O alarme cortou o silêncio do quarto às 04:30 da manhã, um ruído áspero que Renata já esperava, mas nunca se acostumava. Ainda era noite lá fora, um breu pesado que só acentuava o peso do dia que estava por vir. Sem pestanejar, seus pés descalços encontraram o chão frio do pequeno apartamento, um lembrete gélido da batalha diária que se iniciava.
Ela não podia se dar ao luxo de mais cinco minutos. A primeira tarefa era a "operação marmita e café". No escuro quase completo da cozinha, apenas guiada pela fraca luz do visor do micro-ondas, Renata ligou o fogão. O chiado baixo da chaleira enchendo indicava o início do café forte e sem açúcar, a dose mínima de energia para enfrentar a manhã. Enquanto a água fervia, suas mãos trabalhavam com uma precisão quase automática, picando os últimos temperos para o almoço do dia seguinte: frango desfiado e legumes que já esperavam na geladeira. Tudo precisava ser rápido e eficiente, cada segundo era ouro. O cheiro do café coado começou a invadir o ambiente, um pequeno consolo antes do ritmo frenético que a aguardava. O almoço de seu companheiro Thiago e dos seus filhos Felipe e Lucas, já estava pronto, aguardando nas panelas para ser esquentado, mas a marmita dela ainda precisava ser montada, garantindo que não faltaria um almoço, por mais simples que fosse.
Às 05:45, com a mochila no ombro e o estômago levemente preenchido pelo café amargo, Renata trancou a porta. O ar da madrugada ainda estava fresco, mas ela já sentia a umidade da manhã se misturando à ansiedade. Não havia tempo para delongas. Os passos apressados pela calçada esburacada eram um ritmo familiar, quase uma canção fúnebre para o início do dia. A escuridão ainda dominava, quebrada apenas pelos postes de luz amarelada e pelos faróis isolados de alguns carros que passavam. O ponto de ônibus, a alguns quarteirões dali, já começava a ganhar a silhueta de outros trabalhadores madrugadores, rostos cansados e silenciosos, todos unidos pelo mesmo destino: o começo de mais um dia de luta.
A espera, por si só, já era um desafio. O ónibus 305 deveria passar a qualquer momento, mas a pontualidade era um luxo raro. Dez minutos se arrastaram, depois quinze. Cada minuto a mais era uma gota de suor frio na testa, a ameaça constante de um atraso que significaria descontos ou, pior, uma bronca do chefe logo cedo. Quando as luzes do 305 finalmente surgiram ao longe, um misto de alívio e pavor tomou conta do pequeno grupo. O veículo já vinha lotado de passageiros, uma massa humana comprimida que mal deixava espaço para mais alguém. O embarque era um empurra-empurra silencioso, um balé desajeitado de cotovelos e ombros, onde cada um lutava pelo mínimo espaço vital. Uma vez lá dentro, espremida entre corpos suados, Renata se agarrou firmemente a uma barra de ferro, a cabeça inclinada para evitar o contato visual, os ouvidos já acostumados ao zumbido de conversas abafadas, o cheiro de suor e cansaço impregnado no ar. Ali, de pé, balançando com cada curva e freada brusca, a jornada de trabalho de Renata ainda não havia começado, mas seus corres, sim.
Após alguns longos minutos de viagem no 305, Renata tem um pequeno alívio temporário, a qualquer momento o 712 deveria aparecer, o dia já estava amanhecido, eram quase 07:00, e a viagem no 712 era ainda mais demorada. O letreiro avisava a chegada do ônibus, ainda mais lotado, mais uma viagem em pé, mas dessa vez, nem se quer tinha espaço de se passar pela catraca, e lá se foram mais alguns longos minutos para até que em fim, chegar no seu ponto, desce, respira fundo e dá alguns passos até o seu real destino: Paradise Telecomunicações.
O prédio da Paradise Telecom, imponente em sua frieza de concreto e vidro, se erguia como um monumento à exaustão. A fachada espelhada refletia o céu já claro da manhã, mas para Renata, o brilho era apenas um contraste cruel com o peso que sentia nos ombros. A cada passo que dava em direção à entrada, o zumbido distante dos telefones parecia aumentar, uma premonição do caos que a aguardava.
