O fio se estica

O relógio digital no canto inferior da tela do computador parecia correr mais devagar nos últimos minutos do turno. 17h50. Renata sentia cada minuto se arrastar com a lentidão de uma fila de banco em plena segunda-feira. Seus ouvidos zumbiam com a repetição de "Boa tarde, Paradise Telecom, meu nome é Renata, em que posso ajudar?" e a incessante pressão por vendas. A garganta arranhava, os ombros latejavam. E o pior: a meta diária estava longe de ser batida. Por mais que tentasse, por mais que forçasse a voz a soar animada, a irritação dos clientes e a rigidez dos protocolos eram barreiras intransponíveis.

A luz vermelha em seu ramal piscou mais uma vez, mas Renata a ignorou por um segundo. A meta, que deveria ser um horizonte a ser alcançado, parecia agora um precipício. Havia tentado todas as estratégias, usado todos os "gatilhos de venda" que Valéria tanto falava, mas as linhas pareciam ter sido programadas para cair em clientes resistentes ou desligar na sua cara. A frustração era um nó no estômago.

Precisamente às 18h00, o sistema de Valéria liberou o sinal de "fim de expediente". Mas o alívio que deveria vir foi logo substituído por um estrondo. Valéria, com sua postura de general, já estava postada no centro do salão, a voz amplificada pelo silêncio quase ensurdecedor que se seguiu ao desligamento dos sistemas.

— Atenção, equipe do plantão diurno! — sua voz cortou o ar como um raio. — Parece que o 'paraíso' de vendas de alguns hoje não foi tão paradisíaco assim, não é?

O sarcasmo pingava de cada palavra.

— A meta do dia não foi atingida por uma margem vergonhosa! Sei que o dia é longo, sei que vocês têm vida, mas a Paradise Telecom não para. Nossos clientes não param de querer o melhor plano, a melhor conexão! E se vocês não entregam, quem paga a conta? A EMPRESA! E por tabela, vocês!

Renata encolheu-se ligeiramente em sua cadeira, tentando parecer invisível enquanto Valéria listava, sem citar nomes, as deficiências de desempenho.

— Precisamos de mais garra, mais foco, mais VENDA! Quem não está performando, sabe que a porta está ali para o lado de fora, pronta para quem quiser ir embora.

As palavras eram pontas afiadas, cutucando as feridas abertas da insegurança no emprego. O olhar de Valéria varreu o ambiente novamente, demorando em alguns rostos, incluindo o de Renata. A ameaça, mesmo que velada, era clara: a cada dia que a meta não fosse batida, o "fio" de sua permanência na Paradise Telecom ficava mais e mais esticado, prestes a arrebentar.

18:05. O relógio no celular de Renata marcava a exata hora de saída do ônibus 712. Era quase impossível pegá-lo, mas uma pontinha de esperança a empurrava. Disparou da catraca da Paradise Telecom como se o inferno a perseguisse, os saltos baixos mal aguentando o ritmo acelerado pela calçada. A cada passo, o corpo gritava pelo dia exaustivo, mas a ideia de um jantar no horário a fazia ir em frente. Chegou à esquina sem fôlego, e viu as luzes traseiras do 712 sumindo no horizonte. Mas não, lá estava ele, parado no ponto. Uma sorte no meio do caos. Passou pela catraca suada e soltou um suspiro de alívio que, por um instante, silenciou o barulho na cabeça. Chegaria em casa no horário, ou assim ela esperava.

A trégua foi curta. Às 18:50, o corpo de Renata já parecia pesar toneladas no banco desconfortável do 712. Mais uma luta a caminho. Ao descer para pegar o outro ônibus, a calçada, antes um alívio, virou o cenário da próxima batalha: pegar o 305 das 19:00. Dez minutos se arrastaram, quinze, vinte. Cada segundo a mais era um lembrete cruel de que ela não tinha controle sobre nada. O ponto, antes um lugar de espera, transformou-se de novo em um formigueiro humano, mais apertado, mais impaciente, com todo mundo cansado. Quando o 305 finalmente arrastou o busão velho às 19:27, a raiva era quase palpável no ar. De volta ao aperto sufocante, ao cheiro de suor e àquela cena de gente se espremendo por todo lado. Ela se agarrou a uma barra gelada, fechando os olhos por um instante, sentindo cada sacolejo do ônibus reverberar no corpo todo.

Às 19:53, a porta do 305 se abriu em seu ponto final. Sentiu um alívio enorme escorrer pelo corpo. O ar fresco da noite era um abraço. Alguns passos cambaleantes até a porta do prédio. Finalmente, em casa. A mente de Renata já corria adiante, planejando o jantar rápido, o banho quente e o merecido descanso que, no fundo, ela sabia que talvez nunca chegasse por completo.

