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Em Ruínas

01

Vanessa_Pov

O despertador tocou às 05h00, como sempre. A diferença foi que, dessa vez, eu não estava sozinha no quarto de hóspedes.

Bianca dormia enrolada no edredom, os cachos claros , sobre o travesseiro como um rabisco. Tinha chegado tarde da noite, enquanto eu estava no plantão. Renata a recebera com champanhe e risadas altas - eu soube pelo rastro de copos sujos na pia.

Encostei-me na porta, observando. Ela não parecia uma intrusa. Parecia um fantasma que sempre morou ali, quieto, esperando ser descoberto.

- Você vai ficar me encarando ou vai entrar? - A voz dela veio rouca, sem abrir os olhos.

Pisei no tapete, desconcertada.

- Eu moro aqui.

- Ah. A esposa da tia Renata. - Sentou-se na cama, esfregando o rosto. Tinha olhos escuros, que me encararam sem cerimônia. - Ela disse que você não ligaria.

- Ela errou.

Bianca riu, como se eu tivesse feito uma piada. Depois esticou o braço para o criado-mudo e pegou um maço de cigarros. Acendeu um ali mesmo, sem pedir licença.

- Relaxa, doutora. Só vou ficar até o fim do semestre.

O cheiro do tabaco invadiu o quarto, misturando-se ao meu cansaço. Eu deveria ter reclamado. Exigido respeito. Mas algo naquela garota - a insolência, talvez, ou a forma como ela fumava como quem respira - me fez engolir as palavras.

- Não fume dentro de casa - foi tudo que consegui dizer.

Ela soprou a fumaça para o lado, longe de mim, mas não apagou o cigarro.

- Beleza.

Quando saí, ela já estava deitada de novo, como se aquele diálogo nunca tivesse acontecido.

No corredor, Renata apareceu, impecável de roupão de seda.

- Bom dia, amor - disse, me beijando na boca sem calor. - Bianca chegou.

- Eu vi.

- Ela é... especial. Minha irmã teve problemas pra criá-la.

- Que tipo de problemas?

Renata encolheu os ombros, ajustando a pulseira de ouro no pulso.

- Dos que a gente esconde.

Desci as escadas sentindo o gosto amargo daquela conversa. Na cozinha, Clara tomava cereal com a babá. Sorriu quando me viu, e por um segundo, tudo pareceu normal.

Até que ouvi passos rápidos no andar de cima. Bianca desceu de shorts e camiseta larga, descalça, como se a casa já fosse dela.

- Alguém me diz onde fica o café? - perguntou, abrindo armários sem pudor.

Clara a observou, fascinada.

- Você é princesa?

Bianca riu, pegando uma caneca.

- Sou sua prima. Quer café também, princesa?

- Clara não toma café - interrompi.

Ela me ignorou, servindo o líquido negro até a borda.

- Primeiro dia. Regras são chatas no primeiro dia.

Renata apareceu na porta, sorrindo como se aquilo fosse adorável.

Eu olhei para Bianca, depois para minha filha, e finalmente para minha esposa. Algo dentro de mim entendeu, antes mesmo de eu formar o pensamento:

Ninguém tinha me avisado que a ruína tinha cachos claros.

E que ela servia café.

(...)

O jantar foi um silêncio cortado a faca.

Renata mastigava devagar, os olhos fixos no vinho, como se estivesse revisando mentalmente algum procedimento complicado. Clara balançava as pernas sob a mesa, lançando olhares curiosos para Bianca, que ignorava o prato de comida e virava o celular entre os dedos.

- Você não come? - perguntei, mais por obrigação social do que por interesse real.

Bianca ergueu os olhos, os cachos claros fazendo sombra no rosto.

- Não quando estou entediada.

Renata soltou uma risada seca.

- Ela sempre foi assim, Eliza me avisou.

O nome da irmã dela caiu na mesa como um objeto pesado. Eliza. A mulher que eu só conhecia por fotografias e histórias truncadas, sempre contadas pela metade. A mãe de Bianca.

- Sua mãe não te ensinou que é falta de educação mexer no celular à mesa? - a pergunta saiu mais áspera do que eu pretendia.

Bianca deixou o celular cair no prato com um tilintar metálico.

- Minha mãe não me ensinou muita coisa, doutora.