A portaria, com seus seguranças de rostos impassíveis, era a primeira barreira a ser vencida, a entrada para o inferno que é ser atendente de Call center. O crachá, preso ao cordão gasto, era a chave para aquele mundo de números e scripts. Dentro, o hall de entrada era um formigueiro humano, pessoas apressadas em direção aos elevadores, o som abafado de conversas e o cheiro característico de café e desinfetante. Renata se juntou ao fluxo, o olhar fixo no painel que indicava os andares. O seu, o décimo segundo, parecia distante, cada andar uma etapa a mais em direção ao abismo.
Quando as portas do elevador finalmente se abriram, o impacto do call center foi quase físico. Centenas de baias idênticas se estendiam até onde a vista alcançava, cada uma delas ocupada por um atendente com fones de ouvido, a voz presa em um ciclo infinito de "Paradise Telecom, bom dia". O som era ensurdecedor, um zumbido constante de vozes, teclas e o toque irritante dos telefones. O ar parecia denso, impregnado de estresse e frustração. Renata respirou fundo, tentando se preparar para o mergulho naquele oceano de caos. A sua baia, a número 12B, a esperava, um pequeno quadrado em meio àquela imensidão, onde ela passaria as próximas oito horas, lutando para manter a sanidade em meio ao "paraíso" da Paradise Telecom.
Renata mal teve tempo de ligar o computador e fazer o login no sistema. O zumbido incessante do call center, que já era uma tortura, pareceu se intensificar com a chegada de Valéria, a supervisora. Valéria não andava, ela patrulhava, seus saltos ecoando com um ritmo militar pelo corredor estreito entre as baias. O cheiro de seu perfume forte anunciava sua presença antes mesmo que sua figura desse as caras.
-Bom dia, equipe! Ou o que resta dela, já que alguns ainda estão presos no passado. -disse Valéria com sarcasmo.
Ela não precisou olhar diretamente para Renata, mas o tom era um chicote que alcançava a todos, especialmente os que, como Renata, tinham chegado no limite do horário ou um minuto sequer depois.
-Pontualidade, pessoal! É a base do nosso paraíso aqui na Paradise Telecom. Ou vocês acham que os clientes esperam? Cada minuto de vocês custa dinheiro, e cada atraso reflete na produtividade de todos! -ressautou Valéria
Seu olhar varreu as baias, parando brevemente em alguns rostos envergonhados. Renata sentiu um calafrio. Ela não tinha se atrasado, mas a ameaça velada pairava no ar, a constante insegurança de que um pequeno erro pudesse ser a desculpa para um ataque verbal, um murmúrio ou, pior, uma demissão. Valéria continuou seu trabalho sobre metas, desempenho e a importância de "vestir a camisa" da empresa, enquanto a tela do computador de Renata terminava de logar, pronta para a primeira ligação do dia. O fone de ouvido parecia mais pesado do que o normal. O dia mal começara, e a linha do equilíbrio já se mostrava fina e escorregadia.
A manhã se arrastou em um borrão de vozes, protocolos e a sensação constante de estar em uma corda bamba. O alívio só veio com a pausa para o almoço. Renata seguiu o fluxo de atendentes em direção ao refeitório, um salão amplo e barulhento onde o cheiro de comida industrializada se misturava ao burburinho de centenas de conversas simultâneas. Ela pegou sua marmita, já familiarizada com o percurso, e procurou um canto menos disputado.
Enquanto tentava comer em paz o frango desfiado com legumes que havia preparado antes do amanhecer, trechos de conversas alheias flutuavam até seus ouvidos. Em uma mesa próxima, um grupo de colegas – Lúcia, com sua voz estridente, e Marcos, o eterno "sabe-tudo" do andar – pareciam divertir-se às custas de alguém.
— Vocês viram a Priscila hoje? — Lúcia cochichou, mas alto o suficiente para quem quisesse ouvir.
— Chegou de cara amarrada, como sempre. Acho que o namorado largou de vez, ou a conta de luz veio alta demais de novo.
