O Jardim das Sombras
Capítulo 1:
O vento salgado cortava como lâminas finas, trazendo consigo o uivo constante do mar e o cheiro acre de algas apodrecendo entre as rochas negras. Névoa Salgada não era um refúgio; era uma rendição. Elara Costa apertou o fino casaco de lã contra o corpo, sentindo o tecido úmido grudar na pele. O ônibus que a trouxera da cidade grande, um monstro enferrujado que tossira fumaça preta pela serra abaixo, já desaparecera na cortina de névoa que dava nome ao lugar, deixando-a sozinha diante da paisagem desolada.
As casas, mais sombras do que estruturas definidas, encolhiam-se contra a falésia, pintadas em tons desbotados de azul, verde e um cinza que se fundia com o céu plúmbeo. Janelas escuras, como olhos cegos, observavam-na. O ar pesava, saturado não apenas de umidade, mas de um silêncio profundo, quebrado apenas pelo grito das gaivotas – sons agudos que pareciam rasgar o véu do mundo. Elara respirou fundo, tentando afogar o eco de pesadelos recentes, o sabor de pó e sangue que ainda lhe assombrava a garganta. Aqui, esperava encontrar o esquecimento. Aqui, esperava ser invisível.
A pensão "O Abrigo do Mar" era tão discreta quanto prometia no anúncio online desbotado. Uma construção de madeira envelhecida pelo sal, encravada entre rochedos musgosos. A placa rangia num ritmo fúnebre. Elara empurrou a porta, fazendo uma sineta de bronze tilintar com um som estridente que a fez estremecer.
O interior era quente, abafado, cheirando a sopa de peixe cozida em excesso e a cera de chão antiga. Uma mulher de idade indeterminada, com um rosto vincado como uma noz e olhos pequenos e perspicazes, surgiu por trás de um balcão de madeira escura.
“Elara Costa?” perguntou, a voz rouca como as pedras da praia.
“Sim”, respondeu Elara, forçando um sorriso tênue. “Reservei um quarto.”
A mulher – Dona Marta, como se apresentou brevemente – assentiu, observando-a com uma curiosidade que beirava a intrusão. Seus olhos pousaram nas olheiras profundas sob os olhos castanho-claros de Elara, na palidez que nem o frio conseguia disfarçar, na maneira como seus dedos trêmulos apertavam a alça da mala velha.
“Quarto do fundo. Mais quieto”, disse Dona Marta, entregando-lhe uma chave pesada e gelada. “Janta às sete. Não atrase.” Um aviso, não um convite.
O quarto era minúsculo, mobiliado com uma cama estreita, um armário manco e uma pequena janela que dava para os rochedos e o mar furioso abaixo. A névoa beijava os vidros, escondendo o horizonte. Elara deixou a mala cair no chão e encostou-se na porta, fechando os olhos. O silêncio aqui dentro era ainda mais profundo, mais opressivo. Era o silêncio de quem segura a respiração. Elara sentiu um frio que não vinha do vento percorrer sua espinha. Segura, ordenou a si mesma. Estás segura agora.
Mas os pesadelos não respeitavam paredes. Naquela noite, envolta em lençóis ásperos que cheiravam a mofo, Elara foi novamente arrancada do sono por imagens fragmentadas: luzes ofuscantes, o cheiro de gasolina queimada, gritos abafados pelo estrondo, e mãos… mãos tentando puxá-la para as trevas. Ela acordou com um soluço preso na garganta, o coração batendo como um pássaro enjaulado contra as costelas. A dor de cabeça, uma velha conhecida desde aquela noite, latejava nas têmporas com uma intensidade cruel. A névoa do lado de fora parecia ter invadido o quarto, sufocante.
Pela manhã, com o rosto ainda marcado pela insônia e a dor insistente, Elara soube que precisava de ajuda. Dona Marta, ao lhe servir um café amargo e pão duro, mencionou com indiferença: “Temos médico. Doutora Montenegro. Clínica perto do farol abandonado. Boa, dizem. Mas fria. Gélida.”
