02

Vanessa_Pov

O caminho até o hospital foi silencioso.

Bianca sentou-se no banco do carona como se já pertencesse àquele espaço, com os pés descalços apoiados no painel - o que me irritou, mas eu estava cansada demais para discutir. O rádio tocava uma estação qualquer, e ela cantarolava baixo, distraída. Eu tentava manter o foco na estrada, mas sentia o olhar dela em mim, de tempos em tempos. Como se estudasse. Como se já soubesse mais do que deveria.

- Você sempre fica assim depois de dormir com a sua esposa? - ela soltou, como quem pergunta se o dia vai chover.

Não desviei os olhos da pista.

- Isso não é da sua conta.

- Mas é curioso. - Ela apoiou o queixo na mão, encarando a janela. - A tensão no seu maxilar, o jeito como segura o volante... dá pra ver que você não relaxa faz tempo.

- Você devia se concentrar em ser grata por estar viva e hospedada - murmurei.

Ela riu. Devagar. Aquela risada sem pressa que me dava nos nervos.

- Gratidão não é meu ponto forte, doutora.

Chegamos. Estacionei no setor dos médicos e, antes mesmo de tirar a chave da ignição, olhei pra ela.

- Hoje você vai ficar calada. Vai observar, como disse. E se fizer qualquer cena, te deixo esperando na recepção até o fim do plantão.

Ela ergueu as mãos, fingindo rendição.

- Prometo ser um fantasma. Mas... um fantasma observador.

Já na entrada, os residentes cruzavam o corredor às pressas. Plantão novo, cirurgias marcadas, confusões do dia começando. Bianca andava ao meu lado como quem passeia num museu. Olhava tudo. Absorvia tudo.

- É aqui que você se esconde de si mesma? - ela perguntou, baixinho. - Interessante.

Fingi que não ouvi.

Na sala dos residentes, deixei Bianca sentada com uma pasta de revistas velhas, e fui revisar prontuários. Mas não demorou para que ela conquistasse os olhares - até mesmo do doutor Paulo, que raramente sorria.

Ela falava baixo, mas havia algo nela que atraía. A linguagem corporal. O modo de encarar sem pudor. E eu... eu observava. Como ela tinha dito. Eu sempre observava.

Mais tarde, durante uma pausa, entrei na sala dos médicos e encontrei Bianca sentada na minha cadeira, com um jaleco jogado nos ombros e os pés sobre a mesa.

- Tá confortável? - perguntei, cruzando os braços.

- Experimentando. - Ela me lançou um olhar curioso. - Você fica sexy com isso. Jaleco e cara fechada. Imagina o estrago se sorrisse.

Fui até ela, retirei o jaleco sem tocar sua pele e pendurei no gancho.

- Isso aqui não é desfile. É um hospital.

- Você sempre foi assim? - ela perguntou. - Controladora, fechada... reprimida?

- Eu sou médica. Não atriz de novela.

- Pena. Você daria uma vilã excelente.

Aproximei o rosto, mais do que deveria.

- Você está se divertindo com isso?

Ela manteve o olhar firme, quase desafiador.

- Estou jogando.

Dei um passo atrás, sentindo o coração acelerar. O cheiro dela. O jeito como falava. A calma de quem sabia exatamente onde estava pisando.

(...)

No fim do dia, quando saímos, ela caminhava como se tivesse vencido algo. Como se tivesse arrancado mais uma peça de mim - mesmo que eu não soubesse qual.

- Foi divertido. - Ela disse, encostando-se ao carro. - Quase senti vontade de estudar Medicina.

- Você não sente vontade de nada, Bianca. Só de destruir.

- Que coincidência. - Ela abriu a porta e sorriu. - Você também.

(...)

Quando chegamos em casa, Renata estava sentada no sofá da sala, lendo um livro enquanto segurava uma taça de vinho pela metade. O cabelo preso revelava o pescoço elegante que sempre me atraiu, mas que agora apenas uma lembrança distante, quase inalcançável.

- Finalmente chegaram - ela disse, fechando o livro com um estalo suave e levantando-se com aquela elegância habitual. - Achei que você tivesse sequestrado a Bianca no hospital.

Bianca sorriu discretamente, lançando-me um olhar cúmplice que me fez apertar os lábios em irritação.

Antes que eu pudesse responder, passos apressados ecoaram pelo corredor. Clara surgiu correndo, com os cabelos soltos ao vento, o rosto iluminado por um sorriso enorme. Atirou-se nos meus braços sem hesitar.

- Mamãe! Você voltou cedo hoje!

O calor daquele abraço me acalmou, suavizando brevemente a tensão que havia crescido em mim ao longo do dia.