Marcos soltou uma risadinha abafada e comentou:
— Ou ela simplesmente não aguenta mais ser a 'rainha do protocolo' e não conseguir vender nada. Cliente ligou pra fazer uma nova compra ontem e reclamou dela, e eu tive que pegar a ligação.
O comentário de Marcos sobre o cliente reclamando era um golpe baixo, uma tentativa de desmerecer o colega em público. Renata sentiu um nó no estômago. Aquelas conversas eram veneno. Criavam um clima de desconfiança e competição desleal, onde a fragilidade de um era a diversão de outro, e qualquer erro, por menor que fosse, virava munição. A "Priscila" de quem falavam era uma vendedora discreta e eficiente, que raramente se envolvia em intrigas. Saber que ela era alvo daquele tipo de comentário sem sentido fazia Renata se perguntar o que diriam sobre ela quando não estivesse por perto. Ali, no suposto "paraíso" da Paradise Telecom, a toxicidade se espalhava não só pela gerência, mas também entre aqueles que deveriam ser aliados na mesma batalha. O almoço até perdeu o gosto.
De volta à sua baia, com o fone de ouvido já na cabeça, Renata tentava se concentrar na próxima ligação, mas sua mente teimava em flutuar para longe daquele ambiente sufocante. Era um escape necessário, um pequeno refúgio nos poucos segundos entre um cliente e outro. Seus pensamentos voavam para casa, para seus meninos.
Como estariam Lucas e Felipe? O mais velho, com seus 16 anos, estava em uma fase de descobertas e rebeldia velada, e a preocupação com as amizades e os caminhos que ele estava trilhando era constante. Felipe, de 13, ainda era mais "moleque", mas a pré-adolescência já batia à porta, trazendo consigo a necessidade de mais atenção e a crescente autonomia. Ela se perguntava se eles tinham comido o almoço que preparou. Se Lucas tinha ido à escola. Se Felipe tinha estudado para a prova de matemática. Sentia a fisgada familiar da culpa materna, uma dor surda por não estar lá, por não conseguir acompanhar cada detalhe, cada pequeno desafio que eles enfrentavam. Os "momentos perdidos" eram feridas abertas em sua alma.
E Thiago? O pensamento do companheiro trazia um misto de esperança e um medo persistente. Como seria a noite? O relacionamento deles, corroído pela infidelidade e pela violência psicológica crescente, era uma bomba-relógio. A cada noite, Renata se preparava para o temperamento dele, para as discussões que surgiam do nada, para o silêncio pesado que muitas vezes era pior que os gritos. A falta de apoio emocional e prático de Thiago era uma ausência gritante em sua vida, e a sombra de agressões físicas passadas e futuras pairava sobre a casa. A difícil decisão de sair ou não daquele relacionamento sufocava-a, um peso tão grande quanto as metas inatingíveis do trabalho.
Respirou fundo, forçando-se a retornar à realidade do call center. A luz vermelha piscava em seu ramal. Mais um cliente esperando, mais uma voz a busca de uma solução, enquanto a vida de Renata estava por um fio, uma linha fina de equilíbrio que ameaçava se romper a qualquer instante.
O relógio digital no canto inferior da tela do computador parecia correr mais devagar nos últimos minutos do turno. 17h50. Renata sentia cada minuto se arrastar com a lentidão de uma fila de banco em plena segunda-feira. Seus ouvidos zumbiam com a repetição de "Boa tarde, Paradise Telecom, meu nome é Renata, em que posso ajudar?" e a incessante pressão por vendas. A garganta arranhava, os ombros latejavam. E o pior: a meta diária estava longe de ser batida. Por mais que tentasse, por mais que forçasse a voz a soar animada, a irritação dos clientes e a rigidez dos protocolos eram barreiras intransponíveis.
A luz vermelha em seu ramal piscou mais uma vez, mas Renata a ignorou por um segundo. A meta, que deveria ser um horizonte a ser alcançado, parecia agora um precipício. Havia tentado todas as estratégias, usado todos os "gatilhos de venda" que Valéria tanto falava, mas as linhas pareciam ter sido programadas para cair em clientes resistentes ou desligar na sua cara. A frustração era um nó no estômago.
