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O Jardim das Sombras

Capítulo 1: Refúgio na Névoa

Capítulo 1:

O vento salgado cortava como lâminas finas, trazendo consigo o uivo constante do mar e o cheiro acre de algas apodrecendo entre as rochas negras. Névoa Salgada não era um refúgio; era uma rendição. Elara Costa apertou o fino casaco de lã contra o corpo, sentindo o tecido úmido grudar na pele. O ônibus que a trouxera da cidade grande, um monstro enferrujado que tossira fumaça preta pela serra abaixo, já desaparecera na cortina de névoa que dava nome ao lugar, deixando-a sozinha diante da paisagem desolada.

As casas, mais sombras do que estruturas definidas, encolhiam-se contra a falésia, pintadas em tons desbotados de azul, verde e um cinza que se fundia com o céu plúmbeo. Janelas escuras, como olhos cegos, observavam-na. O ar pesava, saturado não apenas de umidade, mas de um silêncio profundo, quebrado apenas pelo grito das gaivotas – sons agudos que pareciam rasgar o véu do mundo. Elara respirou fundo, tentando afogar o eco de pesadelos recentes, o sabor de pó e sangue que ainda lhe assombrava a garganta. Aqui, esperava encontrar o esquecimento. Aqui, esperava ser invisível.

A pensão "O Abrigo do Mar" era tão discreta quanto prometia no anúncio online desbotado. Uma construção de madeira envelhecida pelo sal, encravada entre rochedos musgosos. A placa rangia num ritmo fúnebre. Elara empurrou a porta, fazendo uma sineta de bronze tilintar com um som estridente que a fez estremecer.

O interior era quente, abafado, cheirando a sopa de peixe cozida em excesso e a cera de chão antiga. Uma mulher de idade indeterminada, com um rosto vincado como uma noz e olhos pequenos e perspicazes, surgiu por trás de um balcão de madeira escura.

“Elara Costa?” perguntou, a voz rouca como as pedras da praia.

“Sim”, respondeu Elara, forçando um sorriso tênue. “Reservei um quarto.”

A mulher – Dona Marta, como se apresentou brevemente – assentiu, observando-a com uma curiosidade que beirava a intrusão. Seus olhos pousaram nas olheiras profundas sob os olhos castanho-claros de Elara, na palidez que nem o frio conseguia disfarçar, na maneira como seus dedos trêmulos apertavam a alça da mala velha.

“Quarto do fundo. Mais quieto”, disse Dona Marta, entregando-lhe uma chave pesada e gelada. “Janta às sete. Não atrase.” Um aviso, não um convite.

O quarto era minúsculo, mobiliado com uma cama estreita, um armário manco e uma pequena janela que dava para os rochedos e o mar furioso abaixo. A névoa beijava os vidros, escondendo o horizonte. Elara deixou a mala cair no chão e encostou-se na porta, fechando os olhos. O silêncio aqui dentro era ainda mais profundo, mais opressivo. Era o silêncio de quem segura a respiração. Elara sentiu um frio que não vinha do vento percorrer sua espinha. Segura, ordenou a si mesma. Estás segura agora.

Mas os pesadelos não respeitavam paredes. Naquela noite, envolta em lençóis ásperos que cheiravam a mofo, Elara foi novamente arrancada do sono por imagens fragmentadas: luzes ofuscantes, o cheiro de gasolina queimada, gritos abafados pelo estrondo, e mãos… mãos tentando puxá-la para as trevas. Ela acordou com um soluço preso na garganta, o coração batendo como um pássaro enjaulado contra as costelas. A dor de cabeça, uma velha conhecida desde aquela noite, latejava nas têmporas com uma intensidade cruel. A névoa do lado de fora parecia ter invadido o quarto, sufocante.

Pela manhã, com o rosto ainda marcado pela insônia e a dor insistente, Elara soube que precisava de ajuda. Dona Marta, ao lhe servir um café amargo e pão duro, mencionou com indiferença: “Temos médico. Doutora Montenegro. Clínica perto do farol abandonado. Boa, dizem. Mas fria. Gélida.”

A caminho da clínica, Névoa Salgada revelou-se ainda mais estranha à luz difusa do dia. Pessoas caminhavam com passos apressados, cabeças baixas, evitando contato visual. O ar continuava pesado, carregado de um segredo coletivo. O farol abandonado, uma sentinela desgastada no topo de um penhasco, pairava sobre a vila como um aviso. A clínica da Dra. Montenegro ficava em um prédio de pedra cinza anexo a ele, discreto e imponente.

O interior era uma extensão da fachada: frio, estéril, imaculadamente limpo. O cheiro de antisséptico queimava as narinas de Elara. A recepcionista, uma mulher jovem com um sorriso plástico, anotou seus dados com eficiência robótica. “A Dra. Montenegro a atenderá em breve”, disse, o sorriso não alcançando os olhos.

