Em Ruínas
Vanessa_Pov
O despertador tocou às 05h00, como sempre. A diferença foi que, dessa vez, eu não estava sozinha no quarto de hóspedes.
Bianca dormia enrolada no edredom, os cachos claros , sobre o travesseiro como um rabisco. Tinha chegado tarde da noite, enquanto eu estava no plantão. Renata a recebera com champanhe e risadas altas - eu soube pelo rastro de copos sujos na pia.
Encostei-me na porta, observando. Ela não parecia uma intrusa. Parecia um fantasma que sempre morou ali, quieto, esperando ser descoberto.
- Você vai ficar me encarando ou vai entrar? - A voz dela veio rouca, sem abrir os olhos.
Pisei no tapete, desconcertada.
- Eu moro aqui.
- Ah. A esposa da tia Renata. - Sentou-se na cama, esfregando o rosto. Tinha olhos escuros, que me encararam sem cerimônia. - Ela disse que você não ligaria.
- Ela errou.
Bianca riu, como se eu tivesse feito uma piada. Depois esticou o braço para o criado-mudo e pegou um maço de cigarros. Acendeu um ali mesmo, sem pedir licença.
- Relaxa, doutora. Só vou ficar até o fim do semestre.
O cheiro do tabaco invadiu o quarto, misturando-se ao meu cansaço. Eu deveria ter reclamado. Exigido respeito. Mas algo naquela garota - a insolência, talvez, ou a forma como ela fumava como quem respira - me fez engolir as palavras.
- Não fume dentro de casa - foi tudo que consegui dizer.
Ela soprou a fumaça para o lado, longe de mim, mas não apagou o cigarro.
- Beleza.
Quando saí, ela já estava deitada de novo, como se aquele diálogo nunca tivesse acontecido.
No corredor, Renata apareceu, impecável de roupão de seda.
- Bom dia, amor - disse, me beijando na boca sem calor. - Bianca chegou.
- Eu vi.
- Ela é... especial. Minha irmã teve problemas pra criá-la.
- Que tipo de problemas?
Renata encolheu os ombros, ajustando a pulseira de ouro no pulso.
- Dos que a gente esconde.
Desci as escadas sentindo o gosto amargo daquela conversa. Na cozinha, Clara tomava cereal com a babá. Sorriu quando me viu, e por um segundo, tudo pareceu normal.
Até que ouvi passos rápidos no andar de cima. Bianca desceu de shorts e camiseta larga, descalça, como se a casa já fosse dela.
- Alguém me diz onde fica o café? - perguntou, abrindo armários sem pudor.
Clara a observou, fascinada.
- Você é princesa?
Bianca riu, pegando uma caneca.
- Sou sua prima. Quer café também, princesa?
- Clara não toma café - interrompi.
Ela me ignorou, servindo o líquido negro até a borda.
- Primeiro dia. Regras são chatas no primeiro dia.
Renata apareceu na porta, sorrindo como se aquilo fosse adorável.
Eu olhei para Bianca, depois para minha filha, e finalmente para minha esposa. Algo dentro de mim entendeu, antes mesmo de eu formar o pensamento:
Ninguém tinha me avisado que a ruína tinha cachos claros.
E que ela servia café.
(...)
O jantar foi um silêncio cortado a faca.
Renata mastigava devagar, os olhos fixos no vinho, como se estivesse revisando mentalmente algum procedimento complicado. Clara balançava as pernas sob a mesa, lançando olhares curiosos para Bianca, que ignorava o prato de comida e virava o celular entre os dedos.
- Você não come? - perguntei, mais por obrigação social do que por interesse real.
Bianca ergueu os olhos, os cachos claros fazendo sombra no rosto.
- Não quando estou entediada.
Renata soltou uma risada seca.
- Ela sempre foi assim, Eliza me avisou.
O nome da irmã dela caiu na mesa como um objeto pesado. Eliza. A mulher que eu só conhecia por fotografias e histórias truncadas, sempre contadas pela metade. A mãe de Bianca.
