Capítulo 2: Olhos na sombra

Capítulo 2:

O desenho queimava na palma da mão de Elara como um carvão vivo. Ela o tinha escondido debaixo do colchão fino, mas sua presença permeava o pequeno quarto, um veneno subliminar no ar já pesado. Cada sombra no canto parecia esconder um par daqueles olhos rabiscados – o frio e calculista da Dra. Montenegro, o selvagem e antigo que aterrorizava sua intuição, os outros ainda desconhecidos, mas não menos ameaçadores. A noite foi um longo pesadelo acordado. Cada rangido da madeira envelhecida da pensão, cada grito distante de gaivota, era um passo se aproximando, uma respiração ofegante atrás da porta.

A manhã trouxe não alívio, mas uma névoa ainda mais espessa, engolindo o mundo além da janela. Elara vestiu-se com roupas simples, cores escuras, tentando se fundir às sombras de Névoa Salgada. Precisava de suprimentos, de uma sensação banal de normalidade que a ajudasse a afogar o grito interno. O mercado local era um labirinto apertado de barracas de madeira apodrecendo sob toldos encharcados, erguido na praça central, uma área pavimentada com pedras irregulares que lembravam lápides.

O cheiro era uma colisão violenta de sensações: peixe fresco com um brilho vítreo e morte próxima, frutas tropicais começando a fermentar no calor úmido, especiarias fortes e o odor persistente de salmoura e decadência. As pessoas se moviam como fantasmas na névoa, murmúrios baixos formando um zumbido constante, um ruído de fundo que parecia esconder palavras mais sinistras. Elara sentiu os olhos sobre ela antes mesmo de vê-los. Não eram os olhos do desenho, não ainda. Eram os olhos dos habitantes: curiosos, desconfiados, alguns carregando uma pitada de pena que beirava o desdém. Uma mulher mais velha, com uma rede de peixes, fitou-a por um tempo longo demais, os lábios finos apertados num fio. Um homem descarregando caixas parou seu trabalho, seguindo seus movimentos com um olhar pesado e inexpressivo. Era como se sua chegada, sua presença frágil e estrangeira, tivesse perturbado um equilíbrio precário.

Ela tentou se concentrar na tarefa: pão, frutas, talvez um pouco de queijo. Mas sua mão tremia ao pegar uma maçã, e a sensação de exposição era física, como se a pele estivesse sendo descascada pela observação coletiva. O ar, denso e salgado, parecia se solidificar em seus pulmões. Quando uma sombra alta e imponente bloqueou sua frente, Elara deu um salto para trás, quase derrubando uma pilha de laranjas.

"Desculpe," a voz era grave, áspera, como brita raspando em concreto. "Não vi você aí."

Elara ergueu os olhos, o coração disparado. A mulher diante dela era uma força da natureza encarnada. Alta, ombros largos sob um casaco de couro gasto aberto, revelando o uniforme azul-marinho desbotado da Polícia Municipal. Cabelos negros, curtos e desalinhados, emolduravam um rosto de traços fortes e uma mandíbula quadrada, marcado por uma leve cicatriz acima da sobrancelha esquerda. Mas eram os olhos que prendiam Elara: um castanho escuro, quase preto, queimando com uma intensidade inquieta, um fogo mal contido sob uma superfície áspera. Eles a escaneavam agora, da cabeça aos pés, com uma lentidão deliberada que não tinha nada de acidental. Era uma avaliação, uma apreciação possessiva disfarçada de olhar profissional.

"Antônia Rocha," ela disse, o nome saindo como um estalo. "Mas pode me chamar de Toni. Sou responsável por manter a ordem por aqui." Um sorriso se esticou em seus lábios, mas não alcançou aqueles olhos ardentes. Era um sorriso predatório. "Você é a nova. A botânica. Elara, certo?" Ela já sabia. É claro que sabia.

"Sim," Elara respondeu, a voz um fio mais alto que um sussurro. Ela apertou o cesto de compras contra o corpo, um escudo frágil.

"Lugar pacato, Névoa Salgada," Toni continuou, avançando um passo, reduzindo a distância entre elas. Elara sentiu o cheiro dela: couro, suor masculino e algo metálico, como sangue seco ou arma limpa. "Mas lugares pacatos... têm suas sombras. Coisas que se escondem na névoa." Seus olhos escuros perfuraram os de Elara. "Uma mulher sozinha, bonita como você... pode atrair o tipo errado de atenção."

A palavra "bonita" saiu como um rosnado baixo, carregada de uma posse que fez o estômago de Elara revirar. Não era um elogio; era uma demarcação.

"Estou... estou bem," Elara protestou fracamente, tentando desviar o olhar, mas os olhos de Toni eram como ganchos.

"Tem certeza?" Toni inclinou-se ligeiramente, sua voz baixando para um tom íntimo e ameaçador. "Ouvi dizer que teve um encontro com a Dra. Gelo ontem. E que parece ter passado uma noite ruim. Muito ruim." Ela observou as olheiras profundas sob os olhos de Elara, a palidez que a névoa não conseguia esconder. "Nem todos aqui querem ajudar, garota. Alguns só querem... possuir."

Elara sentiu um novo calafrio, diferente do frio da Dra. Montenegro. Este era quente, sufocante, cheio de uma ameaça latente. "Obrigada pelo aviso," ela murmurou, tentando se afastar.