- Sim, voltei mais cedo hoje, meu amor. Estava com saudade.

- Eu também! - Clara me apertou com força, depois levantou os olhos curiosos para Bianca, que observava a cena como quem assiste a um filme interessante. - Você gostou do hospital?

Bianca agachou-se para ficar na altura da menina, com uma expressão suave e quase maternal que me surpreendeu.

- Achei interessante. Sua mãe é muito boa no que faz. Você deveria se orgulhar dela, princesa.

- Eu tenho orgulho! - Clara respondeu imediatamente, as bochechas rosadas com alegria genuína.

Algo apertou dentro de mim ao ver a facilidade com que Bianca se integrava à minha filha, enquanto Renata observava tudo em silêncio, bebericando o vinho com uma expressão indecifrável.

- Clara, querida - Renata interrompeu suavemente. - Que tal ir brincar um pouco no quintal? A mamãe e eu precisam conversar sobre coisas chatas.

Clara assentiu, saltando do meu colo e correndo pela porta da cozinha até o gramado lá fora. Bianca se levantou lentamente, cruzando os braços e observando com interesse, esperando a conversa que já antecipava.

Renata pousou a taça na mesa lateral e respirou fundo antes de falar.

- Marta ligou chorando hoje cedo. Disse que não pode voltar a trabalhar enquanto Bianca estiver aqui. Algo sobre ter sido acusada injustamente de roubo?

Senti o rosto queimar em irritação, lançando um olhar duro para Bianca, que não se abalou. Pelo contrário, sustentou meu olhar com uma calma quase insolente.

- Foi um mal-entendido - respondi, esforçando-me para controlar o tom. - Bianca já sabe que precisa pedir desculpas.

- Já sabe? - Renata arqueou uma sobrancelha delicada, lançando um olhar questionador para a sobrinha.

- Ela acha que eu sei - Bianca respondeu com suavidade venenosa, dirigindo-se diretamente a Renata. - Mas pedir desculpas não é algo que eu faça facilmente, tia.

Renata suspirou, exasperada, e me encarou como se eu tivesse responsabilidade sobre tudo aquilo.

- Vanessa, nós precisamos da Marta. Não tenho tempo nem vontade de entrevistar outras empregadas agora. Resolva isso.

O tom autoritário da minha esposa fez com que algo se contorcesse dentro de mim, mas preferi não contestar. Estava exausta demais para mais uma discussão.

- Bianca, você vai resolver isso amanhã mesmo - falei com firmeza, encarando-a diretamente. - Sem mais problemas.

Ela inclinou levemente a cabeça para o lado, sustentando meu olhar, a boca se curvando num sorriso provocante que dizia muito mais do que palavras.

- Claro, doutora. O que você mandar.

Renata pareceu satisfeita com a resposta, mesmo que forçada. Ela pegou o livro e a taça e subiu as escadas lentamente, sem mais comentários, deixando para trás apenas o eco de seus saltos no piso de madeira.

Assim que Renata desapareceu, me virei para Bianca, sentindo a raiva subir lentamente pela garganta.

- O que você pretende com isso? Acha engraçado causar problemas aqui dentro?

- Engraçado não - Bianca respondeu baixinho, dando um passo mais perto de mim, os olhos escuros fixos nos meus. - Necessário.

- Necessário para quê? - perguntei, a voz vacilando ligeiramente, percebendo tarde demais o quanto havia cedido espaço a ela.

Bianca inclinou-se um pouco mais, sussurrando com suavidade:

- Para descobrir quem vocês realmente são quando tudo sai do controle.

Dei um passo para trás, afastando-me da proximidade perigosa. Meu coração disparava como se quisesse fugir de dentro do meu peito.

- Você está brincando com fogo, Bianca.

Ela riu baixinho, os olhos ainda presos nos meus enquanto falava, quase num desafio:

- Não tenho medo de me queimar. E você?

Um silêncio pesado se instalou entre nós, quebrado apenas pelos risos distantes de Clara no jardim.

Bianca afastou-se devagar, seguindo na direção do quintal. Da janela, vi quando ela se aproximou de Clara, sentando-se na grama ao lado dela, rindo e brincando com uma facilidade assustadora.

Naquele momento, ficou claro para mim o quanto Bianca era perigosa. Não apenas pela insolência, nem pela capacidade de virar minha vida de cabeça para baixo, mas pela facilidade com que conseguia me desarmar, penetrando em minha mente, meu lar, e na vida daqueles que eu mais amava.

E o pior de tudo era que eu não fazia ideia de como impedi-la. Porque, secretamente, alguma parte obscura de mim começava a gostar daquela sensação.

