Capítulo 3:
O aperto de Toni no braço de Elara era como uma algema de carne. Cada passo na rua lateral, mais estreita e sombria que as principais, ecoava a rendição forçada. O cheiro de couro envelhecido, suor e pólvora não lavada da policial era um véu tóxico ao redor de Elara, sufocando o ar salgado que ela desesperadamente queria tragar. A névoa, agora uma cortina opalescente, ocultava os telhados escorrendo e as janelas cegas, transformando Névoa Salgada num palco vazio para o teatro da posse de Toni.
"Relaxa," rosnou Toni, sem um traço de suavidade. Os dedos dela contraíram-se, fazendo Elara estremecer. "Só tô fazendo meu trabalho. Garantindo que florzinha frágil como você não seja pisoteada nesse lamaçal." O apelido, "florzinha", saiu como um insulto disfarçado de carinho perverso. "Agora, fala. Esses pesadelos. O que *realmente* te acorda gritando?"
Elara engoliu o medo, um nó duro na garganta. O passado, o acidente, as mãos tentando arrastá-la para as trevas sob o estrondo... eram feridas que ela mantinha seladas a sete chaves. Confessá-las a essa mulher, com seus olhos ciumentos e sede de controle, era como entregar uma faca afiada. "São... só pesadelos," ela murmurou, olhando para as pedras molhadas sob seus pés. "Fragmentos. Luzes. Nada coerente."
Toni soltou um riso curto, áspero. "Fragmentos, hein? Coerente o bastante pra te deixar com cara de fantasma e pulando com sombras." Ela puxou Elara mais perto, forçando-a a tropeçar. O corpo forte da policial era uma barreira quente e inflexível. "Tô te dando uma chance de ser sincera, florzinha. Pra gente ter confiança. Pra minha *proteção* funcionar direito. Se você esconde coisas..." Ela fez uma pausa dramática, inclinando a cabeça para que seu hálito quente, carregado de café barato, atingisse o rosto de Elara. "...fica difícil garantir que *outros* interesses não cheguem até você. A Doutora Gelo, por exemplo. Ou aquela artista maluca que vive rabiscando porcaria."
O nome de Kira, a artista perturbada, caiu como uma pedra no poço do estômago de Elara. Toni sabia. Sabia do desenho. A sensação de estar completamente exposta, cercada, era insuportável. "Eu não escondo nada relevante," Elara insistiu, a voz um fio de tensão.
"Tudo sobre você é relevante pra mim agora," Toni retrucou, o olhar escuro queimando com posse. "Principalmente quem te interessa. Quem te olha. Quem te *toca*." A última palavra foi sibilada com um ciúme virulento. "A Dra. Montenegro te tocou, né? Naquele 'exame' dela? Onde? Como?"
A pergunta era uma violência. Elara sentiu o rosto queimar de vergonha e raiva impotente. "Foi um exame médico. Rotineiro."
"Rotineiro," Toni repetiu, cética, o aperto no braço de Elara tornando-se quase doloroso. "Nada é rotineiro com aquela vampira de jaleco. Ela vê carne fresca e quer marcar território. Mas você é minha, entendeu? *Minha* para proteger. *Minha* para saber." Seu olho caiu na nuca exposta de Elara, onde os dedos frios de Viola haviam apalpado os gânglios. "Ela tocou aqui? Aqui?" A mão livre de Toni levantou-se, ameaçando repetir o gesto invasivo.
Antes que os dedos ásperos pudessem alcançar sua pele, um som suave e dissonante interrompeu a cena opressora. Uma campainha delicada, como cristal sendo tocado sob a água, soou ao fundo. Elara e Toni se viraram instintivamente.
Eles haviam emergido numa pequena praça, menos sombria que as ruas laterais, dominada por uma construção que parecia desafiar a decadência de Névoa Salgada. Era uma galeria de arte. "A Galeria Vale", anunciava uma placa de bronze discreta. As paredes eram de pedra clara e vidro fumê, linhas modernas e limpas que cortavam a névoa com arrogância silenciosa. Através do vidro, vislumbravam-se manchas de cores intensas e formas perturbadoras emolduradas por luzes cuidadosamente posicionadas. Era um oásis de sofisticação artificial, uma bolha de riqueza e controle em meio ao caos úmido da vila.
