

A Rua Vélin era diferente. Um recanto quase escondido entre duas avenidas movimentadas, onde os prédios antigos ainda guardavam varandas com vasos de plantas e cortinas que dançavam com o vento. Lá, as manhãs ainda tinham cheiro de pão fresco vindo da padaria da esquina e as tardes eram preenchidas com o som de risadas infantis, bicicletas rangendo, jogos improvisados e folhas secas voando pelo asfalto rachado.

Kaela Vauren chegava àquela rua carregando mais do que malas e caixas. Trazia nos olhos a perda que não sabia nomear, a tristeza silenciosa de quem teve o chão arrancado sem aviso. Seu pai, um diplomata com fama de justo e corajoso, havia desaparecido durante uma missão no exterior. Oficialmente, estava "em investigação". Na prática, ele havia sumido — e com ele, metade do mundo de Kaela.

Sua mãe, mesmo com a voz doce e o sorriso forçado, estava distante. Mudaram-se para Néridan com a justificativa de “um novo começo”, mas Kaela sabia que era apenas um novo lugar para fingirem que tudo estava bem.

A casa era pequena, azul-clara, com um jardim abandonado e um portão que rangia como se reclamasse da chegada de novos moradores. Enquanto os carregadores entravam e saíam, Kaela se sentou no degrau da entrada, abraçada aos joelhos, observando a rua como quem observa um território desconhecido.

Foi então que o viu.

Do outro lado da rua, um menino da sua idade, talvez um pouco mais velho, a encarava sem qualquer constrangimento. Tinha a pele morena dourada de sol, olhos escuros e intensos, e o cabelo despenteado como se tivesse acabado de sair de uma árvore. E, de fato, talvez tivesse — havia um galho preso na alça de sua mochila. Nas mãos, segurava um livro.

— Você gosta de dragões? — ele perguntou, de repente, atravessando a rua sem medo.

Kaela ergueu as sobrancelhas, surpresa.

— Como?

Ele apontou para a camiseta dela: um dragão vermelho envolto em chamas e símbolos rúnicos.

— É da série Reino de Brael. Essa edição é antiga. Você leu o terceiro volume?

Kaela hesitou. Estava acostumada a ser ignorada — por adultos, por colegas, por vizinhos. Ninguém nunca notava suas camisetas, muito menos fazia perguntas inteligentes sobre elas.

— Já li sim — disse, tentando parecer casual. — Três vezes.

O menino sorriu de forma despretensiosa, como se aquele detalhe tivesse confirmado tudo que precisava saber sobre ela.

— Sou Ciro Ellemar. Meu cachorro comeu meu quarto livro. Acho que ele ficou com ciúmes.

Kaela riu. Foi um riso inesperado, o primeiro desde o desaparecimento do pai. Um riso leve, quase solto, que escapou antes que ela pudesse contê-lo. E naquele instante, algo invisível aconteceu. Algo que ela não entenderia por muitos anos. Algo que começava com um sorriso e cresceria em silêncio, como raízes sob a terra.

Os meses seguintes foram os melhores que Kaela conseguira viver desde a perda. Ciro era incansável. Ele a arrastava pelas ruas do bairro em aventuras improváveis, transformando árvores em fortalezas, bueiros em passagens secretas e caixas de papelão em espaçonaves. Ele falava sem parar, tinha opiniões fortes sobre livros de fantasia e acreditava piamente que ia escrever o maior épico do mundo um dia. Ela era o seu equilíbrio — quieta, sensível, observadora. Mas quando sorria, ele sempre dizia que era como se o mundo todo ficasse mais bonito.

Criaram um esconderijo secreto atrás de uma árvore retorcida no final da rua. Lá, enterraram um pequeno cofre de metal com cartas, desenhos, e uma promessa escrita com caneta roxa:

"Quando a gente crescer, a gente vai se encontrar aqui. Mesmo se o mundo inteiro esquecer, a gente vai lembrar."