A sala de espera era silenciosa, iluminada por lâmpadas fluorescentes que faziam tudo parecer pálido e sem vida. Elara sentiu-se exposta, como um espécime sob vidro. Passos firmes e medidos ecoaram no corredor, aproximando-se. A porta abriu-se.

A Dra. Viola Montenegro não era apenas fria; era uma escultura de gelo esculpida com precisão cirúrgica. Alta, magra, vestindo um jaleco branco impecável sobre um tailleur cinza-perolado, seu cabelo negro estava preso num coque tão severo que parecia puxar a pele de seu rosto. Seus olhos, de um cinza glacial e penetrante, fixaram-se em Elara com uma intensidade imediata que fez a jovem se encolher na cadeira de plástico duro. Não havia calor nesse olhar, apenas análise. Avaliação profunda, intrusiva.

“Elara Costa”, disse a médica. A voz era suave, controlada, mas carregada de uma autoridade inquestionável. Cada sílaba era pronunciada com uma clareza cortante. “Entre.”

O consultório era uma versão amplificada da sala de espera: branco, metálico, funcional. Uma grande janela oferecia uma vista desoladora para o farol e o mar agitado. Viola sentou-se atrás de uma escrivaninha imaculada, os dedos longos e finos entrelaçados. Seu olhar nunca se desviou de Elara.

“Dona Marta mencionou que recém chegou. Buscando… refúgio?” O tom era neutro, mas a palavra ‘refúgio’ foi carregada de um leve tom de desdém, como se fosse um conceito frágil, inútil.

Elara engoliu seco. “Sim. E… tenho tido fortes dores de cabeça. Insônia.”

“Dores de cabeça. Insônia.” Viola repetiu, como se catalogasse sintomas. Seus olhos escaneavam o rosto de Elara, pousando nas olheiras, na palidez, na ligeira tensão ao redor de sua boca. “Sintomas comuns. De stress. De trauma.” Ela não fez uma pergunta; fez uma afirmação. “Relata pesadelos?”

A pergunta direta, lançada com aquela frieza clínica, atingiu Elara como um golpe. Ela hesitou. “Às vezes.”

“Às vezes.” Viola anotou algo em um prontuário digital com dedos rápidos e precisos. “E o que estes pesadelos contêm, Elara?” O uso do primeiro nome foi súbito, íntimo, quase possessivo no contexto estéril.

Elara sentiu um novo calafrio. “Eu… não me lembro bem. Luzes. Barulho. Medo.” Ela evitou os detalhes, evitou as mãos.

Viola inclinou a cabeça levemente, estudando-a. “Medo é um fator debilitante. Enfraquece o sistema imunológico. Prejudica o julgamento.” Seus olhos cinza pareciam perfurar a carne, buscar as cicatrizes invisíveis. “Precisamos de um exame completo. Histórico detalhado. Para entender esta… fragilidade que você carrega.” A palavra ‘fragilidade’ saiu como um diagnóstico, mas também como uma observação pessoal, quase um fascínio.

Ela levantou-se, sua altura dominando o pequeno espaço. “Deite-se, por favor.” Apontou para a maca de exame coberta por papel cru. “Vou verificar seus sinais vitais. Pressão. Frequência cardíaca. Reações básicas.”

O toque de Viola, quando veio, foi tão frio quanto seu olhar. As luvas de látex eram geladas contra a pele de Elara. Os dedos pressionaram suavemente, mas com firmeza absoluta, o pulso de Elara, contando as batidas aceleradas. O estetoscópio foi um choque de frio contra o peito, sob a fina blusa. Elara fechou os olhos, tentando controlar a respiração, sentindo-se invadida. A proximidade da médica era opressora. Seu perfume, algo agudamente limpo e medicinal, enchia as narinas de Elara.

“Sua frequência cardíaca está elevada”, comentou Viola, sua voz próxima do ouvido de Elara. “Resposta ao medo? Ao stress? Ou… à minha presença?” A pergunta foi sussurrada, carregada de uma curiosidade clínica que beirava o perverso. Os dedos gelados deslizaram para o pescoço de Elara, apalpando os gânglios linfáticos com uma meticulosidade que fez a pele da jovem arrepiar. Era um toque invasivo, desnecessariamente prolongado, disfarçado de profissionalismo. Elara sentiu-se presa, como um inseto sob a lente de um microscópio, pertencente àquele olhar analítico e gelado.

“Você precisa de acompanhamento próximo, Elara”, continuou Viola, recuando apenas o suficiente para olhar diretamente para seus olhos. O cinza glacial agora tinha um brilho calculista. “Esta vulnerabilidade… esta beleza em meio ao caos interno… é um campo fértil para complicações. Volte na próxima semana. Traremos mais… clareza.” O termo ‘clareza’ soou como uma ameaça.