O ar ficou pesado. Renata limpou os lábios com o guardanapo, sorrindo como se nada estivesse acontecendo.

- Bianca vai estudar Artes na Federal. Conseguiu uma bolsa incrível, não foi, querida?

- Incrível - Bianca repetiu, sem entusiasmo.

Clara, ignorando a tensão, empurrou o prato para o lado.

- Posso ir brincar?

- Sim, amor - Renata respondeu antes de mim.

Assim que Clara saiu, Bianca levantou-se também.

- Eu também posso ir "brincar"?

- Você não é uma criança - retruquei.

- Exatamente.

Ela saiu da sala antes que eu pudesse responder, deixando para trás o cheiro do cigarro que ainda grudava nela.

Renata suspirou, servindo mais vinho.

- Você poderia ser mais gentil.

- Eu não a convidei para morar aqui.

- Mas eu convidei.

Olhei para ela, tentando entender o que se escondia por trás daquela calma. Renata era assim - uma superfície lisa, sem ondulações. Nunca sabia o que havia por baixo.

- Por quê?

Ela encostou a taça nos lábios, hesitando pela primeira vez.

- Porque Eliza pediu.

Era sempre assim. Eliza pedia, Renata obedecia. Nunca questionei o que havia entre as duas irmãs, mas Bianca era a prova viva de que alguma coisa estava podre.

No corredor, ouvi risos abafados. Bianca e Clara estavam no chão da sala, com um baralho espalhado entre elas.

- Agora escolhe uma carta - Bianca dizia, os olhos brilhando com algo que parecia genuíno pela primeira vez.

Clara riu, pegando uma carta aleatória.

Eu fiquei parada ali, observando, até Bianca levantar os olhos e me encarar.

- Quer participar, doutora?

Havia um desafio naquela pergunta. Um teste.

- Não.

Ela sorriu, como se já soubesse que eu diria isso.

- Tudo bem. Algumas pessoas só sabem observar.

Aquela noite, algo perturbava minha mente, eu fiquei acordada, olhando para o teto.

Bianca estava certa.

Eu só observava.

Mas algo me dizia que, muito em breve, eu não teria mais escolha.

(...)

A luz do frigorífico do hospital ainda me cegava quando cheguei em casa. Fora um dia de doze horas, duas cirurgias de emergência e uma decisão que deixaria marcas - não no corpo do paciente, mas na minha consciência. Mal conseguia sentir minhas mãos, mas o cheiro que invadiu minhas narinas ao abrir a porta não era o habitual perfume caro de Renata ou o cheiro de brinquedo plástico de Clara. Era algo queimado, denso, como fumaça de cigarro misturada com gordura superaquecida.

Bianca estava na cozinha.

E a cozinha estava em guerra.

- Que diabos está acontecendo aqui?

Ela virou-se, uma mancha de óleo na camiseta branca, os cachos rebeldes presos num rabo de cavalo desleixado. Na frigideira, algo que poderia ter sido um bife em outra vida agora parecia um pedaço de carvão.

- Experiência culinária, doutora. - Ela sorriu, cutucando a massa negra com um garfo. - Falhou miseravelmente.

Fechei os olhos por um segundo, contando até três. Quando os abri, ela estava me olhando com aquela expressão - metade desafio, metade diversão.

- Onde está a empregada?

- Ah, a Dona Marta? - Bianca jogou a frigideira na pia com um estrondo. - Deu um ataque de nervos e foi embora.

- O que você fez?

- Eu? Nada. - Ela abriu a geladeira, pegando uma garrafa de água. - Só perguntei se ela estava roubando nossas coisas. Você sabe, aquela colher de prata que sumiu... o anel da tia Renata...

Meu estômago se contraiu.

- Você acusou a empregada de roubo?

- Relaxa. - Ela tomou um gole d'água, devagar. - Eu disse. Nunca que afirmei Ela que decidiu sair correndo.

Era impossível. Absolutamente impossível. Em menos de uma semana, aquela garota conseguira transformar a casa num campo minado.

- Você vai pedir desculpas a ela amanhã.

- Não vou. - Bianca encostou-se no balcão, os braços cruzados. - Mas posso reconsiderar se você me levar ao hospital amanhã.

O sangue correu mais frio nas minhas veias.

- Por que você quer ir ao hospital?