A caminho da clínica, Névoa Salgada revelou-se ainda mais estranha à luz difusa do dia. Pessoas caminhavam com passos apressados, cabeças baixas, evitando contato visual. O ar continuava pesado, carregado de um segredo coletivo. O farol abandonado, uma sentinela desgastada no topo de um penhasco, pairava sobre a vila como um aviso. A clínica da Dra. Montenegro ficava em um prédio de pedra cinza anexo a ele, discreto e imponente.
O interior era uma extensão da fachada: frio, estéril, imaculadamente limpo. O cheiro de antisséptico queimava as narinas de Elara. A recepcionista, uma mulher jovem com um sorriso plástico, anotou seus dados com eficiência robótica. “A Dra. Montenegro a atenderá em breve”, disse, o sorriso não alcançando os olhos.
A sala de espera era silenciosa, iluminada por lâmpadas fluorescentes que faziam tudo parecer pálido e sem vida. Elara sentiu-se exposta, como um espécime sob vidro. Passos firmes e medidos ecoaram no corredor, aproximando-se. A porta abriu-se.
A Dra. Viola Montenegro não era apenas fria; era uma escultura de gelo esculpida com precisão cirúrgica. Alta, magra, vestindo um jaleco branco impecável sobre um tailleur cinza-perolado, seu cabelo negro estava preso num coque tão severo que parecia puxar a pele de seu rosto. Seus olhos, de um cinza glacial e penetrante, fixaram-se em Elara com uma intensidade imediata que fez a jovem se encolher na cadeira de plástico duro. Não havia calor nesse olhar, apenas análise. Avaliação profunda, intrusiva.
“Elara Costa”, disse a médica. A voz era suave, controlada, mas carregada de uma autoridade inquestionável. Cada sílaba era pronunciada com uma clareza cortante. “Entre.”
O consultório era uma versão amplificada da sala de espera: branco, metálico, funcional. Uma grande janela oferecia uma vista desoladora para o farol e o mar agitado. Viola sentou-se atrás de uma escrivaninha imaculada, os dedos longos e finos entrelaçados. Seu olhar nunca se desviou de Elara.
“Dona Marta mencionou que recém chegou. Buscando… refúgio?” O tom era neutro, mas a palavra ‘refúgio’ foi carregada de um leve tom de desdém, como se fosse um conceito frágil, inútil.
Elara engoliu seco. “Sim. E… tenho tido fortes dores de cabeça. Insônia.”
“Dores de cabeça. Insônia.” Viola repetiu, como se catalogasse sintomas. Seus olhos escaneavam o rosto de Elara, pousando nas olheiras, na palidez, na ligeira tensão ao redor de sua boca. “Sintomas comuns. De stress. De trauma.” Ela não fez uma pergunta; fez uma afirmação. “Relata pesadelos?”
A pergunta direta, lançada com aquela frieza clínica, atingiu Elara como um golpe. Ela hesitou. “Às vezes.”
“Às vezes.” Viola anotou algo em um prontuário digital com dedos rápidos e precisos. “E o que estes pesadelos contêm, Elara?” O uso do primeiro nome foi súbito, íntimo, quase possessivo no contexto estéril.
Elara sentiu um novo calafrio. “Eu… não me lembro bem. Luzes. Barulho. Medo.” Ela evitou os detalhes, evitou as mãos.
Viola inclinou a cabeça levemente, estudando-a. “Medo é um fator debilitante. Enfraquece o sistema imunológico. Prejudica o julgamento.” Seus olhos cinza pareciam perfurar a carne, buscar as cicatrizes invisíveis. “Precisamos de um exame completo. Histórico detalhado. Para entender esta… fragilidade que você carrega.” A palavra ‘fragilidade’ saiu como um diagnóstico, mas também como uma observação pessoal, quase um fascínio.