Parada na porta aberta, enquadrada pela moldura de aço escuro, estava uma mulher. Isadora Vale. Ela não precisava se apresentar. Sua presença era uma declaração. Alta, esguia, vestindo um vestido de seda cor de vinho que caía como um líquido pesado sobre seu corpo, ela irradiava uma autoridade calma e gelada. Seu cabelo, prateado e cortado num estilo impecavelmente curto, realçava um rosto de traços nítidos, quase esculturais. Olhos de um verde profundo e calculista, como lagos florestais sob uma fina camada de gelo, observavam a cena na praça – especificamente, o aperto de Toni no braço de Elara – com um interesse que era ao mesmo tempo acadêmico e profundamente possessivo.
"Antônia," Isadora cumprimentou, a voz suave como veludo, mas carregada de uma autoridade que fez até Toni hesitar. "Sempre tão... *vigilante*." O verde glacial dos olhos de Isadora deslizou para Elara, escaneando-a da cabeça aos pés com uma eficiência que rivalizava com a de Viola, mas infinitamente mais sedutora. "E você deve ser a nova residente que tanto tem dado o que falar. Elara Costa, não é?"
O aperto de Toni no braço de Elara relaxou um pouco, não por vontade, mas pela força invisível da presença de Isadora. A policial endireitou-se, tentando recuperar a pose dominadora, mas parecia menor diante da elegância cortante da galerista. "Isadora. Apenas garantindo que a novata entenda como as coisas funcionam por aqui."
"Compreensível," Isadora assentiu, um leve sorriso tocando seus lábios finos. Era um sorriso que não prometia gentileza, mas reconhecimento. "Névoa Salgada pode ser... *intensa* para recém-chegados. Especialmente almas sensíveis." Os olhos verdes voltaram a pousar em Elara, avaliando sua palidez, os vestígios de tensão ao redor dos olhos, a vulnerabilidade que parecia emanar dela como um perfume. "Estava justamente pensando em convidá-la para dar uma olhada na minha modesta coleção. Um pouco de beleza pode ser um bálsamo para os sentidos, não acha?" O convite era uma ordem disfarçada, um desafio sutil à posse que Toni tentava estabelecer.
Toni apertou o queixo. "Ela está sob minha proteção, Isadora. Tem lugares pra ir."
"Proteção?" Isadora ergueu uma sobrancelha perfeitamente delineada, o tom de voz mantendo-se suave, mas o subtexto era cortante. "Que admirável. Mas uma xícara de chá e uma contemplação artística dentro da galeria dificilmente constituem perigo, Antônia. A menos que você tema que minhas paredes sejam hostis?" O sorriso reapareceu, ligeiramente mais afiado. "Deixe-a respirar um pouco. O ar dentro da galeria é... filtrado. Muito mais adequado para uma flor delicada do que a névoa salgada." A repetição do apelido que Toni usara foi uma facada sutil, roubando-lhe o termo.
A tensão entre as duas mulheres era palpável, um cabo de guerra invisível com Elara como o prêmio. Toni rosnou baixo, seus olhos negros faiscando entre Isadora e Elara. Ela sabia que desafiar Isadora abertamente, especialmente em seu território, era insensato. A galerista tinha influência, dinheiro, conexões que iam muito além da autoridade de uma policial corrupta numa vila isolada.
"Uma hora," Toni cedeu, o tom carregado de ameaça. Ela soltou o braço de Elara de uma vez, mas não sem antes dar um último aperto de advertência. Os dedos deixaram marcas vermelhas na pele. "Ela tem compromissos. Comigo." O olhar que lançou a Elara era uma promessa de interrogatório mais tarde. "Não se demore, *florzinha*." O apelido soou como uma marca de propriedade antes de ela se virar e desaparecer na névoa com passos pesados, sua silhueta uma sombra raivosa que se dissipou.