O último dia feliz aconteceu numa tarde de domingo. O sol filtrava dourado pelas folhas e Kaela segurava a mão de Ciro enquanto caminhavam até a sorveteria do bairro. Ele dizia que queria inventar um sabor novo, com creme de chocolate e poeira estelar, e ela dizia que era uma péssima ideia.

— Quando eu crescer, vou ser editor. Quero publicar histórias que ninguém acredita, só porque acho que elas merecem existir — ele disse, lambendo um sorvete de pistache.

— E eu vou construir prédios que tenham mais janelas do que paredes — respondeu Kaela. — Quero que as pessoas tenham luz.

— Então você constrói e eu conto a história. Fechado?

— Fechado.

Eles selaram a promessa com um toque de dedos mínimos, sorrindo um para o outro sem saber que estavam congelando aquele momento para sempre.

Naquela noite, veio o incêndio.

A casa dos Ellemar foi engolida pelas chamas pouco depois da meia-noite. Os vizinhos disseram que ouviram um estrondo, depois viram a fumaça. Os jornais falavam em curto-circuito. Alguns diziam que não foi acidente. O pai de Ciro era conhecido por investigar nomes perigosos — e, estranhamente, havia sumido da cidade dois dias antes. A polícia não explicou nada. Apenas informou que Ciro havia sido levado por parentes para outra cidade. Ou outro país. Ninguém sabia ao certo.

Kaela ficou de joelhos diante da árvore do esconderijo, sozinha. Enterrou outra carta no cofre, com lágrimas nos olhos e uma promessa silenciosa nos lábios:

“Eu vou te encontrar, Ciro. Mesmo que você me esqueça.”

Mas o tempo, traiçoeiro e veloz, passou.

E com ele, as vozes da infância foram se apagando.

Os rostos borrando.

As lembranças embaralhando.

Até que tudo o que restou foi uma sensação estranha de ter perdido algo que ela não sabia mais o que era.

Capítulo 2 — Ecos na Cidade

O som dos saltos ecoava pela calçada de pedra como uma batida ritmada. O trânsito caótico de Néridan rugia ao fundo, mas Kaela Vauren não se deixava distrair. Seus passos eram firmes, sua postura impecável. Ela estava atrasada, como quase sempre, e equilibrava a pasta de projetos com uma xícara de café amargo que já começava a esfriar em sua mão.

A cidade havia mudado desde que ela era criança. Ou talvez fosse ela quem tivesse mudado. Os bairros antigos haviam dado espaço a novos empreendimentos, os bondes foram substituídos por metrôs silenciosos, e o céu, antes límpido, agora vivia encoberto pelos arranha-céus de vidro e concreto. Ainda assim, havia algo em Néridan que pulsava forte dentro dela. Como uma memória enterrada sob as construções modernas, esperando ser descoberta.

Aos vinte e sete anos, Kaela era uma das arquitetas mais promissoras da firma Vollin & Harven, especializada em projetos de revitalização urbana. Era conhecida por seu olhar sensível, traços ousados e pela maneira quase intuitiva com que desenhava espaços que pareciam entender as pessoas. Seu nome já era comentado em círculos importantes da cidade, mesmo que ela evitasse festas e premiações como quem foge de um lugar que já conhece bem demais.

Ela não gostava de multidões. Não suportava perguntas pessoais. E detestava ser vista como alguém "em ascensão".

Kaela não queria subir. Queria construir.

Naquela manhã, seu destino era o antigo distrito de Vélin — o mesmo bairro onde crescera, mas que agora estava prestes a ser demolido para dar lugar a um conjunto de prédios luxuosos. O projeto não era seu, mas fora convocada para integrar a equipe de análise histórica da área. Seu papel era avaliar o que ainda poderia ser preservado.

Era só mais um trabalho. Pelo menos era o que tentava acreditar.

O carro a deixou a alguns metros da Rua Vélin. Ela caminhou lentamente, como quem pisa sobre uma lembrança. Os prédios agora estavam gastos, pichados, com janelas quebradas e portas seladas com tábuas. Mas o cheiro da terra molhada, a curva suave da rua, a árvore retorcida no fim da calçada... tudo estava ali.

Como um lugar que esperou, paciente, para ser lembrado.

