Vanessa_Pov
Na segunda de manhã, já estava pronta para o trabalho. Camisa branca, calça social escura, cabelo preso com pressa. Não dormi bem. De novo.
A cozinha cheirava a pão torrado e café fresco. E por um instante, pensei em voltar - subir as escadas, fingir uma dor de cabeça, qualquer coisa. Mas era tarde. Eu já estava ali. E elas também.
Clara, sentada na cadeira mais alta, balançava as pernas no ritmo da própria animação enquanto espalhava Nutella no pão com mais cuidado do que um cirurgião. Renata, de pijama e rabo de cavalo, lia algo no celular com a testa franzida. E Bianca... bom.
Bianca estava de costas pra mim, perto da pia, usando uma blusa fina demais e uma saia que terminava cedo demais. A bolsa jogada sobre o ombro e os cabelos úmidos denunciavam que já estava pronta pra sair. Ela parecia parte da paisagem. Como se aquela cozinha fosse dela.
Dei dois passos pra dentro e tentei não reagir ao que vi. Mas foi inútil.
As costas dela se moviam num ritmo hipnótico enquanto ela enxaguava uma xícara. O contorno do corpo se desenhava com uma naturalidade que me irritava - porque era bonita demais. Consciente demais.
Ela se virou no instante exato em que eu desviava o olhar.
- Bom dia, doutora - disse, como se não houvesse ironia no mundo.
- Bom dia - respondi, seca.
- Bom dia, amor - Renata se aproximou e me deu um beijo rápido no rosto, seguido de um sorriso leve. - Tá cedo hoje...
- Tenho reunião no hospital. Precisei adiantar.
- Uhum... - Ela voltou pro celular, distraída.
Bianca se aproximou devagar e serviu uma xícara pra mim. Estendeu como quem oferece paz, mas os olhos diziam outra coisa.
- Achei que talvez quisesse café. Tá forte, do jeito que gosta.
- Obrigada - peguei a xícara com um aceno discreto. Evitei tocar os dedos dela. Foi por pouco.
Me afastei e fui até a geladeira, tentando colocar uma distância segura entre nós. Meu coração já dava sinais de que aquela manhã não seria simples.
- Vai levar a Clara pra escola? - perguntei a Renata, tentando soar natural.
- Vou sim. E Bianca vai pra faculdade... inclusive - ela se virou para mim com um sorriso inocente demais -, ela pediu uma carona. Pode levar?
A xícara quase escorregou da minha mão.
- Não posso. Vou direto pro hospital. Tenho coisa acumulada - menti. E mal.
- Você passa em frente, Vanessa - Renata retrucou. O tom era brando, mas firme. - E ela tá sem condução hoje. É só deixar na esquina. Nem vai tomar seu tempo.
- Eu dou um jeito, tia - Bianca cortou, rápido demais. - Não quero incomodar.
- Você não incomoda - Renata sorriu. - A Vanessa que tá implicante hoje.
Suspirei. Era inútil resistir.
- Tá bem. Vamos logo então, ou vou me atrasar.
Bianca pegou a bolsa com calma e se aproximou de Clara, dando um beijo demorado na bochecha da menina.
- Se comporta, princesa.
- Você vai me buscar? - Clara perguntou.
- Hoje não. Mas amanhã a gente desenha juntas de novo, combinado?
- Combinado!
A menina sorriu e voltou a espalhar Nutella como se o mundo estivesse salvo.
Renata se aproximou de mim, passou o braço pela minha cintura e me puxou levemente pro canto da cozinha. Me deu um beijo suave nos lábios.
- Mais tarde a gente termina aquela conversa de ontem, tá?
- Que conversa?
- Aquela que começou no sofá. - Ela sorriu e sussurrou perto do meu ouvido: - Hoje à noite quero você só pra mim.
Não consegui reagir. Só assenti, sem saber muito bem o que responder.
Quando olhei de lado, Bianca nos observava. Um sorriso discreto, falso. Os olhos, no entanto, diziam tudo. Ela revirou os olhos, virou de costas e saiu da cozinha sem uma palavra.
Peguei as chaves. E fui atrás.
(...)
O silêncio no carro era espesso. Tenso.
Dirigir ao lado dela já era, por si só, uma espécie de teste de resistência. Mas Bianca parecia disposta a transformar aquele curto trajeto em campo de batalha - um jogo que só ela conhecia as regras.
- Você sempre escuta jazz logo cedo? - ela perguntou, mexendo nos botões do rádio sem a menor cerimônia. - Ou é só hoje, pra me impressionar?
- Não estou tentando te impressionar - respondi, sem tirar os olhos da estrada. - Gosto de silêncio. Isso é o mais próximo que consigo dele.
Ela riu. Uma risada baixa, carregada de ironia.
- Engraçado... pensei que silêncio fosse ausência de barulho, não de controle.
