Ecos na calma

O estalar dos cacos de vidro que Thiago jogou no chão ainda parecia ecoar na cozinha, mesmo depois de Renata ter varrido cada pedacinho. A janta tinha terminado, mas a tempestade não havia passado. Em vez disso, um silêncio pesado tomou conta do apartamento, mais frio e sufocante que qualquer grito. Não era a paz do fim do dia, mas o vazio deixado por uma bomba que explodiu e espalhou estilhaços invisíveis por todo lado.

Thiago, como se nada tivesse acontecido, se arrastou para a sala e se jogou no sofá. Ligou a TV em um volume alto, trocando os canais sem parar, os olhos fixos na tela, mas a mente longe. Era como se ele tivesse puxado uma cortina entre ele e o resto da casa, um jeito de dizer: "Não estou aqui. Não ouço. Não vejo." A indiferença dele era um peso a mais no ar já denso.

Lucas, o mais velho, não demorou para seguir o exemplo. Com seu jeito sério e reservado, ele pegou a mochila do chão e, sem dizer uma palavra, se fechou no quarto. O leve clique da porta sendo trancada foi um som familiar. Ali, atrás daquela porta, ele encontraria seu refúgio: o mundo dos jogos, dos fones de ouvido que bloqueavam o barulho de fora e, principalmente, a tensão de dentro. Era a maneira dele de lidar com o caos, se isolando, planejando suas próprias batalhas virtuais enquanto a real acontecia na casa.

Renata e Felipe ficaram na cozinha, sozinhos, em meio ao que restava do jantar. O vácuo que Thiago e Lucas deixaram era quase físico, uma ausência que pesava.

Enquanto Lucas se trancava em seu mundo virtual, Felipe permanecia na cozinha com Renata, sentindo-se exposto e sozinho no silêncio pesado que pairava no ar. Diferente do irmão mais velho, que já havia construído suas próprias muralhas, Felipe ainda buscava algum tipo de consolo, uma palavra de entendimento que pudesse aliviar a tensão.

Ele se aproximou de Renata, que organizava a pia com movimentos automáticos, o olhar distante. "Mãe...", ele começou, a voz baixa, quase um sussurro, como se o medo de perturbar a calma tensa o impedisse de falar mais alto. Ele queria comentar sobre o jantar, talvez perguntar se ela estava bem, ou simplesmente quebrar aquele gelo. Mas as palavras morreram em sua garganta, perdidas no vazio entre eles.

Renata mal o ouviu. Sua mente ainda estava presa nos cacos de vidro, nas palavras de Thiago, na exaustão que a consumia. Ela sentiu o olhar de Felipe sobre si, um olhar carregado de consolo e preocupação, buscando uma conexão que ela não tinha forças para dar.

Felipe se aproximou do sofá, abrindo o caderno de matemática na esperança de conseguir resolver as equações. Mas a frustração com a lição de casa se misturava à preocupação com a mãe. Ele queria a ajuda dela, o apoio que sempre recebia, mas a viu chegar, os ombros curvados, o olhar perdido. O "tô tentando fazer a lição de casa de matemática, mãe, mas não tô entendendo nada" que ele ensaiou na cozinha se perdeu no ar.

Renata sentou-se ao lado dele, mas o peso em seus ombros era quase palpável.

— Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. -ela disse, a voz embargada. — Não tô conseguindo pensar direito.

Felipe sentiu a decepção o-invadir. Ele não queria culpá-la, mas a ausência da mãe, mesmo ali ao lado, era como um buraco que se abria entre eles. Ele assentiu em silêncio, abaixando os olhos para o caderno.

Na sala, Thiago parecia alheio a tudo, mergulhado na televisão. Ele ziguezagueava pelos canais, o som alto preenchendo o vazio da casa, mas sem preencher a família. Para ele, o incidente do prato quebrado já havia acabado, um problema de Renata, não dele. Não havia nele qualquer sinal de preocupação com o silêncio dos filhos, nem um pingo de remorso pelo ambiente que ele mesmo havia criado.

Era como se, para Thiago, a casa fosse apenas um cenário onde ele encenava suas vontades, e a família, meros figurantes. Sua indiferença era gritante, uma ausência de suporte que pesava mais do que qualquer briga. Ele não oferecia uma palavra de conforto, um olhar de reconhecimento para a exaustão de Renata, nem um sinal de que percebia o impacto em Lucas ou Felipe.

Essa omissão era sua forma de intervenção – uma intervenção silenciosa e destrutiva. Enquanto Renata se desdobrava entre a exaustão do trabalho e a tentativa de manter a família unida, Thiago se consolidava como uma força passiva que minava a paz. Sua presença ali, tão fisicamente próxima e emocionalmente distante, era um lembrete constante da solidão de Renata e da fragilidade daquele lar.

No seu quarto, Lucas tentava vencer suas próprias batalhas. No mundo dos games, a concentração era tudo. Mesmo que a "batalha da vida" lá fora estivesse apertando, sua jornada virtual tinha que ser perfeita. No intervalo entre uma partida e outra, no silêncio do jogo em pausa, a voz da mãe chegou aos seus ouvidos, baixinha, vinda do corredor: "Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. Não tô conseguindo pensar direito."

Aquelas palavras. Mais uma vez, o trabalho parecia engolir tudo. Lucas sentiu um bolo na garganta ao lembrar das próprias atividades mal feitas no passado, da falta de apoio que o fez crescer rápido demais. A partida recomeçaria a qualquer segundo, não podia ter distrações, desistir não era opção. Mas o silêncio pesado que se instalou na sala, a imagem de Felipe sozinho com a lição, pesou imensamente na sua consciência. Felipe não podia ter o mesmo destino que ele.

Sem pensar duas vezes, Lucas desligou o computador, o barulho da tela apagando cortando o som do jogo. Foi até a porta e a abriu. Lá estava Felipe, no sofá, com o caderno de matemática no colo.

— Feh, tá precisando de ajuda? — Lucas perguntou, a voz mais suave do que esperava.

Felipe desviou o olhar para o caderno, sacudindo a cabeça.

— Não, não precisa se preocupar. — Ele não sabia resolver aquelas equações de jeito nenhum, mas não queria incomodar Lucas, o irmão que sempre parecia ocupado demais.

— É atividade de quê? — Lucas insistiu, já sabendo a resposta.

— Matemática.

Lucas conhecia o irmão como a palma da mão. Sabia que Felipe era um desastre em matemática e que preferia mil vezes errar sozinho a pedir ajuda. "Tão novo, tão inocente", pensou Lucas, "mesmo simpático e comunicativo, era tão fechado para pedir ajuda."

— Vem cá, eu te ajudo. — Lucas disse, se aproximando.

Os olhos de Felipe se arregalaram, e o semblante dele mudou na hora, um brilho de esperança surgindo.

— Sério?

Lucas sentiu uma pontada no peito. O irmão precisava dele, não só na lição de matemática, mas na vida. Ele pensou em responder um "sim" tranquilo, mas sua função de irmão mais velho, sua responsabilidade de protetor, não deixou. Então, soltou um "Adiante, pivete", com um meio sorriso que Felipe, e só ele, sabia traduzir como puro carinho.

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