A Linha do Equilíbrio
O alarme cortou o silêncio do quarto às 04:30 da manhã, um ruído áspero que Renata já esperava, mas nunca se acostumava. Ainda era noite lá fora, um breu pesado que só acentuava o peso do dia que estava por vir. Sem pestanejar, seus pés descalços encontraram o chão frio do pequeno apartamento, um lembrete gélido da batalha diária que se iniciava.
Ela não podia se dar ao luxo de mais cinco minutos. A primeira tarefa era a "operação marmita e café". No escuro quase completo da cozinha, apenas guiada pela fraca luz do visor do micro-ondas, Renata ligou o fogão. O chiado baixo da chaleira enchendo indicava o início do café forte e sem açúcar, a dose mínima de energia para enfrentar a manhã. Enquanto a água fervia, suas mãos trabalhavam com uma precisão quase automática, picando os últimos temperos para o almoço do dia seguinte: frango desfiado e legumes que já esperavam na geladeira. Tudo precisava ser rápido e eficiente, cada segundo era ouro. O cheiro do café coado começou a invadir o ambiente, um pequeno consolo antes do ritmo frenético que a aguardava. O almoço de seu companheiro Thiago e dos seus filhos Felipe e Lucas, já estava pronto, aguardando nas panelas para ser esquentado, mas a marmita dela ainda precisava ser montada, garantindo que não faltaria um almoço, por mais simples que fosse.
Às 05:45, com a mochila no ombro e o estômago levemente preenchido pelo café amargo, Renata trancou a porta. O ar da madrugada ainda estava fresco, mas ela já sentia a umidade da manhã se misturando à ansiedade. Não havia tempo para delongas. Os passos apressados pela calçada esburacada eram um ritmo familiar, quase uma canção fúnebre para o início do dia. A escuridão ainda dominava, quebrada apenas pelos postes de luz amarelada e pelos faróis isolados de alguns carros que passavam. O ponto de ônibus, a alguns quarteirões dali, já começava a ganhar a silhueta de outros trabalhadores madrugadores, rostos cansados e silenciosos, todos unidos pelo mesmo destino: o começo de mais um dia de luta.
A espera, por si só, já era um desafio. O ónibus 305 deveria passar a qualquer momento, mas a pontualidade era um luxo raro. Dez minutos se arrastaram, depois quinze. Cada minuto a mais era uma gota de suor frio na testa, a ameaça constante de um atraso que significaria descontos ou, pior, uma bronca do chefe logo cedo. Quando as luzes do 305 finalmente surgiram ao longe, um misto de alívio e pavor tomou conta do pequeno grupo. O veículo já vinha lotado de passageiros, uma massa humana comprimida que mal deixava espaço para mais alguém. O embarque era um empurra-empurra silencioso, um balé desajeitado de cotovelos e ombros, onde cada um lutava pelo mínimo espaço vital. Uma vez lá dentro, espremida entre corpos suados, Renata se agarrou firmemente a uma barra de ferro, a cabeça inclinada para evitar o contato visual, os ouvidos já acostumados ao zumbido de conversas abafadas, o cheiro de suor e cansaço impregnado no ar. Ali, de pé, balançando com cada curva e freada brusca, a jornada de trabalho de Renata ainda não havia começado, mas seus corres, sim.
Após alguns longos minutos de viagem no 305, Renata tem um pequeno alívio temporário, a qualquer momento o 712 deveria aparecer, o dia já estava amanhecido, eram quase 07:00, e a viagem no 712 era ainda mais demorada. O letreiro avisava a chegada do ônibus, ainda mais lotado, mais uma viagem em pé, mas dessa vez, nem se quer tinha espaço de se passar pela catraca, e lá se foram mais alguns longos minutos para até que em fim, chegar no seu ponto, desce, respira fundo e dá alguns passos até o seu real destino: Paradise Telecomunicações.
O prédio da Paradise Telecom, imponente em sua frieza de concreto e vidro, se erguia como um monumento à exaustão. A fachada espelhada refletia o céu já claro da manhã, mas para Renata, o brilho era apenas um contraste cruel com o peso que sentia nos ombros. A cada passo que dava em direção à entrada, o zumbido distante dos telefones parecia aumentar, uma premonição do caos que a aguardava.
A portaria, com seus seguranças de rostos impassíveis, era a primeira barreira a ser vencida, a entrada para o inferno que é ser atendente de Call center. O crachá, preso ao cordão gasto, era a chave para aquele mundo de números e scripts. Dentro, o hall de entrada era um formigueiro humano, pessoas apressadas em direção aos elevadores, o som abafado de conversas e o cheiro característico de café e desinfetante. Renata se juntou ao fluxo, o olhar fixo no painel que indicava os andares. O seu, o décimo segundo, parecia distante, cada andar uma etapa a mais em direção ao abismo.
Quando as portas do elevador finalmente se abriram, o impacto do call center foi quase físico. Centenas de baias idênticas se estendiam até onde a vista alcançava, cada uma delas ocupada por um atendente com fones de ouvido, a voz presa em um ciclo infinito de "Paradise Telecom, bom dia". O som era ensurdecedor, um zumbido constante de vozes, teclas e o toque irritante dos telefones. O ar parecia denso, impregnado de estresse e frustração. Renata respirou fundo, tentando se preparar para o mergulho naquele oceano de caos. A sua baia, a número 12B, a esperava, um pequeno quadrado em meio àquela imensidão, onde ela passaria as próximas oito horas, lutando para manter a sanidade em meio ao "paraíso" da Paradise Telecom.
