Toque de Ferro

Capítulo 4:

A palavra "MINHA", rabiscada em vermelho agressivo, queimava na palma da mão de Elara como uma brasa. O ar filtrado e perfumado da Galeria Vale de repente pareceu sufocante, uma gaiola dourada oferecida por uma colecionadora cujo olhar verde-gelo prometia posse tão absoluta quanto o aperto de Toni, apenas mais sofisticada. A mão estendida de Isadora, esperando a submissão silenciosa de Elara ao descartar a intrusão caótica de Kira, era outro tipo de algema.

"Com licença," Elara murmurou, a voz mais firme do que esperava. Ela não entregou o papel. Em vez disso, fechou o punho ao redor dele, sentindo a borda áspera cortar levemente a pele. Virou-se e caminhou em direção à saída, sentindo o peso do olhar calculista de Isadora perfurando suas costas. O silêncio da galeria, antes sereno, tornou-se opressivo, cheio de julgamento não dito. Ela não precisava olhar para trás para saber que o sorriso cortante de Isadora havia desaparecido, substituído por uma linha fina de desagrado. A "Rosa de Obsidiana" recusara seu pedestal.

A névoa lá fora foi um alívio brevemente abrasivo. Elara respirou fundo, o ar salgado misturando-se ao resíduo do perfume caro que grudara nela. A palavra de Kira pulsava em sua mente: MINHA. Era uma declaração de guerra primitiva, tão direta quanto o aperto de Toni, tão possessiva quanto a avaliação de Viola e a oferta dourada de Isadora. Cada encontro a deixava mais encurralada, mais ciente de que a fragilidade que buscara esconder era justamente o que as atraía como abutres.

Preciso ser mais forte,o pensamento surgiu, claro e frio, no turbilhão do seu medo. Não apenas emocionalmente. Fisicamente. A sensação de impotência sob as mãos de Toni, sob o toque invasivo de Viola, era insuportável. Ela não queria mais ser arrastada, examinada, reivindicada. Queria ter a força para dizer não é fazer valer.

Foi assim que ela encontrou o lugar. Não por indicação de Dona Marta ou por um anúncio desbotado, mas por acaso, enquanto vagava por ruas laterais, tentando se perder na névoa. Uma placa de madeira escura, simples, pendurada sobre uma porta de ferro reforçado: Academia Silveira - Artes Marciais e Defesa Pessoal. A fachada era sóbria, funcional, sem janelas para a rua. Parecia um refúgio de concreto e disciplina em meio à decadência úmida. Um lugar onde a força era cultivada, não explorada.

Dentro, o ar era diferente. Não era o frio estéril da clínica de Viola, nem a sofisticação opressiva da galeria de Isadora, nem a ameaça bruta que emanava de Toni. Era quente, úmido, saturado com o cheiro de suor honesto, borracha de tatame e um leve traço de óleo para armas. O som de impactos surdos – chutes em sacos pesados, quedas controladas no chão – ecoava de um espaço maior além de uma pequena recepção vazia. Era um cheiro e um som de esforço, de foco, de poder contido.

Elara hesitou no limiar. O lugar emanava uma energia masculina, intensa. Mas era uma energia que prometia autonomia, não posse. Pelo menos, era o que ela esperava.

"Precisa de algo?"

A voz veio de trás dela, da rua. Baixa, rouca, mas carregando uma autoridade inquestionável que fez Elara se virar bruscamente.

A mulher encostada no batente da porta, observando-a com olhos escuros e avaliadores, era a personificação da força que o lugar exalava. Ravena Silveira. Alta, quase tão alta quanto Toni, mas onde a policial era força bruta e volume, Ravena era densidade pura. Cordas de músculos definidos eram visíveis sob uma camiseta preta justa e calças de tactel. Seus braços cruzados exibiam tatuagens discretas – padrões geométricos e linhas que pareciam fluir com a definição muscular. Seu rosto era angular, forte, com uma mandíbula quadrada e lábios finos. Cabelos curtos, negros como azeviche, cortados de forma prática, emoldurando olhos tão escuros quanto os de Toni, mas sem o fogo descontrolado. Estes olhos eram como aço temperado: frios, focados, impenetráveis. Observaram Elara com a mesma intensidade calculista de Viola, mas sem o disfarce clínico. Era uma avaliação crua, física.

