Fragmentos do equilíbrio

A manhã na Paradise Telecom começou com um peso diferente. Não era apenas a rotina. Valéria, com seu sorriso mais forçado que o de um palhaço triste, convocou a equipe para um "alinhamento estratégico". Mas Renata sabia que, vindo de Valéria, "alinhamento" era sinônimo de "aperto".

— Pessoal… — Valéria começou, a voz cortante ecoando no salão. — A partir de hoje, a dinâmica muda. Chega de focar só em um tipo de produto. Nossos clientes merecem o pacote completo, e nós vamos entregar! Todos vocês, a partir de agora, serão atendentes multi-produtos.

Renata sentiu um frio na espinha. "Multi-produtos" significava ter que vender tudo. Desde planos de internet a pacotes de TV, linhas de celular e até mesmo aquelas soluções corporativas complicadíssimas que ninguém entendia direito. O "inferno" particular da Paradise Telecom acabava de ganhar mais andares. Se antes já era um desafio vender um único item, agora ter que dominar e empurrar uma dúzia de serviços, cada um com suas regras e pegadinhas, parecia uma tortura.

A expressão de Valéria endureceu.

— A meta, claro, será ajustada. E o monitoramento também. Cada ligação será mais do que nunca a vitrine do nosso desempenho. Quem não estiver pronto para abraçar essa nova fase, sabe o caminho da porta. A Paradise não aceita menos que a excelência total.

As palavras de Valéria eram como pregos sendo martelados na pouca esperança que Renata ainda tinha de ter um dia tranquilo. A pressão subiu. Ela não seria apenas uma vendedora, mas uma enciclopédia de produtos e soluções, com cada erro ou falha significando um passo mais perto daquela porta que Valéria adorava mencionar. O dia mal começara e Renata já sentia o peso insuportável de ter que vender o "inferno" inteiro da Paradise Telecom.

O novo cerco na Paradise Telecom não demorou a cobrar seu preço em casa. Renata agora chegava em um estado de exaustão que beirava o colapso, algo que Lucas e Felipe sentiram na pele, especialmente na hora da janta. O corpo dela, já moído pela rotina, parecia se recusar a cooperar depois de um dia empurrando "soluções completas" e engolindo sapos da Valéria.

As refeições, antes um momento de (relativa) união, viraram um lembrete cruel da ausência da mãe, mesmo quando ela estava ali. Renata se arrastava para a cozinha, mas a energia para preparar algo mais elaborado ou para sequer conversar tinha se esgotado. A janta se resumia a algo rápido, às vezes uma comida pronta ou o que desse para improvisar. Ela sentava à mesa, mas seus olhos estavam fixos em algum ponto distante, a mente longe, processando o dia, ou simplesmente vazia de tanto cansaço.

Lucas e Felipe percebiam. Não havia mais a pergunta sobre como foi o dia deles, nem a piada rápida, nem a paciência para ajudar com um copo d'água esquecido. A mãe estava ali, mas não estava. A presença dela se transformara em uma sombra cansada, e a mesa de jantar, que antes oferecia um breve porto seguro, agora era mais um palco para os ecos do esgotamento de Renata.

A sobrecarga de Renata não pesava só na rotina. Ela escorria pelos cantos da casa e se infiltrava no emocional dos filhos, silenciosamente. Em Felipe, a dificuldade em matemática, que já era um desafio, virou uma montanha intransponível. A mente dele parecia um rádio com várias estações tocando ao mesmo tempo, incapaz de sintonizar uma única tarefa. Mesmo em outras matérias, antes fáceis, a concentração sumia, substituída por uma névoa de preocupação.

Certa tarde, enquanto tentava fazer a lição de história, Felipe sentiu algo estranho. O coração acelerou sem motivo, as mãos suaram frio, e o ar parecia rarefeito. Era uma sensação nova, assustadora, como se o chão fosse sumir a qualquer momento. Sua primeira crise de ansiedade o atingiu em cheio, um reflexo do nó na garganta que a casa virara, da exaustão da mãe e das palavras não ditas. Ele tentou respirar fundo, mas o peito apertava, e uma vontade incontrolável de chorar o invadiu, sem saber direito o porquê.

Lucas, por outro lado, mantinha sua fachada inabalável. Com seu olhar calculista, ele observava tudo. Via a mãe cada vez mais apagada, o pai indiferente, e agora, o irmão mais novo lutando com algo que ele, Lucas, entendia perfeitamente: o peso silencioso de um lar em desequilíbrio. A raiva guardada de Lucas, aquela que o fazia ser pavio curto, ganhava novas camadas ao ver Felipe sofrer. Seu papel de protetor ganhava ainda mais força diante da fragilidade do irmão.

Lucas era como um vulcão adormecido. Por fora, a expressão séria e reservada era uma barreira quase impenetrável. Mas por dentro, a observação silenciosa de tudo que acontecia – a exaustão crescente da mãe, o desinteresse irritante do pai, e agora, a fragilidade de Felipe com a crise de ansiedade – transformava a calmaria em um caldeirão borbulhante. A raiva, o desamparo, a frustração de não conseguir mudar a situação se acumulavam, camada por camada.

O pavio curto de Lucas, que raramente explodia em gritos como os de Thiago, se manifestava de outras formas. Era na respiração que ficava um pouco mais pesada quando ouvia uma porta bater forte. Era no maxilar que se contraía, quase invisível, quando Renata suspirava de cansaço ou quando Thiago fazia um comentário indiferente. Seus dedos tamborilavam na mesa sem ritmo, ou ele se remexia na cadeira, uma inquietação que mal conseguia conter.

Ele sentia o peso daquele lar, um peso que tentava empurrar para o fundo da alma, mas que insistia em flutuar. E essa carga, silenciosa e pesada, fazia com que o jovem Lucas se sentisse uma panela de pressão prestes a explodir, sem saber onde liberar toda aquela energia reprimida.

Toda aquela pressão interna precisava sair de alguma forma. E para Lucas, a válvula de escape era seu mundo virtual. Os jogos se tornaram mais do que um refúgio; viraram um vício, uma fuga para não explodir na vida real. Horas a fio em frente à tela, imerso em batalhas e estratégias, era onde ele se perdia para esquecer o clima pesado de casa. Era ali que ele tinha algum controle, alguma vitória, algo que a vida real parecia negar.

Mas mesmo em seu isolamento, Lucas não tirava os olhos de Felipe. Aquele instinto protetor era mais forte do que qualquer frustração. Numa tarde, enquanto o pai brigava com Felipe por um detalhe qualquer, a voz de Thiago ecoando pela sala, Lucas sentiu a panela de pressão apitar. Ele podia ter ficado no quarto, ignorando, como muitas vezes fazia. Mas ver o irmão encolhido, quase chorando, acionou algo nele.

Lucas saiu do quarto, a cara fechada, o olhar de poucos amigos. "Deixa ele, pai", ele soltou, a voz um pouco mais grave do que o normal, cortando a fala de Thiago. Não foi um grito, mas a firmeza e o tom frio deixaram claro que era um aviso. Thiago o encarou, surpreso pela interrupção, e Lucas não desviou o olhar. Bastou aquele instante de confronto para Thiago recuar, a discussão morrendo no ar.

Felipe olhou para o irmão, um misto de surpresa e alívio nos olhos. Lucas, por sua vez, apenas deu de ombros e voltou para o quarto, mas sabia que tinha agido. Sua rebeldia era silenciosa, sim, mas quando se tratava de Felipe, ela tinha voz e ação.

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