Precisamente às 18h00, o sistema de Valéria liberou o sinal de "fim de expediente". Mas o alívio que deveria vir foi logo substituído por um estrondo. Valéria, com sua postura de general, já estava postada no centro do salão, a voz amplificada pelo silêncio quase ensurdecedor que se seguiu ao desligamento dos sistemas.
— Atenção, equipe do plantão diurno! — sua voz cortou o ar como um raio. — Parece que o 'paraíso' de vendas de alguns hoje não foi tão paradisíaco assim, não é?
O sarcasmo pingava de cada palavra.
— A meta do dia não foi atingida por uma margem vergonhosa! Sei que o dia é longo, sei que vocês têm vida, mas a Paradise Telecom não para. Nossos clientes não param de querer o melhor plano, a melhor conexão! E se vocês não entregam, quem paga a conta? A EMPRESA! E por tabela, vocês!
Renata encolheu-se ligeiramente em sua cadeira, tentando parecer invisível enquanto Valéria listava, sem citar nomes, as deficiências de desempenho.
— Precisamos de mais garra, mais foco, mais VENDA! Quem não está performando, sabe que a porta está ali para o lado de fora, pronta para quem quiser ir embora.
As palavras eram pontas afiadas, cutucando as feridas abertas da insegurança no emprego. O olhar de Valéria varreu o ambiente novamente, demorando em alguns rostos, incluindo o de Renata. A ameaça, mesmo que velada, era clara: a cada dia que a meta não fosse batida, o "fio" de sua permanência na Paradise Telecom ficava mais e mais esticado, prestes a arrebentar.
18:05. O relógio no celular de Renata marcava a exata hora de saída do ônibus 712. Era quase impossível pegá-lo, mas uma pontinha de esperança a empurrava. Disparou da catraca da Paradise Telecom como se o inferno a perseguisse, os saltos baixos mal aguentando o ritmo acelerado pela calçada. A cada passo, o corpo gritava pelo dia exaustivo, mas a ideia de um jantar no horário a fazia ir em frente. Chegou à esquina sem fôlego, e viu as luzes traseiras do 712 sumindo no horizonte. Mas não, lá estava ele, parado no ponto. Uma sorte no meio do caos. Passou pela catraca suada e soltou um suspiro de alívio que, por um instante, silenciou o barulho na cabeça. Chegaria em casa no horário, ou assim ela esperava.
A trégua foi curta. Às 18:50, o corpo de Renata já parecia pesar toneladas no banco desconfortável do 712. Mais uma luta a caminho. Ao descer para pegar o outro ônibus, a calçada, antes um alívio, virou o cenário da próxima batalha: pegar o 305 das 19:00. Dez minutos se arrastaram, quinze, vinte. Cada segundo a mais era um lembrete cruel de que ela não tinha controle sobre nada. O ponto, antes um lugar de espera, transformou-se de novo em um formigueiro humano, mais apertado, mais impaciente, com todo mundo cansado. Quando o 305 finalmente arrastou o busão velho às 19:27, a raiva era quase palpável no ar. De volta ao aperto sufocante, ao cheiro de suor e àquela cena de gente se espremendo por todo lado. Ela se agarrou a uma barra gelada, fechando os olhos por um instante, sentindo cada sacolejo do ônibus reverberar no corpo todo.
Às 19:53, a porta do 305 se abriu em seu ponto final. Sentiu um alívio enorme escorrer pelo corpo. O ar fresco da noite era um abraço. Alguns passos cambaleantes até a porta do prédio. Finalmente, em casa. A mente de Renata já corria adiante, planejando o jantar rápido, o banho quente e o merecido descanso que, no fundo, ela sabia que talvez nunca chegasse por completo.
Renata finalmente girou a chave na fechadura, sentindo o peso do dia esmagá-la. Aquele dia tinha sido um verdadeiro teste de resistência, e o atraso colossal do ônibus 305 havia sido a gota d'água. Chegar no "paraíso" da Paradise Telecom em cima da hora significou perder aqueles preciosos minutos de paz, o único tempo que tinha para mergulhar no "paraíso eterno" da leitura da Bíblia, cada versículo um bálsamo que ela desesperadamente precisava antes do script padronizado e do caos.