Renata finalmente girou a chave na fechadura, sentindo o peso do dia esmagá-la. Aquele dia tinha sido um verdadeiro teste de resistência, e o atraso colossal do ônibus 305 havia sido a gota d'água. Chegar no "paraíso" da Paradise Telecom em cima da hora significou perder aqueles preciosos minutos de paz, o único tempo que tinha para mergulhar no "paraíso eterno" da leitura da Bíblia, cada versículo um bálsamo que ela desesperadamente precisava antes do script padronizado e do caos.

Ainda exausta, ela mal pôs a mochila no chão, ao lado do sofá gasto, e o corpo já pedia o refúgio do chuveiro. Mas antes que pudesse sequer pensar em ligar a água, a voz de Thiago cortou o silêncio do apartamento, afiada como um bisturi.

— Além de chegar tarde, vai ainda tomar banho? Como se não tivesse família para pensar.

Renata soltou um suspiro quase silencioso, mas profundo, que pareceu carregar todo o cansaço do mundo. Suas costas endureceram. Aquele dia já tinha sido uma maratona de agressões, mas ela se recusava a deixar que aquelas palavras, tão previsíveis, roubassem a pequena porção de paz que sonhava ter à noite. Deixou as roupas no cesto do banheiro, a ideia do banho quente adiada, e foi para a cozinha. O cheiro de café fresco, feito por alguém (provavelmente Thiago, para si mesmo), já pairava no ar. Enquanto o cuscuz chiador cozinhava na cuscuzeira, ela fritava alguns ovos com pressa, o estômago roncando, mas a prioridade era a janta da casa.

Tudo pronto. O cheiro da comida recém-preparada dava um sopro de normalidade. Finalmente, Renata poderia ter um minuto de prazer no banho de água quente. Mas sua paz, como sempre, foi curta e brutalmente interrompida. Thiago, sentado à mesa, empurrou o prato.

— Impossível comer essa porcaria! -ele gritou, a voz alterada, e num movimento brusco e violento, jogou o prato no chão.

O som do vidro se estilhaçando ecoou pela cozinha, um barulho seco e cortante que pareceu quebrar algo dentro de Renata também. Os cacos brilhavam perigosamente no chão, misturados aos pedaços de cuscuz e ovos. Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Renata, mas no mesmo segundo, ela a enxugou com raiva, erguendo a cabeça. Não daria a ele o prazer de vê-la desabar.

— Recolha isso, Thiago. Por favor. -pediu, a voz baixa, mas firme, tentando manter a calma.

A resposta veio fria e cheia de desprezo, um golpe final para o dia dela:

— Limpe você. É pra isso que existe mulher.

Os cacos de cerâmica jaziam no chão da cozinha como fragmentos da paz que Renata tanto almejava. Com a raiva se misturando ao cansaço, ela pegou a vassoura e a pá, varrendo cada pedaço, com Thiago ainda sentado à mesa, indiferente, fingindo que nada havia acontecido, a expressão vazia. Não houve desculpas, não houve ajuda. Apenas o som arrastado da vassoura e o murmúrio dos pensamentos de Renata: "É sempre assim. A culpa é sempre minha, a bagunça é sempre minha para limpar."

Minutos depois, com a cozinha minimamente limpa e a raiva contida, Renata serviu novamente a janta, desta vez para ela, Lucas e Felipe. Thiago pegou mais um prato na pia, se serviu e comeu em silêncio, o que era quase pior do que os gritos. Os meninos, que haviam testemunhado a explosão do pai – ou pelo menos sentido o tremor dela –, comiam em um silêncio pesado. Lucas, com seus 16 anos, picava a comida no prato, o olhar fixo e calculista, como se estivesse processando cada detalhe da cena, já analisando as próximas jogadas. Felipe, de 13, olhava para a mãe de esguelha, com os olhos carregados de consolo e uma preocupação muda, como quem queria dizer "estou com você" sem poder falar uma palavra.

Nenhum som além do tilintar dos talheres nos pratos, nenhum olhar que se encontrasse por mais de um segundo. A comida não tinha sabor. A tensão era uma névoa fria que pairava sobre a mesa, mais densa que qualquer fumaça de cozinha. Renata sentia o olhar de Felipe sobre ela e o silêncio observado de Lucas como acusações mudas. A culpa materna, que a acompanhava como uma sombra, apertava seu peito. Ali, naquele lar que deveria ser um refúgio, ela era apenas mais uma peça em um jogo de xadrez onde a cada movimento ela se sentia encurralada.

Depois da janta silenciosa, cada um foi para seu canto. Thiago para a sala, zapeando canais com um controle remoto que parecia um escudo. Lucas se trancou no quarto, provavelmente com os fones de ouvido, fugindo para o mundo dos jogos. Felipe, ainda um pouco mais próximo, estava no sofá, com um caderno aberto no colo, a testa franzida em um sinal de dificuldade.