-Curiosidade profissional. - Ela fingiu examinar as unhas. - Quero ver onde a grande doutora brilha, já que aqui em casa você só sabe fazer cara de paisagem.

Eu deveria ter rido. Deveria ter ignorado. Mas então ela fez o movimento que mudou tudo - esticou o braço e pegou algo do balcão atrás de mim.

Minha caixa de remédios.

- Lorazepam. - Ela leu o rótulo em voz alta, como se estivesse numa aula. - "Tomar 1 comprimido ao deitar em casos de ansiedade extrema."

Tentei pegá-la de volta, mas ela afastou-se com a agilidade de um gato.

- Isso não é da sua conta, Bianca.

- Tudo nessa casa é da minha conta agora. - Ela balançou a caixa, os comprimidos chocalhando dentro. - Principalmente quando minha tia te olha como se você fosse um móvel defeituoso que ela não sabe como consertar.

Meu coração batia tão forte que eu temia que ela pudesse ouvir. Renata não sabia dos remédios. Ninguém sabia. Eu mantinha tudo escondido - assim como mantinha escondidas as noites em que acordava sufocando, as mãos trêmulas, o suor frio escorrendo pelas costas.

- O que você quer?

Bianca colocou a caixa no bolso do shorts.

- Já disse. Quero ir ao hospital. Quero ver você trabalhar. - Uma pausa. - E quero saber por que você precisa disso para dormir ao lado da mulher que supostamente ama.

O som da porta da garagem nos fez ambas nos virarmos. Renata estava chegando.

Bianca sorriu, a caixa desaparecendo no bolso de trás.

- Então, doutora? Amanhã às Cinco?

Não tive escolha.

- Cinco em ponto.

Quando Renata entrou, trazendo sacolas de lojas caras e um beijo mecânico para minha bochecha, Bianca já estava subindo as escadas, assobiando baixinho.

Naquela noite, enquanto Renata dormia, eu abri meu armário e verifiquei meus esconderijos - atrás das blusas de inverno, no fundo da gaveta de meias, dentro do estojo de maquiagem. Bianca tinha encontrado apenas um.

Mas era o suficiente.

Ela queria ir ao hospital? Teria seu desejo atendido.

Mas eu descobriria o que aquela garota estava realmente buscando - mesmo que fosse a última coisa que faria.

Narrador_Pov

Bianca fechou a porta do quarto de hóspedes com o pé, tirando a caixa de remédios do bolso. Ela a balançou por um momento, pensativa, antes de abrir a gaveta da mesinha de cabeceira e jogá-la lá dentro, ao lado de um maço de cigarros meio vazio e uma foto amassada de uma mulher loira - Eliza - com os olhos riscados por uma caneta vermelha.

No corredor, um barulho. Clara, em pé na porta, segurando seu coelho de pelúcia.

- Você tá brava? - a menina perguntou, sonhadora.

Bianca sorriu, fechando a gaveta com um empurrão.

- Nunca, princesa. Só jogando.

- Jogando o quê?

- Xadrez. - Ela pegou Clara no colo, fazendo a menina rir. - E a doutora nem sabe que o jogo já começou.

02

Vanessa_Pov

O caminho até o hospital foi silencioso.

Bianca sentou-se no banco do carona como se já pertencesse àquele espaço, com os pés descalços apoiados no painel - o que me irritou, mas eu estava cansada demais para discutir. O rádio tocava uma estação qualquer, e ela cantarolava baixo, distraída. Eu tentava manter o foco na estrada, mas sentia o olhar dela em mim, de tempos em tempos. Como se estudasse. Como se já soubesse mais do que deveria.

- Você sempre fica assim depois de dormir com a sua esposa? - ela soltou, como quem pergunta se o dia vai chover.

Não desviei os olhos da pista.

- Isso não é da sua conta.

- Mas é curioso. - Ela apoiou o queixo na mão, encarando a janela. - A tensão no seu maxilar, o jeito como segura o volante... dá pra ver que você não relaxa faz tempo.

- Você devia se concentrar em ser grata por estar viva e hospedada - murmurei.

Ela riu. Devagar. Aquela risada sem pressa que me dava nos nervos.

- Gratidão não é meu ponto forte, doutora.

Chegamos. Estacionei no setor dos médicos e, antes mesmo de tirar a chave da ignição, olhei pra ela.