Elara saiu da clínica sentindo-se mais suja, mais exposta do que quando entrara. O ar salgado, antes opressivo, agora parecia uma bênção em comparação com o ambiente estéril e a posse silenciosa da Dra. Montenegro. Ela caminhou rápido, sem destino, tentando sacudir a sensação de que a médica havia deixado marcas invisíveis em sua pele, em sua alma.

Ao voltar para a pensão, já sob o crepúsculo que mergulhava Névoa Salgada em tons de púrpura e cinza profundo, Elara encontrou algo encostado na porta do seu quarto. Não era de Dona Marta. Era um pedaço de papel grosseiro, dobrado de forma irregular. Com dedos trêmulos, ela o abriu.

Dentro, não havia palavras. Apenas um desenho. Uma figura esguia e frágil (era ela, reconheceu com um novo choque de terror) cercada por seis pares de olhos estilizados, todos diferentes, todos fixos nela, todos possuindo uma intensidade avassaladora. Os olhos eram o foco, detalhados com traços obsessivos – um par frio e calculista, outro selvagem e antigo, outro ciumento e agressivo, outro manipulador e rico, outro caótico e perturbado, outro forte e disciplinador. Eles a engoliam visualmente na página. Abaixo da figura, rabiscado com uma linha instável, estava o contorno de um farol.

Não havia assinatura. Apenas os olhos. Observando. Cobiçando. Posse já anunciada em papel grosseiro.

Elara entrou no quarto e trancou a porta, encostando-se nela com força, o coração batendo loucamente contra as costelas. O refúgio transformara-se em palco. A névoa não a escondera. Ela estava vista. Desejada. E a primeira sombra, fria e meticulosa como um bisturi, já havia estendido sua posse. Névoa Salgada sussurrava segredos sombrios, e Elara, com o desenho aterrorizante apertado na mão, percebeu com um frio mortal na espinha: a caçada começara. E ela era a presa.

Capítulo 2: Olhos na sombra

Capítulo 2:

O desenho queimava na palma da mão de Elara como um carvão vivo. Ela o tinha escondido debaixo do colchão fino, mas sua presença permeava o pequeno quarto, um veneno subliminar no ar já pesado. Cada sombra no canto parecia esconder um par daqueles olhos rabiscados – o frio e calculista da Dra. Montenegro, o selvagem e antigo que aterrorizava sua intuição, os outros ainda desconhecidos, mas não menos ameaçadores. A noite foi um longo pesadelo acordado. Cada rangido da madeira envelhecida da pensão, cada grito distante de gaivota, era um passo se aproximando, uma respiração ofegante atrás da porta.

A manhã trouxe não alívio, mas uma névoa ainda mais espessa, engolindo o mundo além da janela. Elara vestiu-se com roupas simples, cores escuras, tentando se fundir às sombras de Névoa Salgada. Precisava de suprimentos, de uma sensação banal de normalidade que a ajudasse a afogar o grito interno. O mercado local era um labirinto apertado de barracas de madeira apodrecendo sob toldos encharcados, erguido na praça central, uma área pavimentada com pedras irregulares que lembravam lápides.

O cheiro era uma colisão violenta de sensações: peixe fresco com um brilho vítreo e morte próxima, frutas tropicais começando a fermentar no calor úmido, especiarias fortes e o odor persistente de salmoura e decadência. As pessoas se moviam como fantasmas na névoa, murmúrios baixos formando um zumbido constante, um ruído de fundo que parecia esconder palavras mais sinistras. Elara sentiu os olhos sobre ela antes mesmo de vê-los. Não eram os olhos do desenho, não ainda. Eram os olhos dos habitantes: curiosos, desconfiados, alguns carregando uma pitada de pena que beirava o desdém. Uma mulher mais velha, com uma rede de peixes, fitou-a por um tempo longo demais, os lábios finos apertados num fio. Um homem descarregando caixas parou seu trabalho, seguindo seus movimentos com um olhar pesado e inexpressivo. Era como se sua chegada, sua presença frágil e estrangeira, tivesse perturbado um equilíbrio precário.

Ela tentou se concentrar na tarefa: pão, frutas, talvez um pouco de queijo. Mas sua mão tremia ao pegar uma maçã, e a sensação de exposição era física, como se a pele estivesse sendo descascada pela observação coletiva. O ar, denso e salgado, parecia se solidificar em seus pulmões. Quando uma sombra alta e imponente bloqueou sua frente, Elara deu um salto para trás, quase derrubando uma pilha de laranjas.

"Desculpe," a voz era grave, áspera, como brita raspando em concreto. "Não vi você aí."

