05

Vanessa_Pov

A manhã já estava quase virando tarde. Eu tinha acabado de lavar as mãos depois de dar alta pra um paciente. Faltavam só mais uns vinte minutos pra terminar meu plantão. Eu tava contando os minutos, de verdade. Queria ir pra casa, tomar um banho quente, comer alguma coisa decente.

Aí meu celular tocou, olhei o visor. Era da escola de Clara. Me preocupei, eles nunca ligaram para mim. Atendi.

- Alô?

- Doutora Vanessa? Aqui é da escola da Clara. É a Amanda, da coordenação.

- O que aconteceu? - perguntei já de cara, o coração disparando.

- A Clara tá bem, tá? Não é nada físico. Mas teve um... probleminha hoje na aula de artes. Tentamos falar com a Renata, mas ela não atendeu. Ligamos em casa também, ninguém atendeu. Por isso estamos ligando pra você.

Fiquei quieta por dois segundos, tentando entender.

- Que tipo de problema?

- A gente queria conversar com você pessoalmente. Acha que pode vir?

Olhei pro relógio. Faltava pouco pra acabar meu plantão, e já tava tudo sob controle.

- Tô indo agora. Chego aí em quinze minutos.

- Ótimo. Estamos aguardando.

Desliguei.

(...)

Cheguei na escola uns vinte minutos depois da ligação. Ainda era hora do almoço, e os corredores estavam bem mais silenciosos do que de costume. Passei pela portaria, dei meu nome, e logo uma funcionária me levou até a coordenação.

No caminho, vi umas crianças brincando no pátio. Ri baixo quando ouvi um menino gritando que ia virar super-herói. Mas meu sorriso durou pouco. O coração já tava apertado de novo.

A coordenadora Amanda me recebeu com um sorriso gentil, meio sem jeito.

- Oi, doutora Vanessa. Desculpa te chamar assim em cima da hora, mas achamos melhor ter essa conversa pessoalmente.

- Tudo bem. Aconteceu alguma coisa com a Clara?

- Ela tá bem. Tá almoçando agora com as outras crianças. A gente só ficou preocupada com um desenho que ela fez na aula de artes hoje de manhã.

- Um desenho? - repeti, tentando entender o que podia ter causado tanto alarde.

Amanda me convidou pra sentar numa sala pequena, com uma mesa redonda e algumas cadeiras coloridas. Um ventilador girava no canto, fazendo aquele barulhinho de hélice velha.

Ela puxou uma pasta da gaveta e colocou uma folha na minha frente.

- Foi isso aqui que ela desenhou.

Olhei a folha devagar.

Era uma casa escura, com o fundo todo preto. As janelas riscadas com giz vermelho, bem forte. No chão, tinha o que parecia ser uma pessoa caída, com um "X" enorme no peito. No canto da folha, uma figura de mulher com uma faca na mão. Outra pessoa, com os olhos riscados, segurando algo que parecia um cigarro. E o mais estranho de tudo: essa figura fazia um gesto de "shhh" com o dedo na boca.

- Meu Deus... - murmurei sem perceber.

- Pois é - Amanda disse, com calma. - A professora achou estranho uma criança tão pequena desenhar isso. A Clara sempre foi muito doce, muito tranquila. Mas esse desenho... chamou atenção.

- Ela disse alguma coisa quando entregou?

- Disse que era a casa dela, mas que estava "tudo escuro por dentro". E que as pessoas de dentro "tinham segredos". Usou essa palavra mesmo: segredo.

Eu fiquei em silêncio, encarando aquele desenho como se ele gritasse.

- A gente sabe que às vezes as crianças pegam coisas de filmes, de conversas... Mas achamos melhor avisar. Pode ser só imaginação, claro, mas também pode ser um sinal de que ela tá absorvendo algo que não entende.

- Eu entendo... - falei, passando a mão no rosto. - Eu agradeço de verdade vocês me chamarem.