Ainda exausta, ela mal pôs a mochila no chão, ao lado do sofá gasto, e o corpo já pedia o refúgio do chuveiro. Mas antes que pudesse sequer pensar em ligar a água, a voz de Thiago cortou o silêncio do apartamento, afiada como um bisturi.
— Além de chegar tarde, vai ainda tomar banho? Como se não tivesse família para pensar.
Renata soltou um suspiro quase silencioso, mas profundo, que pareceu carregar todo o cansaço do mundo. Suas costas endureceram. Aquele dia já tinha sido uma maratona de agressões, mas ela se recusava a deixar que aquelas palavras, tão previsíveis, roubassem a pequena porção de paz que sonhava ter à noite. Deixou as roupas no cesto do banheiro, a ideia do banho quente adiada, e foi para a cozinha. O cheiro de café fresco, feito por alguém (provavelmente Thiago, para si mesmo), já pairava no ar. Enquanto o cuscuz chiador cozinhava na cuscuzeira, ela fritava alguns ovos com pressa, o estômago roncando, mas a prioridade era a janta da casa.
Tudo pronto. O cheiro da comida recém-preparada dava um sopro de normalidade. Finalmente, Renata poderia ter um minuto de prazer no banho de água quente. Mas sua paz, como sempre, foi curta e brutalmente interrompida. Thiago, sentado à mesa, empurrou o prato.
— Impossível comer essa porcaria! -ele gritou, a voz alterada, e num movimento brusco e violento, jogou o prato no chão.
O som do vidro se estilhaçando ecoou pela cozinha, um barulho seco e cortante que pareceu quebrar algo dentro de Renata também. Os cacos brilhavam perigosamente no chão, misturados aos pedaços de cuscuz e ovos. Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Renata, mas no mesmo segundo, ela a enxugou com raiva, erguendo a cabeça. Não daria a ele o prazer de vê-la desabar.
— Recolha isso, Thiago. Por favor. -pediu, a voz baixa, mas firme, tentando manter a calma.
A resposta veio fria e cheia de desprezo, um golpe final para o dia dela:
— Limpe você. É pra isso que existe mulher.
Os cacos de cerâmica jaziam no chão da cozinha como fragmentos da paz que Renata tanto almejava. Com a raiva se misturando ao cansaço, ela pegou a vassoura e a pá, varrendo cada pedaço, com Thiago ainda sentado à mesa, indiferente, fingindo que nada havia acontecido, a expressão vazia. Não houve desculpas, não houve ajuda. Apenas o som arrastado da vassoura e o murmúrio dos pensamentos de Renata: "É sempre assim. A culpa é sempre minha, a bagunça é sempre minha para limpar."
Minutos depois, com a cozinha minimamente limpa e a raiva contida, Renata serviu novamente a janta, desta vez para ela, Lucas e Felipe. Thiago pegou mais um prato na pia, se serviu e comeu em silêncio, o que era quase pior do que os gritos. Os meninos, que haviam testemunhado a explosão do pai – ou pelo menos sentido o tremor dela –, comiam em um silêncio pesado. Lucas, com seus 16 anos, picava a comida no prato, o olhar fixo e calculista, como se estivesse processando cada detalhe da cena, já analisando as próximas jogadas. Felipe, de 13, olhava para a mãe de esguelha, com os olhos carregados de consolo e uma preocupação muda, como quem queria dizer "estou com você" sem poder falar uma palavra.
Nenhum som além do tilintar dos talheres nos pratos, nenhum olhar que se encontrasse por mais de um segundo. A comida não tinha sabor. A tensão era uma névoa fria que pairava sobre a mesa, mais densa que qualquer fumaça de cozinha. Renata sentia o olhar de Felipe sobre ela e o silêncio observado de Lucas como acusações mudas. A culpa materna, que a acompanhava como uma sombra, apertava seu peito. Ali, naquele lar que deveria ser um refúgio, ela era apenas mais uma peça em um jogo de xadrez onde a cada movimento ela se sentia encurralada.