- Hoje você vai ficar calada. Vai observar, como disse. E se fizer qualquer cena, te deixo esperando na recepção até o fim do plantão.

Ela ergueu as mãos, fingindo rendição.

- Prometo ser um fantasma. Mas... um fantasma observador.

Já na entrada, os residentes cruzavam o corredor às pressas. Plantão novo, cirurgias marcadas, confusões do dia começando. Bianca andava ao meu lado como quem passeia num museu. Olhava tudo. Absorvia tudo.

- É aqui que você se esconde de si mesma? - ela perguntou, baixinho. - Interessante.

Fingi que não ouvi.

Na sala dos residentes, deixei Bianca sentada com uma pasta de revistas velhas, e fui revisar prontuários. Mas não demorou para que ela conquistasse os olhares - até mesmo do doutor Paulo, que raramente sorria.

Ela falava baixo, mas havia algo nela que atraía. A linguagem corporal. O modo de encarar sem pudor. E eu... eu observava. Como ela tinha dito. Eu sempre observava.

Mais tarde, durante uma pausa, entrei na sala dos médicos e encontrei Bianca sentada na minha cadeira, com um jaleco jogado nos ombros e os pés sobre a mesa.

- Tá confortável? - perguntei, cruzando os braços.

- Experimentando. - Ela me lançou um olhar curioso. - Você fica sexy com isso. Jaleco e cara fechada. Imagina o estrago se sorrisse.

Fui até ela, retirei o jaleco sem tocar sua pele e pendurei no gancho.

- Isso aqui não é desfile. É um hospital.

- Você sempre foi assim? - ela perguntou. - Controladora, fechada... reprimida?

- Eu sou médica. Não atriz de novela.

- Pena. Você daria uma vilã excelente.

Aproximei o rosto, mais do que deveria.

- Você está se divertindo com isso?

Ela manteve o olhar firme, quase desafiador.

- Estou jogando.

Dei um passo atrás, sentindo o coração acelerar. O cheiro dela. O jeito como falava. A calma de quem sabia exatamente onde estava pisando.

(...)

No fim do dia, quando saímos, ela caminhava como se tivesse vencido algo. Como se tivesse arrancado mais uma peça de mim - mesmo que eu não soubesse qual.

- Foi divertido. - Ela disse, encostando-se ao carro. - Quase senti vontade de estudar Medicina.

- Você não sente vontade de nada, Bianca. Só de destruir.

- Que coincidência. - Ela abriu a porta e sorriu. - Você também.

(...)

Quando chegamos em casa, Renata estava sentada no sofá da sala, lendo um livro enquanto segurava uma taça de vinho pela metade. O cabelo preso revelava o pescoço elegante que sempre me atraiu, mas que agora apenas uma lembrança distante, quase inalcançável.

- Finalmente chegaram - ela disse, fechando o livro com um estalo suave e levantando-se com aquela elegância habitual. - Achei que você tivesse sequestrado a Bianca no hospital.

Bianca sorriu discretamente, lançando-me um olhar cúmplice que me fez apertar os lábios em irritação.

Antes que eu pudesse responder, passos apressados ecoaram pelo corredor. Clara surgiu correndo, com os cabelos soltos ao vento, o rosto iluminado por um sorriso enorme. Atirou-se nos meus braços sem hesitar.

- Mamãe! Você voltou cedo hoje!

O calor daquele abraço me acalmou, suavizando brevemente a tensão que havia crescido em mim ao longo do dia.

- Sim, voltei mais cedo hoje, meu amor. Estava com saudade.

- Eu também! - Clara me apertou com força, depois levantou os olhos curiosos para Bianca, que observava a cena como quem assiste a um filme interessante. - Você gostou do hospital?

Bianca agachou-se para ficar na altura da menina, com uma expressão suave e quase maternal que me surpreendeu.

- Achei interessante. Sua mãe é muito boa no que faz. Você deveria se orgulhar dela, princesa.

- Eu tenho orgulho! - Clara respondeu imediatamente, as bochechas rosadas com alegria genuína.

Algo apertou dentro de mim ao ver a facilidade com que Bianca se integrava à minha filha, enquanto Renata observava tudo em silêncio, bebericando o vinho com uma expressão indecifrável.