Amanda respirou fundo, cruzando as mãos sobre a mesa.

- Doutora Vanessa, a gente sabe que a Clara tá bem cuidada, que tem amor em casa. Mas às vezes, mesmo assim, elas percebem coisas. E o jeito que ela se expressa... bom, é esse. O desenho pode ser o jeito dela dizer que algo tá estranho pra ela.

Assenti. A garganta tava fechada. Aquilo me acertou fundo. Porque eu sabia. Clara era sensível. Percebia tudo. E ultimamente, a casa tava cheia de... ruídos.

- Posso falar com ela? - perguntei.

- Claro. Eu mesma vou te levar até a sala.

Me levantei, com a folha ainda na mão. Dobrei e guardei na bolsa. Não queria que a Clara visse de novo.

Enquanto andávamos até a salinha onde as crianças almoçavam, senti um aperto no peito que não dava trégua. A imagem do desenho rodava na minha cabeça como um filme ruim.

A escola era simples, colorida, cheia de desenhos na parede. Mas naquele momento, tudo me parecia cinza.

Quando a vi, sentadinha numa mesinha, mexendo no prato com um garfinho rosa, meu coração quase quebrou.

Ela me viu e sorriu largo.

- Mamãe!

Correu até mim com os bracinhos abertos. Me agachei pra receber o abraço e segurei firme.

- Tá tudo bem, filha? - perguntei, com a voz meio rouca.

- Tá! A comida aqui tá gostosa hoje. Tia Amanda que te chamou?

- Foi, sim. Ela queria conversar comigo um pouquinho.

- Eu fiz um desenho feio, né? A professora falou que era estranho...

- A gente conversa sobre isso depois, tá bem? Agora você termina de comer. Depois a mamãe te leva pra casa.

Ela assentiu, tranquila, e voltou pro lugar.

Amanda me olhou, séria, mas com carinho.

- Se precisar de ajuda... se quiser conversar com alguém, temos a psicóloga, qualquer coisa... A gente tá aqui.

- Obrigada. De verdade.

Fiquei ali mais alguns minutos observando Clara. Aquela criança pequena, com seus quatro anos de mundo, me mostrando de um jeito simples que o silêncio dentro de casa já era barulho demais.

(...)

Cheguei em casa com a Clara pouco depois das três. Abri a porta devagar, já imaginando a pergunta que viria.

- Dona Vanessa? - A voz da Joana, a babá, veio da sala. Ela segurava uma cesta de roupa dobrada. - Que susto! A senhora nunca chega essa hora.

- Pois é, Joana. A escola ligou. Teve um imprevisto, eu precisei buscar a Clara mais cedo.

Clara soltou minha mão e sorriu pra babá.

- Posso brincar lá em cima, mamãe?

- Pode, meu amor. Vai lavar as mãos e sobe. Já já eu converso com você.

Ela disparou escada acima, igual um furacão.

Joana colocou a cesta na cadeira.

- A Marta foi ao mercado comprar ingredientes pro jantar. Eu aproveitei e saí rapidinho também. Comprei umas cartolinas, cola, essas coisinhas do trabalho de artes da Clara.

- Sem problema. - Tirei o casaco, pendurei na cadeira. - Você sabe se a Renata chegou?

- Ela saiu bem cedo, quase junto comigo. Não falou pra onde ia. Parecia apressada.

Assenti, tentando esconder a pontada de preocupação.

- Tudo bem, Joana. Obrigada.

Ela notou meu cansaço.

- Aconteceu algo sério na escola?

Abri a bolsa, tirei o desenho da Clara, e entreguei para ela.

Joana olhou, levantou as sobrancelhas.

- Nossa... que desenho estranho.

- A professora se assustou. Vou ser sincera, eu também. - Respirei fundo. - Você tem notado algo diferente na Clara? Pesadelo, medo de ficar sozinha, qualquer coisa?