Elara ergueu os olhos, o coração disparado. A mulher diante dela era uma força da natureza encarnada. Alta, ombros largos sob um casaco de couro gasto aberto, revelando o uniforme azul-marinho desbotado da Polícia Municipal. Cabelos negros, curtos e desalinhados, emolduravam um rosto de traços fortes e uma mandíbula quadrada, marcado por uma leve cicatriz acima da sobrancelha esquerda. Mas eram os olhos que prendiam Elara: um castanho escuro, quase preto, queimando com uma intensidade inquieta, um fogo mal contido sob uma superfície áspera. Eles a escaneavam agora, da cabeça aos pés, com uma lentidão deliberada que não tinha nada de acidental. Era uma avaliação, uma apreciação possessiva disfarçada de olhar profissional.

"Antônia Rocha," ela disse, o nome saindo como um estalo. "Mas pode me chamar de Toni. Sou responsável por manter a ordem por aqui." Um sorriso se esticou em seus lábios, mas não alcançou aqueles olhos ardentes. Era um sorriso predatório. "Você é a nova. A botânica. Elara, certo?" Ela já sabia. É claro que sabia.

"Sim," Elara respondeu, a voz um fio mais alto que um sussurro. Ela apertou o cesto de compras contra o corpo, um escudo frágil.

"Lugar pacato, Névoa Salgada," Toni continuou, avançando um passo, reduzindo a distância entre elas. Elara sentiu o cheiro dela: couro, suor masculino e algo metálico, como sangue seco ou arma limpa. "Mas lugares pacatos... têm suas sombras. Coisas que se escondem na névoa." Seus olhos escuros perfuraram os de Elara. "Uma mulher sozinha, bonita como você... pode atrair o tipo errado de atenção."

A palavra "bonita" saiu como um rosnado baixo, carregada de uma posse que fez o estômago de Elara revirar. Não era um elogio; era uma demarcação.

"Estou... estou bem," Elara protestou fracamente, tentando desviar o olhar, mas os olhos de Toni eram como ganchos.

"Tem certeza?" Toni inclinou-se ligeiramente, sua voz baixando para um tom íntimo e ameaçador. "Ouvi dizer que teve um encontro com a Dra. Gelo ontem. E que parece ter passado uma noite ruim. Muito ruim." Ela observou as olheiras profundas sob os olhos de Elara, a palidez que a névoa não conseguia esconder. "Nem todos aqui querem ajudar, garota. Alguns só querem... possuir."

Elara sentiu um novo calafrio, diferente do frio da Dra. Montenegro. Este era quente, sufocante, cheio de uma ameaça latente. "Obrigada pelo aviso," ela murmurou, tentando se afastar.

Toni moveu-se com ela, bloqueando seu caminho novamente. Sua mão grande, coberta por uma luva de couro descascada nas pontas, levantou-se. Por um segundo, Elara temeu que ela a tocasse. Em vez disso, Toni apontou um dedo grosso para o próprio peito, onde o crachá de polícia brilhava opaco. "Eu posso ser essa proteção. Garantir que ninguém te incomode. Que ninguém chegue perto demais." O subtexto era claro: exceto eu. “Só precisa... cooperar. Me manter informada. Me deixar cuidar de você.”

A posse na voz de Toni era espessa, quase palpável. Ela não oferecia segurança; oferecia uma gaiola com grades de autoridade e desejo não disfarçado. Elara sentiu uma onda de pânico, misturada com uma raiva surpresa. "Eu não preciso de proteção," ela disse, com mais firmeza do que sentia.

Os olhos de Toni estreitaram, uma centelha perigosa cruzando o castanho escuro. O sorriso desapareceu. "Todo mundo precisa, querida," ela retrucou, a voz perdendo qualquer vestígio de falsa cordialidade. "Especialmente alguém com um passado... cheio de acidentes. Ruas molhadas, carros fora de controle... coisas trágicas." Ela deixou as palavras penderem no ar úmido.

Elara ficou paralisada. O sangue pareceu congelar em suas veias. Como ela sabia? Detalhes que ela enterrara, que mal conseguia enfrentar nos próprios pesadelos. A vulnerabilidade que ela tentava desesperadamente esconder estava exposta, dissecada por aqueles olhos ardentes e ciumentos.

"Sim," Toni sibilou, vendo o choque no rosto de Elara. "Sei coisas. Mantenho meus olhos abertos e meus ouvidos. Porque Névoa Salgada é minha. E tudo que entra nela... passa a ser de meu interesse." Ela avançou mais um passo, invadindo completamente o espaço pessoal de Elara. O cheiro de couro e ameaça era sufocante. "Então, vamos fazer assim: você me avisa onde está, com quem está. Me deixa te proteger. E eu garanto que aqueles olhos..." ela fez uma pausa dramática, seu olhar escuro mergulhando no de Elara com intensidade avassaladora, "...todos aqueles olhos que te observam... ficarão bem longe. Exceto os meus."