Kaela parou diante do que um dia fora sua antiga casa. O portão azul ainda rangia, e o jardim, abandonado, era um retrato do tempo que passou. Seus olhos se perderam ali por instantes, até que um estalo suave dentro dela a fez seguir em frente.

Ela não estava ali para reviver nada. Estava ali para trabalhar.

No meio da rua, um grupo de crianças brincava com uma corda improvisada. E uma delas — uma garotinha de tranças e olhos vivos — sorriu para Kaela com uma doçura inexplicável.

— Você mora aqui? — perguntou, com voz tímida.

Kaela sorriu de leve.

— Já morei. Há muito tempo.

— Então você é da árvore?

Kaela franziu a testa, surpresa.

— Que árvore?

— Aquela — a menina apontou para o fim da rua, onde a árvore retorcida ainda resistia, firme e solitária. — Dizem que tem um tesouro enterrado lá. Mas ninguém acha.

O coração de Kaela acelerou. Por um segundo, seus olhos marejaram. Ela sentiu as palavras pesarem na garganta, mas não disse nada. Apenas sorriu, tocou o ombro da menina com delicadeza e seguiu o caminho em silêncio.

O restante do dia foi burocrático: reuniões com engenheiros, análises técnicas, planilhas intermináveis. Mas algo dentro dela não se calava. À noite, sentada em seu pequeno apartamento no centro da cidade, Kaela abriu a antiga caixa de madeira guardada no fundo do armário. Lá estavam seus cadernos de rascunho da adolescência… e entre eles, uma folha amarelada, com uma letra infantil e corações mal desenhados:

“Quando a gente crescer, a gente vai se encontrar aqui. Mesmo se o mundo inteiro esquecer, a gente vai lembrar.”

Ela passou os dedos sobre as palavras com cuidado, como se pudessem se desfazer. Uma saudade quente subiu por seu peito, e por um segundo ela quis acreditar que talvez ele ainda estivesse por aí. Que talvez não tivesse sido esquecido. Que talvez… ele também sentisse.

Mas a vida real não era feita de reencontros.

Ou era?

No dia seguinte, na sede da empresa, Kaela recebeu uma nova missão: supervisionar o projeto gráfico da primeira edição da revista Cênico, uma publicação de arquitetura e urbanismo que estrearia em parceria com uma editora promissora.

— O diretor editorial vai fazer uma visita hoje à tarde — avisou sua chefe. — Um tal de… Ciro Ellemar.

O nome soou como um sussurro antigo no ouvido de Kaela.

Ela congelou.

Por um segundo, não soube respirar.

O café que segurava tremulou levemente em suas mãos, e seu olhar se perdeu por uma janela qualquer.

Ciro Ellemar.

Era um nome que ela não ouvia há dezoito anos.

Um nome que o tempo havia coberto de poeira, mas nunca apagado.

Um nome que, até aquele instante, ela acreditava ter inventado.

O que o destino pretendia ao trazê-lo de volta?

E mais do que isso…

Será que ele lembraria dela?

Capítulo 3 – Aquilo Que Faltava um Nome

O céu de Néridan estava cinza naquela manhã, mas Ciro Ellemar parecia não notar. O vidro da sala de reuniões exibia uma vista espetacular da cidade, mas ele raramente parava para apreciá-la. Sua mente estava sempre alguns passos à frente — resolvendo problemas, avaliando propostas, reescrevendo futuros que nem haviam acontecido ainda.

A Editora Vertus, da qual era fundador e diretor editorial, vinha crescendo de forma meteórica. Especializada em publicações de nicho — arquitetura, arte, urbanismo e cultura contemporânea —, a empresa havia conquistado seu espaço com ousadia e estética refinada. Mas, para Ciro, o sucesso era apenas um subproduto. Ele buscava algo mais. Algo que não sabia nomear.

Naquela manhã, ele revisava a prévia da nova revista, a Cênico, um projeto ambicioso feito em parceria com um dos maiores escritórios de arquitetura da cidade.

— A direção gráfica está boa, mas falta alma — murmurou, folheando as provas.