- Clara, querida - Renata interrompeu suavemente. - Que tal ir brincar um pouco no quintal? A mamãe e eu precisam conversar sobre coisas chatas.

Clara assentiu, saltando do meu colo e correndo pela porta da cozinha até o gramado lá fora. Bianca se levantou lentamente, cruzando os braços e observando com interesse, esperando a conversa que já antecipava.

Renata pousou a taça na mesa lateral e respirou fundo antes de falar.

- Marta ligou chorando hoje cedo. Disse que não pode voltar a trabalhar enquanto Bianca estiver aqui. Algo sobre ter sido acusada injustamente de roubo?

Senti o rosto queimar em irritação, lançando um olhar duro para Bianca, que não se abalou. Pelo contrário, sustentou meu olhar com uma calma quase insolente.

- Foi um mal-entendido - respondi, esforçando-me para controlar o tom. - Bianca já sabe que precisa pedir desculpas.

- Já sabe? - Renata arqueou uma sobrancelha delicada, lançando um olhar questionador para a sobrinha.

- Ela acha que eu sei - Bianca respondeu com suavidade venenosa, dirigindo-se diretamente a Renata. - Mas pedir desculpas não é algo que eu faça facilmente, tia.

Renata suspirou, exasperada, e me encarou como se eu tivesse responsabilidade sobre tudo aquilo.

- Vanessa, nós precisamos da Marta. Não tenho tempo nem vontade de entrevistar outras empregadas agora. Resolva isso.

O tom autoritário da minha esposa fez com que algo se contorcesse dentro de mim, mas preferi não contestar. Estava exausta demais para mais uma discussão.

- Bianca, você vai resolver isso amanhã mesmo - falei com firmeza, encarando-a diretamente. - Sem mais problemas.

Ela inclinou levemente a cabeça para o lado, sustentando meu olhar, a boca se curvando num sorriso provocante que dizia muito mais do que palavras.

- Claro, doutora. O que você mandar.

Renata pareceu satisfeita com a resposta, mesmo que forçada. Ela pegou o livro e a taça e subiu as escadas lentamente, sem mais comentários, deixando para trás apenas o eco de seus saltos no piso de madeira.

Assim que Renata desapareceu, me virei para Bianca, sentindo a raiva subir lentamente pela garganta.

- O que você pretende com isso? Acha engraçado causar problemas aqui dentro?

- Engraçado não - Bianca respondeu baixinho, dando um passo mais perto de mim, os olhos escuros fixos nos meus. - Necessário.

- Necessário para quê? - perguntei, a voz vacilando ligeiramente, percebendo tarde demais o quanto havia cedido espaço a ela.

Bianca inclinou-se um pouco mais, sussurrando com suavidade:

- Para descobrir quem vocês realmente são quando tudo sai do controle.

Dei um passo para trás, afastando-me da proximidade perigosa. Meu coração disparava como se quisesse fugir de dentro do meu peito.

- Você está brincando com fogo, Bianca.

Ela riu baixinho, os olhos ainda presos nos meus enquanto falava, quase num desafio:

- Não tenho medo de me queimar. E você?

Um silêncio pesado se instalou entre nós, quebrado apenas pelos risos distantes de Clara no jardim.

Bianca afastou-se devagar, seguindo na direção do quintal. Da janela, vi quando ela se aproximou de Clara, sentando-se na grama ao lado dela, rindo e brincando com uma facilidade assustadora.

Naquele momento, ficou claro para mim o quanto Bianca era perigosa. Não apenas pela insolência, nem pela capacidade de virar minha vida de cabeça para baixo, mas pela facilidade com que conseguia me desarmar, penetrando em minha mente, meu lar, e na vida daqueles que eu mais amava.

E o pior de tudo era que eu não fazia ideia de como impedi-la. Porque, secretamente, alguma parte obscura de mim começava a gostar daquela sensação.

E isso, talvez mais do que tudo, fosse a parte mais perigosa daquele jogo que eu sequer sabia que estava jogando.

(...)

Depois do jantar, tomei banho com a água quase escaldante, na tentativa inútil de lavar o desconforto que Bianca havia plantado em mim ao longo daquele dia interminável. Vesti um roupão, prendi os cabelos num coque bagunçado e desci ao escritório. Precisava me reconectar comigo mesma, encontrar meu eixo novamente entre prontuários e casos médicos.