A ameaça era clara e multifacetada. Toni não apenas reivindicava posse, mas também insinuava conhecer os outros olhos, os do desenho, e prometia (ou ameaçava) ser um obstáculo para eles. A polícia corrupta era o lobo se oferecendo para guardar a ovelha. Elara sentiu náuseas. O mercado, os cheiros, os murmúrios, tudo parecia girar ao redor daquela figura dominadora de uniforme azul.

Antes que Elara pudesse responder, protestar ou fugir, a mão de Toni finalmente se moveu. Não para tocá-la no rosto, mas para agarrar seu braço, acima do cotovelo. A pressão foi imediata, firme, inescapável. Os dedos fortes, mesmo através do tecido da blusa e da luva descascada, afundaram na carne de Elara, marcando-a. Foi um gesto de controle absoluto, uma demonstração física da posse que ela reivindicava.

"Vamos começar agora," disse Toni, sua voz um comando baixo e áspero. Seu rosto estava perigosamente perto do de Elara. Ela podia ver os poros dilatados de sua pele, a linha de suor na têmpora, a chama possessiva queimando no fundo daqueles olhos negros. O cheiro dela, intenso e masculino, envolveu Elara como uma névoa tóxica. "Me acompanhe. Vou te levar até a pensão. Garantir que chegue segura.E no caminho... você me conta mais sobre essas dores de cabeça. Sobre esses pesadelos." O tom era de ordem, não de oferta. “Preciso saber tudo sobre o que te assusta, Elara. Só assim posso manter você... segura. “A ênfase na última palavra era obscena.

A pressão no braço aumentou, guiando Elara para frente, tirando-a do mercado, mergulhando-a mais fundo nas sombras úmidas de uma rua lateral. Elara caminhava ao lado de Toni, seu coração martelando contra as costelas, o braço latejando sob o aperto implacável. Cada passo era uma rendição forçada. Os olhos dos moradores que os viam passar pareciam rapidamente se desviar, temerosos. Toni não estava apenas a reivindicando; estava exibindo sua posse perante a cidade. A névoa, agora, parecia menos um refúgio e mais o véu que escondia os monstros. E o mais próximo, o mais visceral deles, tinha mãos fortes, olhos ciumentos e um crachá que garantia sua impunidade.

Enquanto eram engolidas pela névoa mais espessa da rua deserta, Elara teve a certeza de sentir, por um breve instante, outro par de olhos observando das sombras de um beco. Olhos que não eram castanho-escuros e ciumentos, mas de um âmbar antigo e selvagem, que pareciam brilhar com uma luz própria antes de desaparecerem, deixando apenas a impressão de um aviso silencioso e a silhueta distante do farol abandonado contra o céu de chumbo. A caçada, de fato, tinha múltiplos caçadores. E a presa estava sendo conduzida diretamente para a toca de um deles.

Capítulo 3: A Galeria das Almas

Capítulo 3:

O aperto de Toni no braço de Elara era como uma algema de carne. Cada passo na rua lateral, mais estreita e sombria que as principais, ecoava a rendição forçada. O cheiro de couro envelhecido, suor e pólvora não lavada da policial era um véu tóxico ao redor de Elara, sufocando o ar salgado que ela desesperadamente queria tragar. A névoa, agora uma cortina opalescente, ocultava os telhados escorrendo e as janelas cegas, transformando Névoa Salgada num palco vazio para o teatro da posse de Toni.

"Relaxa," rosnou Toni, sem um traço de suavidade. Os dedos dela contraíram-se, fazendo Elara estremecer. "Só tô fazendo meu trabalho. Garantindo que florzinha frágil como você não seja pisoteada nesse lamaçal." O apelido, "florzinha", saiu como um insulto disfarçado de carinho perverso. "Agora, fala. Esses pesadelos. O que *realmente* te acorda gritando?"

Elara engoliu o medo, um nó duro na garganta. O passado, o acidente, as mãos tentando arrastá-la para as trevas sob o estrondo... eram feridas que ela mantinha seladas a sete chaves. Confessá-las a essa mulher, com seus olhos ciumentos e sede de controle, era como entregar uma faca afiada. "São... só pesadelos," ela murmurou, olhando para as pedras molhadas sob seus pés. "Fragmentos. Luzes. Nada coerente."