- Sua mãe não te ensinou que é falta de educação mexer no celular à mesa? - a pergunta saiu mais áspera do que eu pretendia.
Bianca deixou o celular cair no prato com um tilintar metálico.
- Minha mãe não me ensinou muita coisa, doutora.
O ar ficou pesado. Renata limpou os lábios com o guardanapo, sorrindo como se nada estivesse acontecendo.
- Bianca vai estudar Artes na Federal. Conseguiu uma bolsa incrível, não foi, querida?
- Incrível - Bianca repetiu, sem entusiasmo.
Clara, ignorando a tensão, empurrou o prato para o lado.
- Posso ir brincar?
- Sim, amor - Renata respondeu antes de mim.
Assim que Clara saiu, Bianca levantou-se também.
- Eu também posso ir "brincar"?
- Você não é uma criança - retruquei.
- Exatamente.
Ela saiu da sala antes que eu pudesse responder, deixando para trás o cheiro do cigarro que ainda grudava nela.
Renata suspirou, servindo mais vinho.
- Você poderia ser mais gentil.
- Eu não a convidei para morar aqui.
- Mas eu convidei.
Olhei para ela, tentando entender o que se escondia por trás daquela calma. Renata era assim - uma superfície lisa, sem ondulações. Nunca sabia o que havia por baixo.
- Por quê?
Ela encostou a taça nos lábios, hesitando pela primeira vez.
- Porque Eliza pediu.
Era sempre assim. Eliza pedia, Renata obedecia. Nunca questionei o que havia entre as duas irmãs, mas Bianca era a prova viva de que alguma coisa estava podre.
No corredor, ouvi risos abafados. Bianca e Clara estavam no chão da sala, com um baralho espalhado entre elas.
- Agora escolhe uma carta - Bianca dizia, os olhos brilhando com algo que parecia genuíno pela primeira vez.
Clara riu, pegando uma carta aleatória.
Eu fiquei parada ali, observando, até Bianca levantar os olhos e me encarar.
- Quer participar, doutora?
Havia um desafio naquela pergunta. Um teste.
- Não.
Ela sorriu, como se já soubesse que eu diria isso.
- Tudo bem. Algumas pessoas só sabem observar.
Aquela noite, algo perturbava minha mente, eu fiquei acordada, olhando para o teto.
Bianca estava certa.
Eu só observava.
Mas algo me dizia que, muito em breve, eu não teria mais escolha.
(...)
A luz do frigorífico do hospital ainda me cegava quando cheguei em casa. Fora um dia de doze horas, duas cirurgias de emergência e uma decisão que deixaria marcas - não no corpo do paciente, mas na minha consciência. Mal conseguia sentir minhas mãos, mas o cheiro que invadiu minhas narinas ao abrir a porta não era o habitual perfume caro de Renata ou o cheiro de brinquedo plástico de Clara. Era algo queimado, denso, como fumaça de cigarro misturada com gordura superaquecida.
Bianca estava na cozinha.
E a cozinha estava em guerra.
- Que diabos está acontecendo aqui?
Ela virou-se, uma mancha de óleo na camiseta branca, os cachos rebeldes presos num rabo de cavalo desleixado. Na frigideira, algo que poderia ter sido um bife em outra vida agora parecia um pedaço de carvão.
- Experiência culinária, doutora. - Ela sorriu, cutucando a massa negra com um garfo. - Falhou miseravelmente.
Fechei os olhos por um segundo, contando até três. Quando os abri, ela estava me olhando com aquela expressão - metade desafio, metade diversão.
- Onde está a empregada?
- Ah, a Dona Marta? - Bianca jogou a frigideira na pia com um estrondo. - Deu um ataque de nervos e foi embora.
- O que você fez?
- Eu? Nada. - Ela abriu a geladeira, pegando uma garrafa de água. - Só perguntei se ela estava roubando nossas coisas. Você sabe, aquela colher de prata que sumiu... o anel da tia Renata...
Meu estômago se contraiu.