Franzi o cenho.
- O que isso quer dizer?
- Nada. - Ela deu de ombros, cruzando as pernas devagar. O movimento foi quase coreografado. A saia subiu alguns centímetros, revelando parte da coxa. Eu vi. E odiei ter visto. - Só estou observando.
Ela era insuportável quando estava nesse modo. Lenta, afiada, perigosa.
- Observa demais - comentei, tentando soar indiferente.
- É o meu passatempo favorito ultimamente. Você é um enigma divertido, doutora.
- Não sou um enigma. Sou uma mulher ocupada, levando alguém pra faculdade contra a vontade.
- E mesmo assim, me trouxe.
Ela se virou para mim, e eu senti o olhar dela colar na lateral do meu rosto. O tipo de olhar que pesa, que encosta mesmo sem tocar. Como se os olhos dela tivessem dedos.
- Obrigada, aliás - acrescentou, num tom tão doce que eu soube imediatamente que era fingimento.
- Foi a Renata quem insistiu.
- Eu sei. Mas gosto de pensar que, no fundo, você queria me trazer. Nem que fosse pra me manter por perto. Controlada.
Soltei um suspiro, apertando um pouco mais o volante. O trânsito estava leve, mas minha mente era um redemoinho.
- Você sempre fala essas coisas esperando que eu reaja?
- Não. - Ela se inclinou levemente pra frente, os cabelos caindo sobre o ombro. - Eu falo porque são verdade.
- Não são.
- São sim. Mas tudo bem. Você ainda vai admitir. Talvez não hoje. Talvez não enquanto estiver fingindo que não quer parar esse carro e me beijar até esquecer o nome da sua esposa.
Quase freei ali mesmo.
Mas me controlei. Porque perder o controle perto dela era dar poder. E isso era tudo o que eu não podia fazer.
- Você precisa parar com isso, Bianca.
- Parar com o quê?
- Com esse... jogo.
- Jogo? - ela sorriu, olhando pela janela. - Eu só estou sendo eu. Quem está jogando é você. Fingindo que não sente. Fingindo que não olha. Fingindo que não sonha comigo quando ninguém está vendo.
O silêncio voltou, mas agora não era mais confortável. Era elétrico. Quente.
- Você tem essa mania de invadir tudo - falei, depois de alguns segundos. - Meu espaço, minha filha, minha rotina. Agora quer invadir minha cabeça também?
Ela me olhou de novo. E o que vi nos olhos dela me arrepiou. Não era desejo apenas. Era algo mais fundo. Uma espécie de certeza sombria.
- Já invadi. Você só não quer admitir ainda.
Ela mordeu o canto do lábio, como se saboreasse o que vinha a seguir.
- Sabe, Vanessa... às vezes, quando você passa perto de mim com essa cara séria, fingindo que não sente nada, eu me pergunto se sua pele arrepia como a minha. Ou se é só seu olhar que trai tudo.
Não respondi.
Porque meu corpo inteiro estava em alerta.
Porque ela tinha razão.
E isso era exatamente o que me fazia querer parar esse carro e fugir para sempre.
Mas eu continuei dirigindo.
Com os olhos na estrada.
E o inferno dentro de mim.
(...)
O resto do meu dia passou como um borrão. Daqueles mal desenhados, onde tudo parece ter contorno, mas nada se sustenta.
Atendi pacientes. Assinei laudos. Escutei colegas falarem sobre plantões, novas contratações, burocracias do hospital. Respondi tudo no automático, com um sorriso profissional que escondia o caos por dentro.
Minha cabeça, no entanto, ficou presa naquele banco do carro. No jeito como Bianca me olhou antes de sair. Na voz dela sussurrando que eu já a tinha deixado entrar.
"Vai doer."
E doía.
Não porque ela estava errada, mas porque estava certa demais. E quanto mais eu tentava fugir disso, mais ela grudava.
Nem o hospital - meu único lugar seguro - serviu de escudo hoje. Me peguei perdendo a concentração no meio de uma análise de imagem, rabiscando coisas sem sentido no bloco, com o nome dela ecoando lá no fundo da mente.
Bianca.
Como alguém podia ser tão jovem, tão insolente... e ainda assim dominar tanto?
Voltei pra casa depois das dezenove horas, com o sol já se escondendo e a cabeça latejando. O som da chave girando na porta me deu um alívio curto. Familiaridade. Silêncio. Mas bastou entrar pra perceber que aquilo não existia mais.
O cheiro de comida fresca vinha da cozinha. Algo leve, com alho e alecrim. Clara riu alto em algum cômodo - e só o som da risada dela me fez sorrir também, mesmo que por dentro.
Deixei a bolsa sobre a cadeira da sala de jantar e soltei o cabelo, massageando a nuca com os dedos.
O corpo inteiro doía.