Toni soltou um riso curto, áspero. "Fragmentos, hein? Coerente o bastante pra te deixar com cara de fantasma e pulando com sombras." Ela puxou Elara mais perto, forçando-a a tropeçar. O corpo forte da policial era uma barreira quente e inflexível. "Tô te dando uma chance de ser sincera, florzinha. Pra gente ter confiança. Pra minha *proteção* funcionar direito. Se você esconde coisas..." Ela fez uma pausa dramática, inclinando a cabeça para que seu hálito quente, carregado de café barato, atingisse o rosto de Elara. "...fica difícil garantir que *outros* interesses não cheguem até você. A Doutora Gelo, por exemplo. Ou aquela artista maluca que vive rabiscando porcaria."

O nome de Kira, a artista perturbada, caiu como uma pedra no poço do estômago de Elara. Toni sabia. Sabia do desenho. A sensação de estar completamente exposta, cercada, era insuportável. "Eu não escondo nada relevante," Elara insistiu, a voz um fio de tensão.

"Tudo sobre você é relevante pra mim agora," Toni retrucou, o olhar escuro queimando com posse. "Principalmente quem te interessa. Quem te olha. Quem te *toca*." A última palavra foi sibilada com um ciúme virulento. "A Dra. Montenegro te tocou, né? Naquele 'exame' dela? Onde? Como?"

A pergunta era uma violência. Elara sentiu o rosto queimar de vergonha e raiva impotente. "Foi um exame médico. Rotineiro."

"Rotineiro," Toni repetiu, cética, o aperto no braço de Elara tornando-se quase doloroso. "Nada é rotineiro com aquela vampira de jaleco. Ela vê carne fresca e quer marcar território. Mas você é minha, entendeu? *Minha* para proteger. *Minha* para saber." Seu olho caiu na nuca exposta de Elara, onde os dedos frios de Viola haviam apalpado os gânglios. "Ela tocou aqui? Aqui?" A mão livre de Toni levantou-se, ameaçando repetir o gesto invasivo.

Antes que os dedos ásperos pudessem alcançar sua pele, um som suave e dissonante interrompeu a cena opressora. Uma campainha delicada, como cristal sendo tocado sob a água, soou ao fundo. Elara e Toni se viraram instintivamente.

Eles haviam emergido numa pequena praça, menos sombria que as ruas laterais, dominada por uma construção que parecia desafiar a decadência de Névoa Salgada. Era uma galeria de arte. "A Galeria Vale", anunciava uma placa de bronze discreta. As paredes eram de pedra clara e vidro fumê, linhas modernas e limpas que cortavam a névoa com arrogância silenciosa. Através do vidro, vislumbravam-se manchas de cores intensas e formas perturbadoras emolduradas por luzes cuidadosamente posicionadas. Era um oásis de sofisticação artificial, uma bolha de riqueza e controle em meio ao caos úmido da vila.

Parada na porta aberta, enquadrada pela moldura de aço escuro, estava uma mulher. Isadora Vale. Ela não precisava se apresentar. Sua presença era uma declaração. Alta, esguia, vestindo um vestido de seda cor de vinho que caía como um líquido pesado sobre seu corpo, ela irradiava uma autoridade calma e gelada. Seu cabelo, prateado e cortado num estilo impecavelmente curto, realçava um rosto de traços nítidos, quase esculturais. Olhos de um verde profundo e calculista, como lagos florestais sob uma fina camada de gelo, observavam a cena na praça – especificamente, o aperto de Toni no braço de Elara – com um interesse que era ao mesmo tempo acadêmico e profundamente possessivo.

"Antônia," Isadora cumprimentou, a voz suave como veludo, mas carregada de uma autoridade que fez até Toni hesitar. "Sempre tão... *vigilante*." O verde glacial dos olhos de Isadora deslizou para Elara, escaneando-a da cabeça aos pés com uma eficiência que rivalizava com a de Viola, mas infinitamente mais sedutora. "E você deve ser a nova residente que tanto tem dado o que falar. Elara Costa, não é?"

O aperto de Toni no braço de Elara relaxou um pouco, não por vontade, mas pela força invisível da presença de Isadora. A policial endireitou-se, tentando recuperar a pose dominadora, mas parecia menor diante da elegância cortante da galerista. "Isadora. Apenas garantindo que a novata entenda como as coisas funcionam por aqui."

"Compreensível," Isadora assentiu, um leve sorriso tocando seus lábios finos. Era um sorriso que não prometia gentileza, mas reconhecimento. "Névoa Salgada pode ser... *intensa* para recém-chegados. Especialmente almas sensíveis." Os olhos verdes voltaram a pousar em Elara, avaliando sua palidez, os vestígios de tensão ao redor dos olhos, a vulnerabilidade que parecia emanar dela como um perfume. "Estava justamente pensando em convidá-la para dar uma olhada na minha modesta coleção. Um pouco de beleza pode ser um bálsamo para os sentidos, não acha?" O convite era uma ordem disfarçada, um desafio sutil à posse que Toni tentava estabelecer.