Renata viu a oportunidade. Embora o corpo gritasse por um descanso e a cabeça ainda estivesse pesada pela tensão da noite, ela se sentia na obrigação de tentar se conectar, de diminuir a distância imposta pela rotina.

— Tudo bem por aqui, filho? -perguntou a Felipe, sentando-se com cuidado ao lado dele, o cheiro de sabonete vindo do cabelo ainda úmido.

Felipe levantou os olhos, um misto de cansaço e confusão na expressão.

— Tô tentando fazer a lição de casa de matemática, mãe, mas não tô entendendo nada. É sobre aquelas equações... a professora explicou rápido hoje após a prova.

A culpa a atingiu em cheio. Renata pensou nos intermináveis scripts da Paradise Telecom, nas metas inatingíveis, nos gritos da Valéria. Pensou nos ônibus lotados, na marmita que comeu sozinha e na briga com Thiago. Havia saído de casa antes de o sol nascer e voltaria a se levantar no escuro. Como poderia ter energia para desvendar equações com o filho? Seu cérebro parecia uma esponja torcida, sem mais nada para espremer.

— Filho, a mãe está tão cansada hoje, meu amor. -ela começou, a voz carregada de um peso que não queria que Felipe sentisse.

— Não tô conseguindo pensar direito. Por que você não tenta de novo, dá uma olhada no livro? Amanhã cedo, antes de eu sair, a gente tenta de novo, ou você pede pro Lucas te ajudar, tá bom?

O olhar de Felipe, antes de consolo, agora parecia misturado com uma pontinha de decepção, mesmo que ele tentasse esconder. Ele apenas assentiu, voltando os olhos para o caderno. Renata sentiu a pontada da culpa se aprofundar, como uma ferida antiga que nunca cicatriza. Um abraço rápido e um beijo na testa do filho foram tudo o que ela conseguiu dar. O dever de mãe, por mais que ela se esforçasse, parecia sempre ter uma dívida pendente.

O apartamento finalmente mergulhou em um silêncio pesado, que para Renata, era quase mais barulhento que o caos do dia. Thiago já roncava ao seu lado na cama, alheio a qualquer preocupação ou culpa. Lucas e Felipe estavam nos seus mundos de adolescentes. Mas para Renata, o sono era um luxo distante. Mesmo com o corpo exausto pedindo trégua, sua mente se recusava a desligar. As palavras cortantes de Valéria sobre as metas não batidas ecoavam. O cheiro de suor do ônibus lotado parecia ainda impregnar seus lençois. E o olhar de Felipe no jantar, um misto de carinho e decepção, era uma pontada constante em seu peito. A cena do prato quebrado por Thiago, os cacos espalhados pelo chão, se repetia em loop em sua mente.

Ela se virou na cama, buscando uma posição que pudesse aliviar a tensão, mas era inútil. Em meio à escuridão do quarto, a mente dela voou para um tempo distante, para a adolescência, quando as escolhas pareciam mais simples e o futuro, um campo aberto de possibilidades.

Lembrou-se de Daniel. Daniel, o "nerd" da sala, com seus óculos redondo, a camiseta sempre um pouco amarrotada e um jeito tímido de falar que a maioria ignorava. Ele era inteligente, gentil, e os olhos dele sempre a seguiam com uma admiração tão pura que, na época, ela não soube valorizar. Ele tentava conversar sobre livros, sobre o futuro, sobre coisas que pareciam tão chatas para uma garota de 16 anos. Renata, cega pelo brilho efêmero da popularidade, mal o notava. Daniel estava ali, um porto seguro que ela não enxergava, ocupada demais sonhando com o garoto que todos queriam.

E esse garoto era Thiago. Ah, Thiago. O famoso, o popular, o bonito, com seu jeito descolado, o sorriso fácil e a fala mansa que a conquistou sem esforço. Ele era o centro das atenções, o que as meninas suspiravam, e tê-lo ao seu lado na adolescência era como ter um passe VIP para o mundo idealizado da escola. Ela se lembrava de como se sentia especial ao ser escolhida por ele, ignorando os sinais de um ego inflado ou de uma necessidade de controle que, na juventude, pareciam apenas charme. A paixão ofuscou tudo, inclusive a leveza e a genuinidade que Daniel oferecia.

Renata fechou os olhos com força, como se pudesse apagar aquelas lembranças e reescrever o roteiro da sua vida. Tinha trocado a promessa de uma conexão real pela ilusão de um status. Tinha escolhido o "famosinho" em vez do "nerd" de bom coração. E ali estava ela, anos depois, com as consequências de suas escolhas pesando sobre cada nervo do seu corpo cansado. A linha do equilíbrio estava mais esticada do que nunca, e cada memória, cada arrependimento, puxava um dos lados, ameaçando romper de vez.

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