Era meu espaço, minha zona de segurança. Ou costumava ser.

Espalhei alguns documentos sobre a mesa e coloquei os óculos, ignorando o cansaço que pesava sobre meus ombros. Eu precisava focar. Mas concentração era um luxo que eu já não tinha mais desde que aquela garota entrou pela porta da minha casa.

Ouvi o leve ranger da porta atrás de mim antes mesmo de vê-la. Não precisei me virar para saber quem era.

- Vai fingir que não me ouviu entrar? - a voz dela veio tranquila, confiante, preenchendo todo o ambiente sem esforço.

Virei-me lentamente, tentando esconder o quanto aquela presença me abalava. Bianca estava parada no meio do escritório, pés descalços sobre o tapete felpudo. A camiseta, um pouco grande demais, escorregava por um dos ombros, expondo parte da sua pele, provocando minha atenção contra minha vontade.

- Você nunca bate antes de entrar? - perguntei, tentando manter a voz firme.

- Eu bato quando acho que preciso de permissão - ela disse, caminhando lentamente pelo espaço, como se mapeasse meu território. - Mas você nunca precisou que alguém pedisse permissão pra te desarmar, precisou?

Engoli em seco, sentindo algo pesado descer pela garganta.

- Não estou no clima para seus jogos hoje, Bianca.

Ela sorriu, dando mais um passo na minha direção, sem pressa.

- Que pena. Porque você joga muito bem quando acha que não está jogando.

A distância entre nós diminuiu ainda mais. Bianca agora estava perto o suficiente para que eu sentisse o perfume suave, envolvente, misturado àquele toque proibido do cigarro.

- Por que você está fazendo isso? - perguntei, odiando como minha voz saiu mais baixa, quase rouca.

Bianca inclinou a cabeça, me analisando como quem decifra um enigma simples demais.

- Você sabe por quê. Eu vejo na forma que você me olha quando pensa que ninguém está vendo. No jeito que prende a respiração quando chego perto demais. - Ela ergueu uma mão, os dedos quase roçando minha pele, sem tocar realmente. - Você sente falta disso. Falta de ser desejada sem ter que pedir. Sem precisar implorar.

Minha respiração acelerou. O calor dela se infiltrava sob minha pele, desorganizando cada pensamento racional.

- Isso é um erro - falei baixinho, quase para mim mesma.

- Mas você não se importa. Você precisa disso mais do que quer admitir. - A voz dela era um sussurro perigoso, cheia de certezas que eu tentava desesperadamente negar.

Ela encurtou mais a distância, o olhar preso no meu. Sua mão finalmente tocou meu rosto, de leve, quase um carinho que deixou minha pele em chamas.

- Bianca... - meu protesto saiu fraco, quase implorando por mais.

Ela sorriu, absolutamente consciente do efeito devastador que estava tendo sobre mim. A mão deslizou lentamente, explorando o contorno do meu queixo até a linha sensível do pescoço, pousando sobre meu peito, exatamente sobre o ponto acelerado do coração.

- Está vendo? Seu corpo não mente, doutora. - Ela falou com a confiança de quem já venceu. - Você pode mentir para Renata, pode mentir para você mesma... mas não para mim.

Eu não conseguia me mover. Não conseguia respirar direito. Bianca dominava completamente aquele instante, aquele espaço, minha mente e meu corpo. Eu estava paralisada por um misto de medo, desejo e culpa.

- Boa noite, Vanessa. - Ela retirou a mão lentamente, permitindo que a ausência do toque fosse quase dolorosa. Caminhou até a porta, lançando um último olhar antes de sair. - Não tente fingir que nada disso aconteceu. Não funciona mais.

Quando ela saiu, levei alguns segundos para recuperar o controle mínimo sobre mim mesma. Sentei, trêmula, respirando fundo, sentindo ainda a eletricidade deixada pelo toque dela percorrer meu corpo inteiro.

Bianca tinha razão.

Eu não podia mais fingir.

03

Vanessa_Pov

Acordei antes do despertador, o que não era comum aos sábados. Talvez porque, desde que Bianca chegara, nada mais fosse comum naquela casa. Olhei para o teto, sentindo o coração bater num ritmo estranho, desconfortável, como se meu corpo ainda estivesse processando o toque dela na noite anterior.