- Não, doutora. Ela tá normalzinha. Come bem, brinca, dorme bem, vive alegre. Deve ter sido sonho. Às vezes a cabeça mistura as coisas, né? Criança inventa.

Passei o dedo na borda do papel.

- Eu fico pensando se não foi a Bianca que mostrou algum desenho dela , ou falou algo. Talvez sem querer assustar, mas...

Joana deu de ombros.

- Pode ser. Aquele quarto vive cheio de folha rabiscada. Mas a Clara não falou nada de medo. Ao contrário: ela anda feliz de ter a Bia por perto. Ela gosta muito dela.

Guardei o papel de novo.

- Obrigada, Joana. Vou subir e conversar um pouquinho com Clara.

- Tudo bem. Qualquer coisa, tô aqui.

Subi as escadas em passos lentos. Bati na porta do quarto dela.

- Entra!

Ela estava sentada no tapete, cercada de bonecas. O sol da tarde entrava pela janela, pintando tudo de laranja.

- Viu como lavei as mãos direitinho? - mostrou as palmas limpas.

Sorri e sentei no chão ao lado dela.

- Viu, sim. Podemos conversar rapidinho sobre o desenho de hoje?

Clara mordeu o lábio.

- A professora não gostou...

- Ela só ficou preocupada. Queria entender de onde veio tanta coisa escura. Você tem estado com medo?

Ela balançou a cabeça.

- Não. Eu só quis desenhar igual à Bia. Ontem ela tava fazendo um desenho de uma casa toda sombria. Falei que parecia filme de monstro. Ela riu e disse que às vezes a arte precisa de susto. Então eu fiz um também.

Meu peito relaxou um pouco. Mas ao mesmo tempo preocupa, Bianca era uma pessoa estranha. E eu não queria minha filha se espelhando a ela.

- E aquela moça com faca? Foi ideia sua?

- É. Achei que ficava mais legal. Mas não é de verdade, mamãe. É só desenho. Não tô com medo.

Puxei a filha pro meu colo.

- Entendi. Você pode desenhar o que quiser, mas se alguma coisa te deixar assustada, me conta, tá? Ou fala com a mamãe Renata. Ou com a Joana.

- Tá bom. - Ela me abraçou forte. - Desculpa ter deixado você preocupada.

- Não precisa pedir desculpa. Eu amo quando você desenha. Quero guardar todos. Só quero ter certeza de que você tá bem.

Clara assentiu, encostando a cabeça no meu ombro. Ficamos assim um tempo, ouvindo o barulho distante da máquina de lavar no andar de baixo.

Afaguei seu cabelo.

- Vamos descer? A mamãe faz um chocolate quente pra gente.

Os olhos dela brilharam.

- Com marshmallow?

- Com marshmallow.

Ela saiu correndo na frente, feliz de novo. Eu fiquei um segundo na porta, olhando o quarto claro, tentando gravar aquela paz.

Depois respirei fundo e desci atrás dela.

Ainda precisaria falar com Renata. Ainda teria que encarar Bianca.

Mas, por enquanto, o chocolate quente era o suficiente.

(...)

— Vamos, preguiçosa... hora do banho.

Clara se encolheu mais ainda no sofá, abraçando a almofada.

— Ahhh, não... mais cinco minutos, mamãe.

— Cinco minutos nada. Já passou da hora. Você tá toda grudenta de chocolate — falei, tentando segurar o riso. — Vamos, porquinha!

Ela virou a cabeça devagar, fez aquela cara ofendida que só ela sabe fazer e respondeu com a voz emburrada:

— Eu não sou porquinha! Eu sou princesa.

Cruzei os braços, encarando aquela miniatura teimosa com pose de realeza.

— Ah é? E as princesas tomam banho, sabia?

— Mas eu sou uma princesa cansada — rebateu, deitando de lado, cheia de drama. — As princesas também tiram cochilo no sofá.