E isso, talvez mais do que tudo, fosse a parte mais perigosa daquele jogo que eu sequer sabia que estava jogando.

(...)

Depois do jantar, tomei banho com a água quase escaldante, na tentativa inútil de lavar o desconforto que Bianca havia plantado em mim ao longo daquele dia interminável. Vesti um roupão, prendi os cabelos num coque bagunçado e desci ao escritório. Precisava me reconectar comigo mesma, encontrar meu eixo novamente entre prontuários e casos médicos.

Era meu espaço, minha zona de segurança. Ou costumava ser.

Espalhei alguns documentos sobre a mesa e coloquei os óculos, ignorando o cansaço que pesava sobre meus ombros. Eu precisava focar. Mas concentração era um luxo que eu já não tinha mais desde que aquela garota entrou pela porta da minha casa.

Ouvi o leve ranger da porta atrás de mim antes mesmo de vê-la. Não precisei me virar para saber quem era.

- Vai fingir que não me ouviu entrar? - a voz dela veio tranquila, confiante, preenchendo todo o ambiente sem esforço.

Virei-me lentamente, tentando esconder o quanto aquela presença me abalava. Bianca estava parada no meio do escritório, pés descalços sobre o tapete felpudo. A camiseta, um pouco grande demais, escorregava por um dos ombros, expondo parte da sua pele, provocando minha atenção contra minha vontade.

- Você nunca bate antes de entrar? - perguntei, tentando manter a voz firme.

- Eu bato quando acho que preciso de permissão - ela disse, caminhando lentamente pelo espaço, como se mapeasse meu território. - Mas você nunca precisou que alguém pedisse permissão pra te desarmar, precisou?

Engoli em seco, sentindo algo pesado descer pela garganta.

- Não estou no clima para seus jogos hoje, Bianca.

Ela sorriu, dando mais um passo na minha direção, sem pressa.

- Que pena. Porque você joga muito bem quando acha que não está jogando.

A distância entre nós diminuiu ainda mais. Bianca agora estava perto o suficiente para que eu sentisse o perfume suave, envolvente, misturado àquele toque proibido do cigarro.

- Por que você está fazendo isso? - perguntei, odiando como minha voz saiu mais baixa, quase rouca.

Bianca inclinou a cabeça, me analisando como quem decifra um enigma simples demais.

- Você sabe por quê. Eu vejo na forma que você me olha quando pensa que ninguém está vendo. No jeito que prende a respiração quando chego perto demais. - Ela ergueu uma mão, os dedos quase roçando minha pele, sem tocar realmente. - Você sente falta disso. Falta de ser desejada sem ter que pedir. Sem precisar implorar.

Minha respiração acelerou. O calor dela se infiltrava sob minha pele, desorganizando cada pensamento racional.

- Isso é um erro - falei baixinho, quase para mim mesma.

- Mas você não se importa. Você precisa disso mais do que quer admitir. - A voz dela era um sussurro perigoso, cheia de certezas que eu tentava desesperadamente negar.

Ela encurtou mais a distância, o olhar preso no meu. Sua mão finalmente tocou meu rosto, de leve, quase um carinho que deixou minha pele em chamas.

- Bianca... - meu protesto saiu fraco, quase implorando por mais.

Ela sorriu, absolutamente consciente do efeito devastador que estava tendo sobre mim. A mão deslizou lentamente, explorando o contorno do meu queixo até a linha sensível do pescoço, pousando sobre meu peito, exatamente sobre o ponto acelerado do coração.

- Está vendo? Seu corpo não mente, doutora. - Ela falou com a confiança de quem já venceu. - Você pode mentir para Renata, pode mentir para você mesma... mas não para mim.

Eu não conseguia me mover. Não conseguia respirar direito. Bianca dominava completamente aquele instante, aquele espaço, minha mente e meu corpo. Eu estava paralisada por um misto de medo, desejo e culpa.

- Boa noite, Vanessa. - Ela retirou a mão lentamente, permitindo que a ausência do toque fosse quase dolorosa. Caminhou até a porta, lançando um último olhar antes de sair. - Não tente fingir que nada disso aconteceu. Não funciona mais.

Quando ela saiu, levei alguns segundos para recuperar o controle mínimo sobre mim mesma. Sentei, trêmula, respirando fundo, sentindo ainda a eletricidade deixada pelo toque dela percorrer meu corpo inteiro.

Bianca tinha razão.

Eu não podia mais fingir.

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Comments

Marri Santis

Marri Santis

e Renata pq fecha os olhos pra o que Bianca faz..

2025-09-18

0

Maria

Maria

Até onde Bianca quer chegar

2025-09-09

0

Ver todos

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