De exaustão.
De tensão.
De desejo contido demais.
Atravessei o corredor devagar, com medo de esbarrar nela. Medo de encarar de novo aquela certeza nos olhos. Aquela tranquilidade cruel de quem sabe o que quer - e como chegar até lá.
Bianca era como veneno adocicado: você sente o gosto, sabe que vai fazer mal... mas engole mesmo assim.
Subi para tomar um banho. E enquanto a água quente escorria pelas minhas costas, tudo que eu conseguia pensar era: quanto tempo mais vou conseguir resistir?
E, pior...
Será que eu realmente quero resistir?
(...)
Depois do banho, vesti um moletom velho e desci pra jantar. O cheiro da comida ainda pairava no ar, quente e acolhedor, mas tudo em mim continuava frio. Cansado. Como se eu tivesse passado o dia inteiro lutando contra uma guerra invisível - e perdido cada batalha.
A mesa já estava posta.
Renata servia o arroz, sorrindo. Bianca estava sentada ao lado dela, rindo de alguma piada boba que só as duas entenderam. Clara mexia no suco com o canudo, distraída.
Sentei-me no meu lugar de sempre. Em silêncio.
Não tinha apetite, mas coloquei um pouco de comida no prato. Pelo gesto. Pela formalidade. Pelas aparências.
Durante todo o jantar, me limitei a mastigar devagar e a responder só o necessário. Às vezes, dizia "hum" quando Renata comentava algo sobre a babá nova da casa ao lado. Às vezes, respondia um "sim, filha" quando Clara perguntava se podia assistir desenho depois.
Mas nada além disso.
Porque não dava.
Porque meu corpo ainda carregava o resíduo do dia - e da manhã. Do banco do carro. Do olhar dela. Das palavras que Bianca escolhia tão bem. Porque cada vez que ela cruzava as pernas do outro lado da mesa, cada vez que ela inclinava o corpo pra frente e ria com gosto de alguma história que inventava para a minha esposa... eu sentia uma coisa dentro de mim se contrair.
Era como se eu assistisse a um teatro. Um teatro cruel e cínico.
Bianca se portava como a sobrinha perfeita. Educada. Engraçada. Simpática com Clara, doce com Renata. Falava sobre a faculdade, sobre os professores, sobre um possível projeto de arte que queria apresentar - tudo com o mesmo sorriso leve e a voz serena.
Mas eu sabia.
Eu sabia que aquilo era só uma versão.
Um disfarce.
Uma performance calculada.
A garota que estava ali na minha frente, falando de cultura pop e técnicas de aquarela como se fosse a estudante mais centrada do mundo, era a mesma que, horas antes, tinha me feito quase perder o controle no carro. A mesma que invadia meus pensamentos com aquele corpo proposital. Com aquela voz que parecia saber exatamente onde cortar.
Quem olhava de fora jamais imaginaria o capeta que morava naquela pele clara e naquela pose serena.
Bianca era um veneno servido em taça de cristal.
E Renata... Renata parecia encantada.
Ela e Bianca riram juntas umas três vezes durante o jantar. Dividiram olhares cúmplices, trocaram histórias familiares como se fossem irmãs. E aquilo - aquela intimidade artificial, construída com cuidado - me deu náusea.
Ela está ganhando minha casa.
Minha filha.
Minha esposa.
E eu?
Eu me limitei a observar.
Como sempre.
Talvez fosse esse o meu maior defeito. Ou o que me tornava o alvo perfeito: eu observava demais. E agia de menos.
Terminei meu prato quase em silêncio. Não comi nem a metade.
- Posso sair da mesa? - Clara perguntou, empolgada.
- Pode, filha - respondi, com a voz baixa.
Ela saiu correndo, os pés descalços batendo no chão.
Bianca a seguiu com os olhos e sorriu, como se fosse alguém perfeitamente em paz.
Renata apoiou a mão no meu braço.
- Amor, você tá bem?
- Só cansada - respondi. Aquela resposta padrão que eu já tinha decorado.
Ela assentiu, mas pareceu desconfiar. Ou talvez só tenha aceitado, como fazia sempre.
Enquanto ela se levantava pra guardar os pratos, Bianca se inclinou levemente pra frente, apoiando o queixo na mão. Me olhou com calma. Com intenção.
Sussurrou, quase sem mexer os lábios:
- Fica linda quando finge que tá tudo bem.
Depois se levantou e foi até a pia, como se nada tivesse dito.
E eu...
Eu me agarrei na beirada da mesa, tentando lembrar como se respira.
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Comments
Maria
Eita Bianca vai enlouquecer a Vanessa kkkk
2025-09-17
1
Edna Rocha
Tô ficando com dó da Vanessa, a pobre não tem um minuto de paz.....Biancapeta entrando em ação.....🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣
2025-09-25
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