Elara ficou parada, esfregando inconscientemente o braço dolorido, o coração batendo forte contra as costelas. A libertação física de Toni era temporária, ela sabia. Tinha apenas trocado um carrasco por outro. Mas a presença de Isadora, embora igualmente ameaçadora, era... diferente. Menos brutal, mais insidiosa.
"Venha, querida," Isadora disse, o sorriso agora mais caloroso, mas os olhos verdes permaneciam lagos gélidos. Ela fez um gesto gracioso em direção ao interior da galeria. "Ignore os modos rústicos da Antônia. Ela tem seu valor para manter a... *ordem bruta* da vila, mas a verdadeira sofisticação, a verdadeira beleza, reside em outro lugar."
Elara hesitou por um segundo. Entrar naquela galeria era como adentrar a toca da aranha. Mas a rua, com a névoa escondendo Toni e quem mais pudesse estar observando, parecia mais perigosa. Ela seguiu Isadora para dentro.
O interior da Galeria Vale era um choque sensorial. O ar era fresco, seco, perfumado com uma fragrância amadeirada e cara que anulava completamente o cheiro do mar. A iluminação era baixa e dramática, focada nas obras de arte que pendiam das paredes brancas imaculadas ou repousavam em pedestais de mármore negro. As peças eram contemporâneas, muitas abstratas, outras figurativas de uma forma distorcida e perturbadora. Cores vibrantes gritavam contra fundos escuros; formas orgânicas se contorciam como criaturas em agonia; olhos estilizados, semelhantes aos do desenho de Kira, mas infinitamente mais refinados e caros, pareciam segui-la pela sala.
"Uma coleção pessoal," Isadora explicou, caminhando com passos silenciosos sobre o piso de madeira escura polida. "Peças que falam da alma humana. De suas luzes... e de suas sombras mais profundas." Ela parou diante de uma grande tela que dominava uma parede. Era predominantemente preta, mas riscos de vermelho-sangue e branco-osso formavam uma figura feminina distorcida, parecendo tanto flutuar quanto estar presa na tela. "Esta, por exemplo. 'A Ancorada'. Fala do desejo de liberdade... e das correntes que criamos para nós mesmas. Ou que permitimos que outros nos coloquem." Seus olhos verdes desviaram-se da tela para Elara, escrutinando sua reação.
Elara sentiu-se nua sob aquele olhar. A imagem era perturbadoramente familiar, ecoando sua própria sensação de encurralamento. "É... intensa," ela murmurou, incapaz de encontrar palavras melhores.
"Como você," Isadora respondeu, o tom suave, quase um carinho verbal. Ela se aproximou, o perfume caro envolvendo Elara como uma seda invisível. "Há uma beleza frágil em você, Elara. Uma luminosidade que brilha mesmo através da... névoa que você carrega. É raro. Fascinante." Sua mão, adornada apenas com um anel de prata simples mas de design pesado e antigo, levantou-se. Por um instante, Elara temeu que ela tocasse seu rosto, como Toni ameaçara. Mas Isadora apenas indicou uma pequena escultura em uma vitrine iluminada. Era uma flor feita de vidro opaco, lindamente trabalhada, mas com espinhos afiados e negros saindo do caule. "Como esta 'Rosa de Obsidiana'. Delicadeza e perigo. Uma combinação irresistível para um colecionador."
A palavra "colecionador" pairava no ar, carregada de intenção. Elara sentiu um frio percorrer sua espinha, diferente do frio de Viola ou do calor opressivo de Toni. Era o frio de ser avaliada, catalogada, cobiçada como um objeto de valor.
"Fiquei sabendo que você busca um recomeço," Isadora continuou, seus passos levando-as para uma área mais íntima da galeria, com duas poltronas de couro preto elegante voltadas para uma escultura menor, mais íntima – um emaranhado de fios de prata que pareciam formar e desfazer rostos chorosos. "Névoa Salgada pode ser um lugar difícil para recomeços sozinha. As redes aqui são... complexas. E frágeis podem se perder nelas." Ela sentou-se em uma das poltronas, indicando que Elara fizesse o mesmo. Era menos um convite e mais uma expectativa.