Ela levantou-se, sua altura dominando o pequeno espaço. “Deite-se, por favor.” Apontou para a maca de exame coberta por papel cru. “Vou verificar seus sinais vitais. Pressão. Frequência cardíaca. Reações básicas.”
O toque de Viola, quando veio, foi tão frio quanto seu olhar. As luvas de látex eram geladas contra a pele de Elara. Os dedos pressionaram suavemente, mas com firmeza absoluta, o pulso de Elara, contando as batidas aceleradas. O estetoscópio foi um choque de frio contra o peito, sob a fina blusa. Elara fechou os olhos, tentando controlar a respiração, sentindo-se invadida. A proximidade da médica era opressora. Seu perfume, algo agudamente limpo e medicinal, enchia as narinas de Elara.
“Sua frequência cardíaca está elevada”, comentou Viola, sua voz próxima do ouvido de Elara. “Resposta ao medo? Ao stress? Ou… à minha presença?” A pergunta foi sussurrada, carregada de uma curiosidade clínica que beirava o perverso. Os dedos gelados deslizaram para o pescoço de Elara, apalpando os gânglios linfáticos com uma meticulosidade que fez a pele da jovem arrepiar. Era um toque invasivo, desnecessariamente prolongado, disfarçado de profissionalismo. Elara sentiu-se presa, como um inseto sob a lente de um microscópio, pertencente àquele olhar analítico e gelado.
“Você precisa de acompanhamento próximo, Elara”, continuou Viola, recuando apenas o suficiente para olhar diretamente para seus olhos. O cinza glacial agora tinha um brilho calculista. “Esta vulnerabilidade… esta beleza em meio ao caos interno… é um campo fértil para complicações. Volte na próxima semana. Traremos mais… clareza.” O termo ‘clareza’ soou como uma ameaça.
Elara saiu da clínica sentindo-se mais suja, mais exposta do que quando entrara. O ar salgado, antes opressivo, agora parecia uma bênção em comparação com o ambiente estéril e a posse silenciosa da Dra. Montenegro. Ela caminhou rápido, sem destino, tentando sacudir a sensação de que a médica havia deixado marcas invisíveis em sua pele, em sua alma.
Ao voltar para a pensão, já sob o crepúsculo que mergulhava Névoa Salgada em tons de púrpura e cinza profundo, Elara encontrou algo encostado na porta do seu quarto. Não era de Dona Marta. Era um pedaço de papel grosseiro, dobrado de forma irregular. Com dedos trêmulos, ela o abriu.
Dentro, não havia palavras. Apenas um desenho. Uma figura esguia e frágil (era ela, reconheceu com um novo choque de terror) cercada por seis pares de olhos estilizados, todos diferentes, todos fixos nela, todos possuindo uma intensidade avassaladora. Os olhos eram o foco, detalhados com traços obsessivos – um par frio e calculista, outro selvagem e antigo, outro ciumento e agressivo, outro manipulador e rico, outro caótico e perturbado, outro forte e disciplinador. Eles a engoliam visualmente na página. Abaixo da figura, rabiscado com uma linha instável, estava o contorno de um farol.
Não havia assinatura. Apenas os olhos. Observando. Cobiçando. Posse já anunciada em papel grosseiro.
Elara entrou no quarto e trancou a porta, encostando-se nela com força, o coração batendo loucamente contra as costelas. O refúgio transformara-se em palco. A névoa não a escondera. Ela estava vista. Desejada. E a primeira sombra, fria e meticulosa como um bisturi, já havia estendido sua posse. Névoa Salgada sussurrava segredos sombrios, e Elara, com o desenho aterrorizante apertado na mão, percebeu com um frio mortal na espinha: a caçada começara. E ela era a presa.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments
Rebeca Miguel
Obrigada
2025-06-28
1
Mary_maki
Adorei o começo.
2025-06-28
1