Me sentei ao lado dela e passei a mão no cabelo bagunçado.

— A gente já viu dois filmes e meio desenho, você riu, comeu pipoca, tomou chocolate com marshmallow. Tá cheirando a tudo menos sabonete.

Ela riu, mas manteve a teimosia.

— Mas eu tô com preguiça...

— Clara... banho agora ou vou mandar o dragão buscar você.

— Dragão?

— É. Um dragão fedorento que vem atrás de meninas que ficam com preguiça de tomar banho. Ele tem um bafo de queijo vencido e cabelo de espaguete.

Clara se encolheu rindo, escondendo o rosto na almofada.

— Eca! Tá bom, tá bom... Mas você me leva no colo?

— No colo de novo? Minha coluna tá pedindo arrego, filha. Você tá pesadinha já...

— Mas eu gosto de ir no colo. Só mais essa vez, mamãe. Por favor...

Fingi pensar, fazendo cara séria.

— Hummm... tá bom. Só porque hoje foi um dia especial. E porque você é a princesa da casa.

Ela deu um gritinho animado e pulou no meu colo, toda mole.

— Mamãe, eu virei uma pescadinha! — disse rindo, se jogando de qualquer jeito.

— Uma pescadinha molenga! — respondi, levantando com ela nos braços. — Agora vamos lavar essas escamas antes que você vire um peixe de verdade.

Ela gargalhou.

— Eu sou peixe de chocolate!

Subi as escadas com ela rindo no meu colo, o coração leve. Aqueles momentos simples, só nós duas, valiam mais que qualquer coisa.

Chegamos no banheiro rindo, e ela já foi tirando a blusa com a pressa de quem vai pra piscina.

— Vai ser banho de princesa ou banho de peixe hoje? — perguntei, abrindo o chuveiro e deixando a água cair até ficar morninha.

— Banho de princesa sereia! — ela respondeu, pulando no tapetinho do chão. — Porque eu sou metade gente, metade peixe.

— Então vamos lavar essa caldinha toda cheia de chocolate — brinquei, ajudando a tirar o shortinho e a calcinha.

Ela entrou no box fazendo pose de rainha do oceano, segurando o cabelo pra cima.

— Pode molhar, sua alteza?

— Pode. Mas cuidado com os olhos, tá, mamãe?

— Sempre, meu amor.

Molhei o corpo dela devagar, com carinho. Peguei o sabonete líquido de camomila, aquele que ela mesma escolheu no mercado porque vinha com uma sereia no rótulo.

— Hummm... cheirinho de princesa — falei, passando na barriguinha e fazendo cócegas de leve.

Ela se contorceu de tanto rir.

— Para, mamãe! Cosquinha não vale!

— Ué, mas quem mandou ter umbigo de risada?

Terminei de ensaboar e enxaguar, depois lavei o cabelo com o shampoo que ela dizia ser "mágico" porque fazia bolhas.

— Fecha os olhinhos agora... isso, assim mesmo. Prontinha! Agora vem a parte mais difícil...

— Qual?

— Tirar essa sereia fujona do banho.

Ela deu um gritinho e tentou escapar, mas peguei a toalha rapidinho.

— Peguei! — enrolei ela feito um burrito e levantei no colo. — Agora vamos escolher o pijama mais bonito desse reino encantado.

— Unicórnio, mamãe! — disse com os olhos brilhando. — O de unicórnio rosa!

— Aham... o seu preferido. Sabia!

Levei ela no colo até o quarto, com aquele cheirinho bom de banho recém-tomado grudado em mim. E no meio do corredor, ela me deu um beijo na bochecha, do nada.

— Eu te amo, mamãe.

Meu peito encheu de um calor gostoso.

— Também te amo, minha princesa sereia de unicórnio.

Mais populares

Comments

Marri Santis

Marri Santis

que fofinhas 🫶

2025-09-18

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!