Respirei fundo e me obriguei a levantar. Hoje eu não ia ao hospital, o que significava ter que encarar Bianca por mais tempo do que gostaria. Vesti uma roupa leve, prendi o cabelo de qualquer jeito e desci as escadas em silêncio, determinada a recuperar algum domínio sobre mim mesma e a minha casa.

A cozinha estava surpreendentemente calma. Renata bebia café sentada à mesa, usando um vestido florido, cabelos soltos e um sorriso incomum nos lábios. Me aproximei, cautelosa.

— Bom dia — ela disse com uma suavidade que me deixou desconcertada. Levantou-se e beijou-me no rosto, demorando mais do que o habitual. — Dormiu bem?

— Sim… e você?

— Muito bem. Acordei pensando que seria ótimo passarmos o dia na piscina hoje. O tempo está perfeito, e Clara adoraria. Acho que precisamos de um momento juntas, em família.

Olhei para ela, desconfiada daquela mudança repentina de atitude. Mas antes que pudesse responder, Bianca entrou na cozinha, com shorts jeans curto e camiseta clara. Os cachos claros caíam sobre os ombros, ainda úmidos do banho. O sorriso inocente era quase convincente.

— Bom dia, tia. Bom dia, doutora. — disse educadamente, sentando-se à mesa. — O cheiro do café tá ótimo hoje.

Renata sorriu carinhosa para a sobrinha, colocando uma xícara cheia para ela.

— Bom dia, querida. Dormiu bem?

— Perfeitamente — Bianca respondeu, sem lançar sequer um olhar em minha direção. Como se absolutamente nada tivesse acontecido entre nós ontem à noite.

Senti meu corpo inteiro reagir à presença dela, lembrando claramente o calor de seu toque. Raiva, desejo e frustração se misturaram numa confusão irritante. Precisei desviar o olhar para a janela, fingindo interesse no jardim, para disfarçar minha perturbação.

— Acho uma ótima ideia — respondi por fim, recuperando a voz. — Clara vai adorar mesmo. Podemos aproveitar e relaxar um pouco.

Bianca me olhou brevemente, um sorriso quase imperceptível desenhado no canto dos lábios, como se soubesse exatamente o que significava aquele meu fingido autocontrole.

Nesse momento, Clara apareceu, correndo animada para abraçar Bianca primeiro, antes de vir até mim. Meu coração apertou ao notar o carinho genuíno que havia se formado entre as duas em tão pouco tempo.

— A gente vai brincar na piscina hoje, mamãe?

— Vai sim, amor. Vamos todos juntos.

Clara deu um gritinho animado, puxando a mão de Bianca com entusiasmo infantil.

— Você sabe nadar, Bia? Vai entrar comigo?

— Claro, princesa. Vou cuidar de você na água.

Olhei aquela cena com desconforto, percebendo que Bianca não apenas invadira meu espaço emocional, mas também o de Clara. Aquilo deveria me irritar profundamente, mas ao invés disso, senti algo ainda pior: um leve aperto no peito.

Renata interrompeu o silêncio que se formou, acariciando meu ombro gentilmente, de forma inesperada. O toque suave dela, algo tão raro ultimamente, fez com que Bianca desviasse rapidamente o olhar, incomodada, ainda que disfarçasse com perfeição.

— Vai ser um ótimo dia — Renata garantiu, olhando diretamente nos meus olhos com uma ternura que parecia esquecida. — Nós merecemos isso.

Bianca olhou para a xícara de café à sua frente, claramente incomodada, mas recuperou rapidamente a postura tranquila, voltando a atenção para Clara e ignorando solenemente a proximidade entre Renata e eu.

A tensão silenciosa daquela cozinha era palpável. Bianca tinha acabado de mostrar que era perfeitamente capaz de ser duas pessoas diferentes: uma sobrinha inocente e perfeita diante de Renata, e a própria tentação disfarçada quando ninguém estivesse olhando.

Mas hoje eu não cederia.

Hoje, eu retomaria o controle.

Ou ao menos era o que eu tentava desesperadamente acreditar.

(...)

A manhã avançou lentamente, sob o sol quente que esquentava o gramado e iluminava a água azul da piscina. Deitada numa espreguiçadeira, observava Clara brincar animada com Bianca, enquanto Renata lia tranquilamente ao meu lado.