— A arquiteta responsável vai te encontrar hoje à tarde — disse Amara, sua assistente pessoal, com sua eficiência imbatível. — Ela é a nova estrela da Vollin & Harven. Dizem que tem um olhar quase... emocional sobre espaços urbanos.

— Emocional? — ele arqueou uma sobrancelha, intrigado. — Isso me interessa.

Ciro era conhecido por ser exigente, reservado, quase inacessível. Poucos sabiam que ele era órfão de pai e mãe desde os nove anos — ou ao menos era isso que os registros diziam. Na verdade, seu pai havia sido morto em circunstâncias nunca esclarecidas, e ele fora retirado de Néridan às pressas, levado para outra província por um tio distante, sob um novo sobrenome provisório e uma rotina de silêncio.

Da infância, sobraram pedaços:

Uma árvore grande e torta.

Um som de risada ao vento.

Um nome que ele tentava, em vão, lembrar.

Havia uma menina.

Havia promessas.

Havia algo que ele sentia falta… e que o tempo se recusava a devolver.

Durante anos, Ciro tentou reconstruir a si mesmo. Tornou-se leitor voraz, criador de mundos, um contador de histórias que fugia das próprias. Seu sucesso, aos olhos do mundo, era impecável. Mas em noites silenciosas, quando o mundo se calava, ele sentia.

Sentia falta de algo — ou alguém — que deveria ter sido parte de sua vida inteira.

À tarde, vestia uma camisa escura e um blazer sóbrio quando chegou à sede da Vollin & Harven. O ambiente era moderno, espelhado, cheio de linhas retas e concreto polido, mas havia uma leveza no ar — como se alguém tivesse deixado ali um traço de poesia.

Foi conduzido até uma sala de reuniões envidraçada, onde obras de arquitetura estavam expostas como arte.

— A arquiteta já está a caminho — avisou a recepcionista.

Enquanto aguardava, seus olhos vagaram pela maquete de um projeto recente. Era um parque urbano, com curvas ousadas e espaços de convivência esculpidos com elegância. Mas o que o paralisou foi o nome no canto do painel:

Kaela Vauren.

Ciro sentiu uma fisgada estranha no peito.

Aquele nome…

Era bonito demais para ser apenas coincidência.

Algo nele se agitou, como se um fio antigo tivesse sido puxado de repente. Não era reconhecimento, mas uma inquietação. Como quando você ouve uma música pela primeira vez e tem certeza de que já dançou com ela antes.

— Senhor Ellemar? — disse uma voz às suas costas.

Ele se virou.

Ela estava ali.

Vestia um blazer bege sobre um vestido sóbrio, os cabelos escuros presos em um coque elegante, e os olhos… os olhos tinham algo de intocável, de firmeza e saudade. Por um segundo, o mundo silenciou ao redor.

— Sou Kaela Vauren. Um prazer conhecê-lo.

Ele apertou sua mão, firme, e pela primeira vez em muito tempo, perdeu a fala.

Havia algo nela.

Um detalhe invisível.

Um perfume de infância.

Uma lembrança que não vinha completa, mas que deixava a alma inquieta.

— Ciro Ellemar — ele respondeu, finalmente. — O prazer é meu.

Eles se sentaram, começaram a discutir o projeto, a estética, a visão editorial. A conversa fluía com naturalidade. Ela era inteligente, articulada, segura. Ele, como sempre, analisava tudo com olhos críticos. Mas havia um subtexto ali. Algo que escapava das palavras e vibrava no ar entre os dois.

Ciro não sabia o que era.

Kaela também não.

Mas ambos sentiam.

Quando o encontro terminou, Ciro entrou no carro com o corpo tenso e o coração acelerado.

— Amara — disse, ao telefone —, descubra tudo o que puder sobre Kaela Vauren.

Do outro lado, a assistente apenas confirmou.

E enquanto o carro sumia entre as luzes de Néridan, Ciro fechava os olhos, tentando puxar um nome, um rosto, uma voz…

Sem saber que o destino acabara de costurar o primeiro nó do reencontro que mudaria suas vidas.

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