"Eu... estava procurando aulas," Elara começou, sentindo-se minúscula e macia sob aquele olhar. "Defesa pessoal."

Ravena não sorriu. Um único aceno de cabeça, lento. Seus olhos percorreram o corpo de Elara, da cabeça aos pés, com uma objetividade que poderia ter sido insultuosa se não fosse tão direta. Avaliaram sua postura, sua estrutura óssea, a palidez, os vestígios de tensão nos ombros, a vulnerabilidade que parecia emanar dela.

"Por quê?" A pergunta foi um tiro direto.

Elara engoliu. "Para me sentir... mais segura."

Os olhos de aço de Ravena fixaram-se nos dela. "Segurança não é um sentimento. É uma capacidade. Construída." Ela desencostou-se da porta, movendo-se com uma graça fluida e econômica que falava de poder perfeitamente controlado. "Você é frágil." A declaração foi um fato, não um insulto. "Magra. Tensão nos ombros indica medo crônico. Postura defensiva." Ela parou diante de Elara, sua presença física impondo respeito e uma leve ameaça. "O que, ou quem, te assusta tanto, garota?"

A pergunta direta, lançada com aquela frieza marcial, foi mais difícil de enfrentar do que as insinuações de Toni ou as manipulações de Isadora. Elara desviou o olhar. "A vida. Névoa Salgada."

Ravena soltou um grunhido baixo que poderia ter sido um riso curto ou desdém. "A névoa é só ar úmido. O perigo tem rosto. E intenção." Seu olhar escuro manteve-se fixo em Elara, parecendo ler mais do que ela dizia. "Quer aprender a quebrar rostos? A desviar intenções?" Um brilho quase imperceptível, duro e desafiador, surgiu nos olhos de aço. "Pode ser doloroso. Muito."

Elara ergueu o queixo, sentindo uma centelha de determinação acender dentro dela, alimentada pela raiva contra todas elas – Toni, Viola, Isadora, Kira, e até esta mulher intimidante. "Mais doloroso do que não saber?"

Pela primeira vez, algo que poderia ser interpretado como interesse – ou posse antecipada – cruzou o rosto impassível de Ravena. Um leve estreitar dos olhos. "Resposta decente. Vamos ver se o corpo acompanha o espírito." Ela virou-se. "Vem."

O dojô era um vasto salão de concreto, iluminado por luzes fluorescentes cruas. Tatames grossos cobriam parte do chão. Sacos de pancada pesados pendiam de vigas. Alguns alunos – a maioria homens musculosos, suados – praticavam formas ou lutavam em duplas, sob o olhar atento de um instrutor assistente. Todos os olhos se voltaram para Elara quando ela entrou atrás de Ravena. A sensação de ser um cordeiro entrando num covil de lobos foi intensa.

Ravena ignorou as atenções. Caminhou até um espaço vazio no tatame. "Tira os sapatos." Ela própria estava descalça, os pés fortes e enraizados no chão. "A primeira lição: postura."

Elara obedeceu, os pés descalços sentindo o frio áspero do tatame. Ravena aproximou-se.

"Pés na largura dos ombros," ela ordenou, a voz um comando. "Joelhos ligeiramente flexionados. Não travados. Centro de gravidade baixo." Suas próprias mãos, grandes e fortes, com nós dos dedos proeminentes e cicatrizes antigas, levantaram-se. Elara esperou que ela a tocasse para ajustar, como Ravena fazia com outros alunos à distância. Mas Ravena não o fez. Apenas observou, crítica.

Elara tentou imitar a postura estável da mestra, sentindo-se desajeitada, exposta.

"Pior do que eu pensava," Ravena declarou sem rodeios. "Você se encolhe. Tenta desaparecer. Isso te faz mais vulnerável, não menos." Finalmente, ela se moveu. Não com um toque corretivo gentil, mas com um movimento rápido e decisivo. Uma mão forte agarrou o quadril de Elara, outra pressionou entre suas omoplatas. "Estenda a coluna! Estenda!“O comando foi cortante. Os dedos de Ravena eram como garras de ferro, reposicionando-a com força, sem delicadeza. A pressão no quadril e nas costas foi invasiva, dominadora. Elara sentiu um misto de dor e vergonha.