Toni apertou o queixo. "Ela está sob minha proteção, Isadora. Tem lugares pra ir."

"Proteção?" Isadora ergueu uma sobrancelha perfeitamente delineada, o tom de voz mantendo-se suave, mas o subtexto era cortante. "Que admirável. Mas uma xícara de chá e uma contemplação artística dentro da galeria dificilmente constituem perigo, Antônia. A menos que você tema que minhas paredes sejam hostis?" O sorriso reapareceu, ligeiramente mais afiado. "Deixe-a respirar um pouco. O ar dentro da galeria é... filtrado. Muito mais adequado para uma flor delicada do que a névoa salgada." A repetição do apelido que Toni usara foi uma facada sutil, roubando-lhe o termo.

A tensão entre as duas mulheres era palpável, um cabo de guerra invisível com Elara como o prêmio. Toni rosnou baixo, seus olhos negros faiscando entre Isadora e Elara. Ela sabia que desafiar Isadora abertamente, especialmente em seu território, era insensato. A galerista tinha influência, dinheiro, conexões que iam muito além da autoridade de uma policial corrupta numa vila isolada.

"Uma hora," Toni cedeu, o tom carregado de ameaça. Ela soltou o braço de Elara de uma vez, mas não sem antes dar um último aperto de advertência. Os dedos deixaram marcas vermelhas na pele. "Ela tem compromissos. Comigo." O olhar que lançou a Elara era uma promessa de interrogatório mais tarde. "Não se demore, *florzinha*." O apelido soou como uma marca de propriedade antes de ela se virar e desaparecer na névoa com passos pesados, sua silhueta uma sombra raivosa que se dissipou.

Elara ficou parada, esfregando inconscientemente o braço dolorido, o coração batendo forte contra as costelas. A libertação física de Toni era temporária, ela sabia. Tinha apenas trocado um carrasco por outro. Mas a presença de Isadora, embora igualmente ameaçadora, era... diferente. Menos brutal, mais insidiosa.

"Venha, querida," Isadora disse, o sorriso agora mais caloroso, mas os olhos verdes permaneciam lagos gélidos. Ela fez um gesto gracioso em direção ao interior da galeria. "Ignore os modos rústicos da Antônia. Ela tem seu valor para manter a... *ordem bruta* da vila, mas a verdadeira sofisticação, a verdadeira beleza, reside em outro lugar."

Elara hesitou por um segundo. Entrar naquela galeria era como adentrar a toca da aranha. Mas a rua, com a névoa escondendo Toni e quem mais pudesse estar observando, parecia mais perigosa. Ela seguiu Isadora para dentro.

O interior da Galeria Vale era um choque sensorial. O ar era fresco, seco, perfumado com uma fragrância amadeirada e cara que anulava completamente o cheiro do mar. A iluminação era baixa e dramática, focada nas obras de arte que pendiam das paredes brancas imaculadas ou repousavam em pedestais de mármore negro. As peças eram contemporâneas, muitas abstratas, outras figurativas de uma forma distorcida e perturbadora. Cores vibrantes gritavam contra fundos escuros; formas orgânicas se contorciam como criaturas em agonia; olhos estilizados, semelhantes aos do desenho de Kira, mas infinitamente mais refinados e caros, pareciam segui-la pela sala.

"Uma coleção pessoal," Isadora explicou, caminhando com passos silenciosos sobre o piso de madeira escura polida. "Peças que falam da alma humana. De suas luzes... e de suas sombras mais profundas." Ela parou diante de uma grande tela que dominava uma parede. Era predominantemente preta, mas riscos de vermelho-sangue e branco-osso formavam uma figura feminina distorcida, parecendo tanto flutuar quanto estar presa na tela. "Esta, por exemplo. 'A Ancorada'. Fala do desejo de liberdade... e das correntes que criamos para nós mesmas. Ou que permitimos que outros nos coloquem." Seus olhos verdes desviaram-se da tela para Elara, escrutinando sua reação.

Elara sentiu-se nua sob aquele olhar. A imagem era perturbadoramente familiar, ecoando sua própria sensação de encurralamento. "É... intensa," ela murmurou, incapaz de encontrar palavras melhores.

"Como você," Isadora respondeu, o tom suave, quase um carinho verbal. Ela se aproximou, o perfume caro envolvendo Elara como uma seda invisível. "Há uma beleza frágil em você, Elara. Uma luminosidade que brilha mesmo através da... névoa que você carrega. É raro. Fascinante." Sua mão, adornada apenas com um anel de prata simples mas de design pesado e antigo, levantou-se. Por um instante, Elara temeu que ela tocasse seu rosto, como Toni ameaçara. Mas Isadora apenas indicou uma pequena escultura em uma vitrine iluminada. Era uma flor feita de vidro opaco, lindamente trabalhada, mas com espinhos afiados e negros saindo do caule. "Como esta 'Rosa de Obsidiana'. Delicadeza e perigo. Uma combinação irresistível para um colecionador."