Elara sentou-se, sentindo-se minúscula e exposta na poltrona ampla. "Estou... me adaptando," ela disse, cautelosa.
Isadora sorriu, um reflexo calculado nos lábios. "Adaptação requer recursos, querida. Conexões. Proteção de um tipo diferente da que Antônia oferece." Os olhos verdes fixaram-se nela, hipnóticos. "Eu poderia ser essa conexão. Tenho influência. Conheço pessoas que podem abrir portas... ou fechá-las firmemente." A ameaça estava lá, sutil, envolta em seda. "Trabalho ocasional na galeria, talvez? Um pequeno apartamento acima, mais confortável e seguro que a pensão da Dona Marta? Tudo pode ser providenciado." Ela inclinou-se ligeiramente para frente, o perfume intensificando-se. "Em troca... apenas sua presença. Sua companhia em eventos ocasionais. Sua... beleza, para iluminar meus espaços. E sua confiança, é claro. Para que eu possa ser seu verdadeiro porto seguro nestas águas turbulentas."
Era uma oferta tentadora, uma corda salva-vidas lançada no mar da vulnerabilidade de Elara. Mas o preço estava claro: tornar-se uma posse, uma peça na coleção de Isadora. Uma "Rosa de Obsidiana" em exibição, protegida, mas espetada num pedestal, pertencente.
Antes que Elara pudesse responder, um movimento rápido e sombrio na vitrine do lado oposto chamou sua atenção. Algo pequeno e escuro foi empurrado por uma fresta na base da janela externa, caindo no carpete grosso com um leve *tap*. Era outro pedaço de papel, dobrado de forma agressiva.
Isadora seguiu seu olhar, uma ligeira ruga de desagrado aparecendo entre suas sobrancelhas perfeitas. "Ah, os incômodos da vila," ela murmurou, mas sua voz tinha perdido um pouco da suavidade. "Kira e seus... rabiscos histéricos. Ignore. Lixo não merece atenção."
Mas Elara já se levantara, movida por um impulso de terror e fascínio. Ela pegou o papel. Desta vez, não era um desenho. Era uma palavra, rabiscada com força, quase rasgando o papel, em vermelho que parecia tinta... ou batom:
**MINHA.**
A letra era instável, furiosa, possessiva. Abaixo da palavra, um único olho estilizado, cheio de raiva e desejo perturbado, foi desenhado. O olho de Kira.
Elara sentiu as pernas fraquejarem. A oferta dourada de Isadora, a ameaça bruta de Toni, o toque clínico de Viola, e agora a declaração raivosa e caótica de Kira. Ela estava cercada. Cada uma reivindicando-a à sua maneira violenta e distorcida.
Isadora levantou-se, seu rosto uma máscara de compostura fria, mas os olhos verdes faiscavam com uma irritação contida. "Joga isso fora," ela ordenou, sua voz recuperando a autoridade de veludo, mas agora com uma borda afiada. "Não deixe que ruídos insignificantes estragem uma conversa promissora." Ela estendeu a mão, não para pegar o papel, mas como se esperasse que Elara o entregasse, submetendo-se ao seu comando, apagando a intrusão de Kira.
Elara olhou para a palavra "MINHA" rabiscada em vermelho, depois para a mão estendida de Isadora, elegante e exigente. O ar filtrado da galeria, antes um alívio, agora parecia tão pesado quanto a névoa lá fora. O porto seguro oferecido era apenas outra gaiola, mais dourada, mas uma gaiola ainda assim. E lá fora, na névoa, outras predadoras, cada uma com sua própria marca de posse, esperavam sua vez. O Jardim de Sombras começava a revelar suas flores venenosas, e Elara estava plantada bem no centro.
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Atualizado até capítulo 31
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