Toni moveu-se com ela, bloqueando seu caminho novamente. Sua mão grande, coberta por uma luva de couro descascada nas pontas, levantou-se. Por um segundo, Elara temeu que ela a tocasse. Em vez disso, Toni apontou um dedo grosso para o próprio peito, onde o crachá de polícia brilhava opaco. "Eu posso ser essa proteção. Garantir que ninguém te incomode. Que ninguém chegue perto demais." O subtexto era claro: exceto eu. “Só precisa... cooperar. Me manter informada. Me deixar cuidar de você.”

A posse na voz de Toni era espessa, quase palpável. Ela não oferecia segurança; oferecia uma gaiola com grades de autoridade e desejo não disfarçado. Elara sentiu uma onda de pânico, misturada com uma raiva surpresa. "Eu não preciso de proteção," ela disse, com mais firmeza do que sentia.

Os olhos de Toni estreitaram, uma centelha perigosa cruzando o castanho escuro. O sorriso desapareceu. "Todo mundo precisa, querida," ela retrucou, a voz perdendo qualquer vestígio de falsa cordialidade. "Especialmente alguém com um passado... cheio de acidentes. Ruas molhadas, carros fora de controle... coisas trágicas." Ela deixou as palavras penderem no ar úmido.

Elara ficou paralisada. O sangue pareceu congelar em suas veias. Como ela sabia? Detalhes que ela enterrara, que mal conseguia enfrentar nos próprios pesadelos. A vulnerabilidade que ela tentava desesperadamente esconder estava exposta, dissecada por aqueles olhos ardentes e ciumentos.

"Sim," Toni sibilou, vendo o choque no rosto de Elara. "Sei coisas. Mantenho meus olhos abertos e meus ouvidos. Porque Névoa Salgada é minha. E tudo que entra nela... passa a ser de meu interesse." Ela avançou mais um passo, invadindo completamente o espaço pessoal de Elara. O cheiro de couro e ameaça era sufocante. "Então, vamos fazer assim: você me avisa onde está, com quem está. Me deixa te proteger. E eu garanto que aqueles olhos..." ela fez uma pausa dramática, seu olhar escuro mergulhando no de Elara com intensidade avassaladora, "...todos aqueles olhos que te observam... ficarão bem longe. Exceto os meus."

A ameaça era clara e multifacetada. Toni não apenas reivindicava posse, mas também insinuava conhecer os outros olhos, os do desenho, e prometia (ou ameaçava) ser um obstáculo para eles. A polícia corrupta era o lobo se oferecendo para guardar a ovelha. Elara sentiu náuseas. O mercado, os cheiros, os murmúrios, tudo parecia girar ao redor daquela figura dominadora de uniforme azul.

Antes que Elara pudesse responder, protestar ou fugir, a mão de Toni finalmente se moveu. Não para tocá-la no rosto, mas para agarrar seu braço, acima do cotovelo. A pressão foi imediata, firme, inescapável. Os dedos fortes, mesmo através do tecido da blusa e da luva descascada, afundaram na carne de Elara, marcando-a. Foi um gesto de controle absoluto, uma demonstração física da posse que ela reivindicava.

"Vamos começar agora," disse Toni, sua voz um comando baixo e áspero. Seu rosto estava perigosamente perto do de Elara. Ela podia ver os poros dilatados de sua pele, a linha de suor na têmpora, a chama possessiva queimando no fundo daqueles olhos negros. O cheiro dela, intenso e masculino, envolveu Elara como uma névoa tóxica. "Me acompanhe. Vou te levar até a pensão. Garantir que chegue segura.E no caminho... você me conta mais sobre essas dores de cabeça. Sobre esses pesadelos." O tom era de ordem, não de oferta. “Preciso saber tudo sobre o que te assusta, Elara. Só assim posso manter você... segura. “A ênfase na última palavra era obscena.

A pressão no braço aumentou, guiando Elara para frente, tirando-a do mercado, mergulhando-a mais fundo nas sombras úmidas de uma rua lateral. Elara caminhava ao lado de Toni, seu coração martelando contra as costelas, o braço latejando sob o aperto implacável. Cada passo era uma rendição forçada. Os olhos dos moradores que os viam passar pareciam rapidamente se desviar, temerosos. Toni não estava apenas a reivindicando; estava exibindo sua posse perante a cidade. A névoa, agora, parecia menos um refúgio e mais o véu que escondia os monstros. E o mais próximo, o mais visceral deles, tinha mãos fortes, olhos ciumentos e um crachá que garantia sua impunidade.

Enquanto eram engolidas pela névoa mais espessa da rua deserta, Elara teve a certeza de sentir, por um breve instante, outro par de olhos observando das sombras de um beco. Olhos que não eram castanho-escuros e ciumentos, mas de um âmbar antigo e selvagem, que pareciam brilhar com uma luz própria antes de desaparecerem, deixando apenas a impressão de um aviso silencioso e a silhueta distante do farol abandonado contra o céu de chumbo. A caçada, de fato, tinha múltiplos caçadores. E a presa estava sendo conduzida diretamente para a toca de um deles.

Mais populares

Comments

Suzanne Milla

Suzanne Milla

Não consigo parar de ler, estou vidrada na história!

2025-06-28

2

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!