Renata mal teve tempo de ligar o computador e fazer o login no sistema. O zumbido incessante do call center, que já era uma tortura, pareceu se intensificar com a chegada de Valéria, a supervisora. Valéria não andava, ela patrulhava, seus saltos ecoando com um ritmo militar pelo corredor estreito entre as baias. O cheiro de seu perfume forte anunciava sua presença antes mesmo que sua figura desse as caras.
-Bom dia, equipe! Ou o que resta dela, já que alguns ainda estão presos no passado. -disse Valéria com sarcasmo.
Ela não precisou olhar diretamente para Renata, mas o tom era um chicote que alcançava a todos, especialmente os que, como Renata, tinham chegado no limite do horário ou um minuto sequer depois.
-Pontualidade, pessoal! É a base do nosso paraíso aqui na Paradise Telecom. Ou vocês acham que os clientes esperam? Cada minuto de vocês custa dinheiro, e cada atraso reflete na produtividade de todos! -ressautou Valéria
Seu olhar varreu as baias, parando brevemente em alguns rostos envergonhados. Renata sentiu um calafrio. Ela não tinha se atrasado, mas a ameaça velada pairava no ar, a constante insegurança de que um pequeno erro pudesse ser a desculpa para um ataque verbal, um murmúrio ou, pior, uma demissão. Valéria continuou seu trabalho sobre metas, desempenho e a importância de "vestir a camisa" da empresa, enquanto a tela do computador de Renata terminava de logar, pronta para a primeira ligação do dia. O fone de ouvido parecia mais pesado do que o normal. O dia mal começara, e a linha do equilíbrio já se mostrava fina e escorregadia.
A manhã se arrastou em um borrão de vozes, protocolos e a sensação constante de estar em uma corda bamba. O alívio só veio com a pausa para o almoço. Renata seguiu o fluxo de atendentes em direção ao refeitório, um salão amplo e barulhento onde o cheiro de comida industrializada se misturava ao burburinho de centenas de conversas simultâneas. Ela pegou sua marmita, já familiarizada com o percurso, e procurou um canto menos disputado.
Enquanto tentava comer em paz o frango desfiado com legumes que havia preparado antes do amanhecer, trechos de conversas alheias flutuavam até seus ouvidos. Em uma mesa próxima, um grupo de colegas – Lúcia, com sua voz estridente, e Marcos, o eterno "sabe-tudo" do andar – pareciam divertir-se às custas de alguém.
— Vocês viram a Priscila hoje? — Lúcia cochichou, mas alto o suficiente para quem quisesse ouvir.
— Chegou de cara amarrada, como sempre. Acho que o namorado largou de vez, ou a conta de luz veio alta demais de novo.
Marcos soltou uma risadinha abafada e comentou:
— Ou ela simplesmente não aguenta mais ser a 'rainha do protocolo' e não conseguir vender nada. Cliente ligou pra fazer uma nova compra ontem e reclamou dela, e eu tive que pegar a ligação.
O comentário de Marcos sobre o cliente reclamando era um golpe baixo, uma tentativa de desmerecer o colega em público. Renata sentiu um nó no estômago. Aquelas conversas eram veneno. Criavam um clima de desconfiança e competição desleal, onde a fragilidade de um era a diversão de outro, e qualquer erro, por menor que fosse, virava munição. A "Priscila" de quem falavam era uma vendedora discreta e eficiente, que raramente se envolvia em intrigas. Saber que ela era alvo daquele tipo de comentário sem sentido fazia Renata se perguntar o que diriam sobre ela quando não estivesse por perto. Ali, no suposto "paraíso" da Paradise Telecom, a toxicidade se espalhava não só pela gerência, mas também entre aqueles que deveriam ser aliados na mesma batalha. O almoço até perdeu o gosto.
De volta à sua baia, com o fone de ouvido já na cabeça, Renata tentava se concentrar na próxima ligação, mas sua mente teimava em flutuar para longe daquele ambiente sufocante. Era um escape necessário, um pequeno refúgio nos poucos segundos entre um cliente e outro. Seus pensamentos voavam para casa, para seus meninos.
Como estariam Lucas e Felipe? O mais velho, com seus 16 anos, estava em uma fase de descobertas e rebeldia velada, e a preocupação com as amizades e os caminhos que ele estava trilhando era constante. Felipe, de 13, ainda era mais "moleque", mas a pré-adolescência já batia à porta, trazendo consigo a necessidade de mais atenção e a crescente autonomia. Ela se perguntava se eles tinham comido o almoço que preparou. Se Lucas tinha ido à escola. Se Felipe tinha estudado para a prova de matemática. Sentia a fisgada familiar da culpa materna, uma dor surda por não estar lá, por não conseguir acompanhar cada detalhe, cada pequeno desafio que eles enfrentavam. Os "momentos perdidos" eram feridas abertas em sua alma.
E Thiago? O pensamento do companheiro trazia um misto de esperança e um medo persistente. Como seria a noite? O relacionamento deles, corroído pela infidelidade e pela violência psicológica crescente, era uma bomba-relógio. A cada noite, Renata se preparava para o temperamento dele, para as discussões que surgiam do nada, para o silêncio pesado que muitas vezes era pior que os gritos. A falta de apoio emocional e prático de Thiago era uma ausência gritante em sua vida, e a sombra de agressões físicas passadas e futuras pairava sobre a casa. A difícil decisão de sair ou não daquele relacionamento sufocava-a, um peso tão grande quanto as metas inatingíveis do trabalho.
Respirou fundo, forçando-se a retornar à realidade do call center. A luz vermelha piscava em seu ramal. Mais um cliente esperando, mais uma voz a busca de uma solução, enquanto a vida de Renata estava por um fio, uma linha fina de equilíbrio que ameaçava se romper a qualquer instante.
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Atualizado até capítulo 26
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