Era quase surreal como a cena parecia comum, como se não houvesse algo estranho pairando no ar. Bianca parecia absolutamente confortável ali, como se aquela casa e aquela família sempre tivessem sido dela. Clara estava radiante, rindo enquanto Bianca a girava na água, os cachos dourados dela brilhando ao sol.

Tentei focar na minha filha, em como ela estava feliz naquele momento, mas meus olhos inevitavelmente voltavam para Bianca, para o jeito como seu corpo se movia na água com facilidade quase provocativa.

— Você está pensativa hoje — Renata murmurou suavemente, pousando o livro sobre a mesa ao lado e tocando minha mão com delicadeza inesperada. — Está tudo bem, amor?

Olhei para ela, surpresa com aquela demonstração repentina de carinho.

— Sim. Só pensando em algumas coisas do hospital — menti parcialmente.

Renata sorriu, um sorriso doce e raro que há muito eu não via. Ela se inclinou e beijou-me suavemente nos lábios, demorando-se o suficiente para que o gesto se tornasse significativo. Senti um arrepio leve percorrer minha espinha; fazia tempo demais desde que havíamos compartilhado qualquer tipo de intimidade real.

Quando ela se afastou, meus olhos imediatamente buscaram Bianca. Ela nos observava da piscina, segurando Clara contra o peito enquanto a menina brincava de bater os pés na água. Por uma fração de segundo, a expressão dela se fechou numa mistura de irritação e algo mais profundo, talvez possessividade. Mas tão rapidamente quanto surgiu, desapareceu atrás de um sorriso inocente.

Bianca desviou os olhos, voltando a atenção exclusivamente para Clara, enquanto meu coração acelerava sem motivo aparente.

— Você acha mesmo que Bianca vai pedir desculpas para Marta? — Renata perguntou, distraída, ajeitando-se novamente na espreguiçadeira.

— Ela precisa — respondi, tentando voltar ao controle daquela conversa. — Não podemos perder Marta por algo tão infantil.

— Não acho que Bianca seja infantil. Ela só é... impulsiva. — Renata sorriu levemente, parecendo admirar a sobrinha à distância. — Você já percebeu o quanto Clara gosta dela?

— Percebi. Só não sei se isso é algo bom — admiti, franzindo o cenho ao observar como Clara agora ria com Bianca, como se fossem melhores amigas há anos.

— Não seja tão dura, Vanessa. Bianca pode ser exatamente o que essa casa precisa agora. Um pouco de juventude, vida nova...

— Ou caos — completei, secamente.

Renata riu, como se eu tivesse feito uma piada engraçada, voltando sua atenção para o livro.

Alguns minutos depois, Bianca saiu da piscina carregando Clara nos braços, enrolada numa toalha grande. Ela se aproximou de nós com aquele sorriso inocente que agora eu sabia que era perfeitamente falso.

— Clara precisa de água. Vou pegar pra ela — anunciou docemente, colocando Clara cuidadosamente na cadeira ao meu lado.

Antes que eu pudesse dizer algo, Bianca caminhou até a cozinha, deixando-me inquieta. Era impossível relaxar perto dela. Ela sempre parecia estar um passo à frente.

— Mamãe, Bianca é incrível! — Clara falou empolgada, sacudindo as perninhas e sorrindo.

— É, filha, ela realmente sabe como conquistar as pessoas — respondi, mais para mim do que para Clara.

Quando levantei o olhar, Bianca estava de volta, entregando a garrafa de água para Clara com delicadeza exagerada. Ela aproveitou para se inclinar perto de mim, sob o pretexto de ajeitar algo na cadeira da menina, e falou baixo o suficiente para que apenas eu ouvisse:

— Fica linda quando está tentando me ignorar, doutora. Quase acredito.

Ela se afastou em seguida, sentando-se ao lado de Renata e puxando conversa sobre algo trivial, como se nada tivesse acabado de acontecer.

Senti o rosto esquentar, o coração bater mais rápido do que deveria. Era ridículo como uma garota conseguia me desestabilizar tão facilmente.

Eu precisava reagir, precisava voltar ao controle antes que fosse tarde demais. Só que, no fundo, sabia que já estava perigosamente próxima do ponto sem volta.

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