"Melhor," Ravena sibilou perto de seu ouvido. Seu hálito quente, sem perfume, apenas o cheiro limpo do esforço, contrastava com a frieza de seu tom. "Agora, mantenha. O centro é seu poder. Seu controle. Se você não controla seu centro..." De repente, Ravena aplicou uma leve pressão no ombro de Elara. Desequilibrada, Elara cambaleou para frente, direto nos braços fortes que a agarraram antes que caísse.

O contato foi violento. O corpo duro e musculoso de Ravena contra o seu, macio e despreparado. Os braços que a envolveram não eram protetores; eram como barras de aço, prendendo-a com força. Elara ficou imóvel, a respiração presa, o rosto pressionado contra o tecido áspero da camiseta de Ravena, sentindo o calor e a força pulsante que emanava dela. Era uma prisão instantânea, uma demonstração brutal de superioridade física.

"...você pertence a quem o controlar," Ravena terminou a frase, sua voz um murmúrio áspero contra o cabelo de Elara. Os braços não soltaram imediatamente. Ela manteve Elara presa por um segundo a mais do que o necessário, os dedos pressionando suas costelas, sua mão grande espalmada contra as costas de Elara, sentindo cada curva, cada ponto de fraqueza. O olhar de aço de Ravena encontrou o de Elara quando ela finalmente se afastou o suficiente para olhar para baixo. Havia uma avaliação ali, diferente da clínica de Viola ou da cobiça de Isadora. Era a avaliação de um predador que encontra uma presa interessante, que decide treiná-la para seu próprio propósito, para talvez possuí-la de uma forma mais completa: moldando-a.

"De novo," Ravena ordenou, recuando. Seus olhos não se desviaram de Elara. "Postura. Centro. Controle. Não quero ter que segurar você toda vez que alguém te empurrar, garota." O subtexto era claro: ou você aprende a se defender, ou será minha para proteger. E proteger, para Ravena Silveira, significava possuir, moldar, controlar.

A sessão que se seguiu foi um inferno controlado. Ravena era uma instrutora implacável. Cada movimento era dissecado, cada erro corrigido com mãos fortes que marcavam a pele de Elara com pressão e força bruta. Um toque para endireitar o braço, uma pressão áspera para afundar o quadril, um puxão brusco para ajustar a posição do pé. Cada contato era uma invasão, uma reafirmação do poder de Ravena sobre seu corpo, sobre seu espaço. Era doloroso, humilhante, mas também... eletrizante. Havia uma perversidade no modo como Ravena a manuseava, uma posse disfarçada de instrução. Elara sentia raiva, mas também uma estranha centelha de excitação perigosa, alimentada pela intensidade crua daquela mulher e pelo desejo genuíno de absorver um pouco daquela força inabalável.

Quando Ravena finalmente chamou o fim da sessão, Elara estava encharcada de suor, tremendo de exaustão, com marcas vermelhas onde as mãos de ferro da mestra a haviam agarrado e reposicionado. Mas também havia uma faísca nos seus olhos, uma determinação feroz que não existia antes.

"Volte amanhã. Mais cedo," Ravena ordenou, enxugando o rosto com uma toalha, observando Elara se curvar para pegar os sapatos com dificuldade. "Tem potencial. Cru. Muito cru. Mas potencial." O elogio soou como uma sentença. "Vou moldá-lo. Vou torná-lo forte." Os olhos de aço fixaram-se nela. "Mas a força tem um preço. Obediência. Dedicação. Minha orientação."

O preço estava claro novamente. Ravena não oferecia apenas força; oferecia uma nova forma de posse. Ela moldaria Elara, a tornaria forte, mas a faria sua criação. Sua discípula. Sua.

Elara saiu da academia cambaleando, cada músculo gritando, mas com a cabeça erguida. A névoa da tarde estava mais espessa, transformando as ruas em túneis fantasmagóricos. Enquanto virava a esquina em direção à pensão, uma figura conhecida emergiu da bruma, como uma aparição planejada.