Depois da janta silenciosa, cada um foi para seu canto. Thiago para a sala, zapeando canais com um controle remoto que parecia um escudo. Lucas se trancou no quarto, provavelmente com os fones de ouvido, fugindo para o mundo dos jogos. Felipe, ainda um pouco mais próximo, estava no sofá, com um caderno aberto no colo, a testa franzida em um sinal de dificuldade.
Renata viu a oportunidade. Embora o corpo gritasse por um descanso e a cabeça ainda estivesse pesada pela tensão da noite, ela se sentia na obrigação de tentar se conectar, de diminuir a distância imposta pela rotina.
— Tudo bem por aqui, filho? -perguntou a Felipe, sentando-se com cuidado ao lado dele, o cheiro de sabonete vindo do cabelo ainda úmido.
Felipe levantou os olhos, um misto de cansaço e confusão na expressão.
— Tô tentando fazer a lição de casa de matemática, mãe, mas não tô entendendo nada. É sobre aquelas equações... a professora explicou rápido hoje após a prova.
A culpa a atingiu em cheio. Renata pensou nos intermináveis scripts da Paradise Telecom, nas metas inatingíveis, nos gritos da Valéria. Pensou nos ônibus lotados, na marmita que comeu sozinha e na briga com Thiago. Havia saído de casa antes de o sol nascer e voltaria a se levantar no escuro. Como poderia ter energia para desvendar equações com o filho? Seu cérebro parecia uma esponja torcida, sem mais nada para espremer.
— Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. -ela começou, a voz carregada de um peso que não queria que Felipe sentisse.
— Não tô conseguindo pensar direito. Por que você não tenta de novo, dá uma olhada no livro? Amanhã cedo, antes de eu sair, a gente tenta de novo, ou você pede pro Lucas te ajudar, tá bom?
O olhar de Felipe, antes de consolo, agora parecia misturado com uma pontinha de decepção, mesmo que ele tentasse esconder. Ele apenas assentiu, voltando os olhos para o caderno. Renata sentiu a pontada da culpa se aprofundar, como uma ferida antiga que nunca cicatriza. Um abraço rápido e um beijo na testa do filho foram tudo o que ela conseguiu dar. O dever de mãe, por mais que ela se esforçasse, parecia sempre ter uma dívida pendente.
O apartamento finalmente mergulhou em um silêncio pesado, que para Renata, era quase mais barulhento que o caos do dia. Thiago já roncava ao seu lado na cama, alheio a qualquer preocupação ou culpa. Lucas e Felipe estavam nos seus mundos de adolescentes. Mas para Renata, o sono era um luxo distante. Mesmo com o corpo exausto pedindo trégua, sua mente se recusava a desligar. As palavras cortantes de Valéria sobre as metas não batidas ecoavam. O cheiro de suor do ônibus lotado parecia ainda impregnar seus lençois. E o olhar de Felipe no jantar, um misto de carinho e decepção, era uma pontada constante em seu peito. A cena do prato quebrado por Thiago, os cacos espalhados pelo chão, se repetia em loop em sua mente.
Ela se virou na cama, buscando uma posição que pudesse aliviar a tensão, mas era inútil. Em meio à escuridão do quarto, a mente dela voou para um tempo distante, para a adolescência, quando as escolhas pareciam mais simples e o futuro, um campo aberto de possibilidades.
Lembrou-se de Daniel. Daniel, o "nerd" da sala, com seus óculos redondo, a camiseta sempre um pouco amarrotada e um jeito tímido de falar que a maioria ignorava. Ele era inteligente, gentil, e os olhos dele sempre a seguiam com uma admiração tão pura que, na época, ela não soube valorizar. Ele tentava conversar sobre livros, sobre o futuro, sobre coisas que pareciam tão chatas para uma garota de 16 anos. Renata, cega pelo brilho efêmero da popularidade, mal o notava. Daniel estava ali, um porto seguro que ela não enxergava, ocupada demais sonhando com o garoto que todos queriam.