A palavra "colecionador" pairava no ar, carregada de intenção. Elara sentiu um frio percorrer sua espinha, diferente do frio de Viola ou do calor opressivo de Toni. Era o frio de ser avaliada, catalogada, cobiçada como um objeto de valor.

"Fiquei sabendo que você busca um recomeço," Isadora continuou, seus passos levando-as para uma área mais íntima da galeria, com duas poltronas de couro preto elegante voltadas para uma escultura menor, mais íntima – um emaranhado de fios de prata que pareciam formar e desfazer rostos chorosos. "Névoa Salgada pode ser um lugar difícil para recomeços sozinha. As redes aqui são... complexas. E frágeis podem se perder nelas." Ela sentou-se em uma das poltronas, indicando que Elara fizesse o mesmo. Era menos um convite e mais uma expectativa.

Elara sentou-se, sentindo-se minúscula e exposta na poltrona ampla. "Estou... me adaptando," ela disse, cautelosa.

Isadora sorriu, um reflexo calculado nos lábios. "Adaptação requer recursos, querida. Conexões. Proteção de um tipo diferente da que Antônia oferece." Os olhos verdes fixaram-se nela, hipnóticos. "Eu poderia ser essa conexão. Tenho influência. Conheço pessoas que podem abrir portas... ou fechá-las firmemente." A ameaça estava lá, sutil, envolta em seda. "Trabalho ocasional na galeria, talvez? Um pequeno apartamento acima, mais confortável e seguro que a pensão da Dona Marta? Tudo pode ser providenciado." Ela inclinou-se ligeiramente para frente, o perfume intensificando-se. "Em troca... apenas sua presença. Sua companhia em eventos ocasionais. Sua... beleza, para iluminar meus espaços. E sua confiança, é claro. Para que eu possa ser seu verdadeiro porto seguro nestas águas turbulentas."

Era uma oferta tentadora, uma corda salva-vidas lançada no mar da vulnerabilidade de Elara. Mas o preço estava claro: tornar-se uma posse, uma peça na coleção de Isadora. Uma "Rosa de Obsidiana" em exibição, protegida, mas espetada num pedestal, pertencente.

Antes que Elara pudesse responder, um movimento rápido e sombrio na vitrine do lado oposto chamou sua atenção. Algo pequeno e escuro foi empurrado por uma fresta na base da janela externa, caindo no carpete grosso com um leve *tap*. Era outro pedaço de papel, dobrado de forma agressiva.

Isadora seguiu seu olhar, uma ligeira ruga de desagrado aparecendo entre suas sobrancelhas perfeitas. "Ah, os incômodos da vila," ela murmurou, mas sua voz tinha perdido um pouco da suavidade. "Kira e seus... rabiscos histéricos. Ignore. Lixo não merece atenção."

Mas Elara já se levantara, movida por um impulso de terror e fascínio. Ela pegou o papel. Desta vez, não era um desenho. Era uma palavra, rabiscada com força, quase rasgando o papel, em vermelho que parecia tinta... ou batom:

**MINHA.**

A letra era instável, furiosa, possessiva. Abaixo da palavra, um único olho estilizado, cheio de raiva e desejo perturbado, foi desenhado. O olho de Kira.

Elara sentiu as pernas fraquejarem. A oferta dourada de Isadora, a ameaça bruta de Toni, o toque clínico de Viola, e agora a declaração raivosa e caótica de Kira. Ela estava cercada. Cada uma reivindicando-a à sua maneira violenta e distorcida.

Isadora levantou-se, seu rosto uma máscara de compostura fria, mas os olhos verdes faiscavam com uma irritação contida. "Joga isso fora," ela ordenou, sua voz recuperando a autoridade de veludo, mas agora com uma borda afiada. "Não deixe que ruídos insignificantes estragem uma conversa promissora." Ela estendeu a mão, não para pegar o papel, mas como se esperasse que Elara o entregasse, submetendo-se ao seu comando, apagando a intrusão de Kira.

Elara olhou para a palavra "MINHA" rabiscada em vermelho, depois para a mão estendida de Isadora, elegante e exigente. O ar filtrado da galeria, antes um alívio, agora parecia tão pesado quanto a névoa lá fora. O porto seguro oferecido era apenas outra gaiola, mais dourada, mas uma gaiola ainda assim. E lá fora, na névoa, outras predadoras, cada uma com sua própria marca de posse, esperavam sua vez. O Jardim de Sombras começava a revelar suas flores venenosas, e Elara estava plantada bem no centro.

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