- Você acusou a empregada de roubo?
- Relaxa. - Ela tomou um gole d'água, devagar. - Eu disse. Nunca que afirmei Ela que decidiu sair correndo.
Era impossível. Absolutamente impossível. Em menos de uma semana, aquela garota conseguira transformar a casa num campo minado.
- Você vai pedir desculpas a ela amanhã.
- Não vou. - Bianca encostou-se no balcão, os braços cruzados. - Mas posso reconsiderar se você me levar ao hospital amanhã.
O sangue correu mais frio nas minhas veias.
- Por que você quer ir ao hospital?
-Curiosidade profissional. - Ela fingiu examinar as unhas. - Quero ver onde a grande doutora brilha, já que aqui em casa você só sabe fazer cara de paisagem.
Eu deveria ter rido. Deveria ter ignorado. Mas então ela fez o movimento que mudou tudo - esticou o braço e pegou algo do balcão atrás de mim.
Minha caixa de remédios.
- Lorazepam. - Ela leu o rótulo em voz alta, como se estivesse numa aula. - "Tomar 1 comprimido ao deitar em casos de ansiedade extrema."
Tentei pegá-la de volta, mas ela afastou-se com a agilidade de um gato.
- Isso não é da sua conta, Bianca.
- Tudo nessa casa é da minha conta agora. - Ela balançou a caixa, os comprimidos chocalhando dentro. - Principalmente quando minha tia te olha como se você fosse um móvel defeituoso que ela não sabe como consertar.
Meu coração batia tão forte que eu temia que ela pudesse ouvir. Renata não sabia dos remédios. Ninguém sabia. Eu mantinha tudo escondido - assim como mantinha escondidas as noites em que acordava sufocando, as mãos trêmulas, o suor frio escorrendo pelas costas.
- O que você quer?
Bianca colocou a caixa no bolso do shorts.
- Já disse. Quero ir ao hospital. Quero ver você trabalhar. - Uma pausa. - E quero saber por que você precisa disso para dormir ao lado da mulher que supostamente ama.
O som da porta da garagem nos fez ambas nos virarmos. Renata estava chegando.
Bianca sorriu, a caixa desaparecendo no bolso de trás.
- Então, doutora? Amanhã às Cinco?
Não tive escolha.
- Cinco em ponto.
Quando Renata entrou, trazendo sacolas de lojas caras e um beijo mecânico para minha bochecha, Bianca já estava subindo as escadas, assobiando baixinho.
Naquela noite, enquanto Renata dormia, eu abri meu armário e verifiquei meus esconderijos - atrás das blusas de inverno, no fundo da gaveta de meias, dentro do estojo de maquiagem. Bianca tinha encontrado apenas um.
Mas era o suficiente.
Ela queria ir ao hospital? Teria seu desejo atendido.
Mas eu descobriria o que aquela garota estava realmente buscando - mesmo que fosse a última coisa que faria.
Narrador_Pov
Bianca fechou a porta do quarto de hóspedes com o pé, tirando a caixa de remédios do bolso. Ela a balançou por um momento, pensativa, antes de abrir a gaveta da mesinha de cabeceira e jogá-la lá dentro, ao lado de um maço de cigarros meio vazio e uma foto amassada de uma mulher loira - Eliza - com os olhos riscados por uma caneta vermelha.
No corredor, um barulho. Clara, em pé na porta, segurando seu coelho de pelúcia.
- Você tá brava? - a menina perguntou, sonhadora.
Bianca sorriu, fechando a gaveta com um empurrão.
- Nunca, princesa. Só jogando.
- Jogando o quê?
- Xadrez. - Ela pegou Clara no colo, fazendo a menina rir. - E a doutora nem sabe que o jogo já começou.
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Comments
Fran Silva
começando agora mas já tá interessante eu gosto desse mistério dessa tensão sabe muito interessante!!!
2025-09-19
0
Marri Santis
o que será que tá por trás disso /Hey/
2025-09-17
0
Maria
Estou começando a ler agora
2025-09-09
0