E esse garoto era Thiago. Ah, Thiago. O famoso, o popular, o bonito, com seu jeito descolado, o sorriso fácil e a fala mansa que a conquistou sem esforço. Ele era o centro das atenções, o que as meninas suspiravam, e tê-lo ao seu lado na adolescência era como ter um passe VIP para o mundo idealizado da escola. Ela se lembrava de como se sentia especial ao ser escolhida por ele, ignorando os sinais de um ego inflado ou de uma necessidade de controle que, na juventude, pareciam apenas charme. A paixão ofuscou tudo, inclusive a leveza e a genuinidade que Daniel oferecia.
Renata fechou os olhos com força, como se pudesse apagar aquelas lembranças e reescrever o roteiro da sua vida. Tinha trocado a promessa de uma conexão real pela ilusão de um status. Tinha escolhido o "famosinho" em vez do "nerd" de bom coração. E ali estava ela, anos depois, com as consequências de suas escolhas pesando sobre cada nervo do seu corpo cansado. A linha do equilíbrio estava mais esticada do que nunca, e cada memória, cada arrependimento, puxava um dos lados, ameaçando romper de vez.
O estalar dos cacos de vidro que Thiago jogou no chão ainda parecia ecoar na cozinha, mesmo depois de Renata ter varrido cada pedacinho. A janta tinha terminado, mas a tempestade não havia passado. Em vez disso, um silêncio pesado tomou conta do apartamento, mais frio e sufocante que qualquer grito. Não era a paz do fim do dia, mas o vazio deixado por uma bomba que explodiu e espalhou estilhaços invisíveis por todo lado.
Thiago, como se nada tivesse acontecido, se arrastou para a sala e se jogou no sofá. Ligou a TV em um volume alto, trocando os canais sem parar, os olhos fixos na tela, mas a mente longe. Era como se ele tivesse puxado uma cortina entre ele e o resto da casa, um jeito de dizer: "Não estou aqui. Não ouço. Não vejo." A indiferença dele era um peso a mais no ar já denso.
Lucas, o mais velho, não demorou para seguir o exemplo. Com seu jeito sério e reservado, ele pegou a mochila do chão e, sem dizer uma palavra, se fechou no quarto. O leve clique da porta sendo trancada foi um som familiar. Ali, atrás daquela porta, ele encontraria seu refúgio: o mundo dos jogos, dos fones de ouvido que bloqueavam o barulho de fora e, principalmente, a tensão de dentro. Era a maneira dele de lidar com o caos, se isolando, planejando suas próprias batalhas virtuais enquanto a real acontecia na casa.
Renata e Felipe ficaram na cozinha, sozinhos, em meio ao que restava do jantar. O vácuo que Thiago e Lucas deixaram era quase físico, uma ausência que pesava.
Enquanto Lucas se trancava em seu mundo virtual, Felipe permanecia na cozinha com Renata, sentindo-se exposto e sozinho no silêncio pesado que pairava no ar. Diferente do irmão mais velho, que já havia construído suas próprias muralhas, Felipe ainda buscava algum tipo de consolo, uma palavra de entendimento que pudesse aliviar a tensão.
Ele se aproximou de Renata, que organizava a pia com movimentos automáticos, o olhar distante. "Mãe...", ele começou, a voz baixa, quase um sussurro, como se o medo de perturbar a calma tensa o impedisse de falar mais alto. Ele queria comentar sobre o jantar, talvez perguntar se ela estava bem, ou simplesmente quebrar aquele gelo. Mas as palavras morreram em sua garganta, perdidas no vazio entre eles.
Renata mal o ouviu. Sua mente ainda estava presa nos cacos de vidro, nas palavras de Thiago, na exaustão que a consumia. Ela sentiu o olhar de Felipe sobre si, um olhar carregado de consolo e preocupação, buscando uma conexão que ela não tinha forças para dar.
Felipe se aproximou do sofá, abrindo o caderno de matemática na esperança de conseguir resolver as equações. Mas a frustração com a lição de casa se misturava à preocupação com a mãe. Ele queria a ajuda dela, o apoio que sempre recebia, mas a viu chegar, os ombros curvados, o olhar perdido. O "tô tentando fazer a lição de casa de matemática, mãe, mas não tô entendendo nada" que ele ensaiou na cozinha se perdeu no ar.