Dra. Viola Montenegro. Alta, impecável em seu casaco de lã cinza sobre o jaleco branco, parecendo intocada pelo clima úmido. Seus olhos cinza-gelo escanearam Elara da cabeça aos pés, detendo-se nas marcas vermelhas nos braços, na sujeira do tatame nas calças, na exaustão palpável que emanava dela. Um leve arquejar de desaprovação – ou talvez fascínio perturbado – cruzou seu rosto impassível.

"Senhorita Costa," cumprimentou, a voz um sopro controlado que cortou a névoa. "Parece ter se submetido a... atividades vigorosas." O olhar clínico foi invasivo, analisando cada tremor, cada suor. "Isso é altamente desaconselhável, dado seu estado de vulnerabilidade física e psicológica."

Elara tentou passar por ela, mas Viola moveu-se com precisão, bloqueando seu caminho. "Meu exame inicial indicou estresse extremo. Sua frequência cardíaca hoje," os olhos cinza pousaram no pescoço de Elara, onde a veia pulsava visivelmente, "parece confirmar isso. Agora, estes traumas físicos superficiais..." Ela indicou as marcas vermelhas com um gesto preciso do queixo. "São uma agressão desnecessária ao seu sistema já debilitado."

"Eu estou bem," Elara protestou, a voz rouca pela exaustão.

"Subjetivamente, talvez. Objetivamente, os dados apontam o contrário." Viola abriu sua maleta de couro fina. "Preciso verificar esses hematomas. Avaliar se há lesões musculares. A dor de cabeça retornou?" A pergunta foi lançada como uma armadilha.

"Dra. Montenegro, eu só quero ir para casa," Elara disse, tentando conter a irritação.

"E eu quero garantir que tenha uma casa para onde ir amanhã, sem complicações evitáveis," Viola retrucou, sua voz mais firme. "A negligência com a própria saúde é um sintoma, Elara. De desespero. Ou de uma imprudência perigosa." Ela tirou uma pequena lanterna. "Olhe para mim." O comando foi inquestionável.

Relutantemente, Elara obedeceu. Os dedos gelados de Viola, mesmo sem luvas desta vez, tocaram seu queixo, ajustando sua cabeça. A lanterna brilhou em seus olhos, cega e invasiva. "Pupilas dilatadas. Fadiga extrema." Os dedos deslizaram para o pescoço, apalpando os gânglios novamente, com a mesma meticulosidade intrusiva do primeiro encontro. "Tensão muscular acentuada." O toque foi rápido, profissional, mas profundamente violador no contexto da rua, da névoa, da exaustão de Elara. Era um lembrete: seu corpo não era seu. Era um território a ser examinado, catalogado, possuído pela ciência fria de Viola.

"Você precisa descansar. E precisa do acompanhamento adequado," Viola declarou, guardando a lanterna. "Volte à clínica amanhã. 10 horas. Não seja negligente consigo mesma." O tom era uma ordem, disfarçada de preocupação médica. "Deixe essas... atividades brutas... para quem tem constituição para elas. Seu corpo requer meu cuidado. Minha supervisão."

Ela deu um passo para o lado, liberando o caminho, mas seu olhar glacial permaneceu fixo em Elara, reivindicando-a de volta para seu domínio clínico. O toque, o exame rápido na rua, a intimação para a clínica – tudo reforçava a posse silenciosa e meticulosa de Viola.

Elara continuou caminhando, sentindo o peso de todos os olhos sobre ela: o aço implacável de Ravena, o gelo clínico de Viola, o verde calculista de Isadora, o castanho-escuro ciumento de Toni, o âmbar selvagem de Lys e o olho perturbado de Kira. Cada passo era uma batalha. Cada dor muscular, uma lembrança das mãos que a moldavam, examinavam, reivindicavam. Elara apertou os punhos, sentindo as unhas cortarem a palma das mãos. A raiva, agora misturada à exaustão e àquela centelha perigosa despertada por Ravena, era um fogo frio queimando dentro dela. Elas queriam uma flor frágil? Elas queriam uma presa? Talvez fosse hora de mostrar que até as flores mais delicadas tinham espinhos. E que presas, quando encurraladas, podiam aprender a morder.

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