Renata sentou-se ao lado dele, mas o peso em seus ombros era quase palpável.
— Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. -ela disse, a voz embargada. — Não tô conseguindo pensar direito.
Felipe sentiu a decepção o-invadir. Ele não queria culpá-la, mas a ausência da mãe, mesmo ali ao lado, era como um buraco que se abria entre eles. Ele assentiu em silêncio, abaixando os olhos para o caderno.
Na sala, Thiago parecia alheio a tudo, mergulhado na televisão. Ele ziguezagueava pelos canais, o som alto preenchendo o vazio da casa, mas sem preencher a família. Para ele, o incidente do prato quebrado já havia acabado, um problema de Renata, não dele. Não havia nele qualquer sinal de preocupação com o silêncio dos filhos, nem um pingo de remorso pelo ambiente que ele mesmo havia criado.
Era como se, para Thiago, a casa fosse apenas um cenário onde ele encenava suas vontades, e a família, meros figurantes. Sua indiferença era gritante, uma ausência de suporte que pesava mais do que qualquer briga. Ele não oferecia uma palavra de conforto, um olhar de reconhecimento para a exaustão de Renata, nem um sinal de que percebia o impacto em Lucas ou Felipe.
Essa omissão era sua forma de intervenção – uma intervenção silenciosa e destrutiva. Enquanto Renata se desdobrava entre a exaustão do trabalho e a tentativa de manter a família unida, Thiago se consolidava como uma força passiva que minava a paz. Sua presença ali, tão fisicamente próxima e emocionalmente distante, era um lembrete constante da solidão de Renata e da fragilidade daquele lar.
No seu quarto, Lucas tentava vencer suas próprias batalhas. No mundo dos games, a concentração era tudo. Mesmo que a "batalha da vida" lá fora estivesse apertando, sua jornada virtual tinha que ser perfeita. No intervalo entre uma partida e outra, no silêncio do jogo em pausa, a voz da mãe chegou aos seus ouvidos, baixinha, vinda do corredor: "Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. Não tô conseguindo pensar direito."
Aquelas palavras. Mais uma vez, o trabalho parecia engolir tudo. Lucas sentiu um bolo na garganta ao lembrar das próprias atividades mal feitas no passado, da falta de apoio que o fez crescer rápido demais. A partida recomeçaria a qualquer segundo, não podia ter distrações, desistir não era opção. Mas o silêncio pesado que se instalou na sala, a imagem de Felipe sozinho com a lição, pesou imensamente na sua consciência. Felipe não podia ter o mesmo destino que ele.
Sem pensar duas vezes, Lucas desligou o computador, o barulho da tela apagando cortando o som do jogo. Foi até a porta e a abriu. Lá estava Felipe, no sofá, com o caderno de matemática no colo.
— Feh, tá precisando de ajuda? — Lucas perguntou, a voz mais suave do que esperava.
Felipe desviou o olhar para o caderno, sacudindo a cabeça.
— Não, não precisa se preocupar. — Ele não sabia resolver aquelas equações de jeito nenhum, mas não queria incomodar Lucas, o irmão que sempre parecia ocupado demais.
— É atividade de quê? — Lucas insistiu, já sabendo a resposta.
— Matemática.
Lucas conhecia o irmão como a palma da mão. Sabia que Felipe era um desastre em matemática e que preferia mil vezes errar sozinho a pedir ajuda. "Tão novo, tão inocente", pensou Lucas, "mesmo simpático e comunicativo, era tão fechado para pedir ajuda."
— Vem cá, eu te ajudo. — Lucas disse, se aproximando.
Os olhos de Felipe se arregalaram, e o semblante dele mudou na hora, um brilho de esperança surgindo.
— Sério?
Lucas sentiu uma pontada no peito. O irmão precisava dele, não só na lição de matemática, mas na vida. Ele pensou em responder um "sim" tranquilo, mas sua função de irmão mais velho, sua responsabilidade de protetor, não deixou. Então, soltou um "Adiante, pivete", com um meio sorriso que Felipe, e só ele, sabia traduzir como puro carinho.
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