Eu Sou Sua "Ruína" Favorita
📖 Dedicatória
A todos que já foram pequenos demais para o mundo,
mas grandes o suficiente para sobreviver a ele.
— Com carinho, Kauan
Capítulo 1 — Onde o sol toca o silêncio
Os pés de Biel afundavam levemente na areia fina, espalhada entre pedaços de capim seco que balançavam com o vento. O sol queimava alto, radiante como nunca, e o céu parecia limpo demais para alguém que carregava tanto dentro de si.
Com a mochila escolar nas costas, ele corria. Não porque estivesse atrasado, nem porque alguém o esperava — mas porque precisava sentir o corpo em movimento. Precisava esquecer.
Ao seu lado, um cachorro grande e desajeitado corria junto, abanando o rabo, como se aquele momento fosse o melhor do mundo. Era o único amigo que ele tinha ali. Biel sorriu, ofegante, mas feliz.
De repente, parou no meio do nada. Em volta, só areia, mato ralo e o som do vento. Nada além disso.
Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e gritou.
Gritou como se o mundo inteiro precisasse ouvir, mesmo que não houvesse ninguém ali.
Gritou com força.
Com dor.
Com liberdade.
— AAAAAAAAAAH! —
Sua voz ecoou entre o silêncio dos campos, se perdendo no vazio.
***
Biel caminhava devagar pela estrada de terra, com os tênis já gastos e a mochila balançando em suas costas. O cachorro seguia ao lado, fiel, como se soubesse que, mesmo em silêncio, Biel dizia tudo com os olhos.
Ele olhou para o céu, limpando o suor da testa com a manga da camisa aberta, e então se curvou um pouco para falar com seu amigo de quatro patas.
— Você sabia que eu sou um ômega recessivo, né, Totó? — disse com um sorrisinho cansado. — Mas ninguém pode saber disso... principalmente lá na universidade.
O cachorro o olhou com a língua de fora, abanando o rabo, como se entendesse cada palavra.
— Lá... eles têm preconceito, Totó. Ainda mais com ômegas pobres. — Biel olhou para frente, os olhos ficando meio vidrados. — E se eles descobrirem... vão usar isso contra mim.
Deu um passo lento, pensativo. Depois voltou a sorrir, forçado.
— Mas eu vou fazer amigos! Muitos amigos! — disse, fingindo empolgação, jogando o braço no ar como quem comemorava algo.
— Eu... — riu. — Eu nunca tive amigos, né? Mas tudo bem. Vou ter agora. Vai ser diferente dessa vez.
Totó latiu uma vez, alto, como se estivesse concordando. Biel passou a mão na cabeça dele.
— Você é meu único amigo, sabia? — murmurou. — Mas talvez lá... alguém queira sentar comigo no almoço. Quem sabe até dividir um lanche, ou me chamar pra sair... — sua voz foi diminuindo. — Ou não, né?
O caminho seguia silencioso, com apenas o som de pássaros ao longe e o vento leve batendo nas folhas. Foi então que, ao longe, um barulho familiar surgiu: um pequeno trator, daqueles usados para carregar sacos ou galões de leite, vinha subindo a estrada de terra com um rangido irritante.
Quando o tratorzinho se aproximou, o homem que dirigia, de chapéu de palha e pele queimada do sol, sorriu ao ver Biel.
— Olha só! O rapaz da dona Zefa! Vai pra cidade mesmo?
Biel apenas assentiu, sem mudar a expressão. O homem não se deu por vencido.
— Você e sua avó vão morar lá, é? Abandonar esse paraíso aqui?
Biel respirou fundo. Evitava conversar com as pessoas do vilarejo. Evitava se abrir. Evitava criar laços.
Mas dessa vez, respondeu.
— Eu vou sozinho... — disse, num tom baixo. — Minha vó vai ficar aqui com meu tio.
O homem arqueou a sobrancelha, surpreso.
— Então você sabe falar, hein? Pensei que fosse mudo de tanto que vive calado. Você nunca conversa com ninguém, nunca participa de nada... deve ser bem solitário, né?
As palavras bateram fundo. Biel olhou pro chão, e respondeu, firme, mas triste:
— Eu prefiro assim.
O homem coçou a cabeça, um pouco desconcertado, e acelerou o trator devagar, deixando a poeira subir atrás dele.
— Boa sorte lá, rapaz. A cidade não é fácil, não...
Biel ficou olhando até o trator sumir na curva da estrada. Depois, suspirou. O cachorro se aproximou e deitou aos pés dele, como se sentisse o peso em seu peito.
— Eu sei que não vai ser fácil, Totó... — ele disse, de olhos fechados. — Mas eu preciso tentar. Por mim... e pela minha vó.
Ficaram ali parados por alguns minutos. O tempo parecia desacelerar. Biel pensava em como tudo ia mudar. Em como ele estava indo para um lugar onde ninguém o conhecia... onde poderia ser qualquer coisa. Ou... ninguém.
Ele abaixou-se, apertando o cachorro num abraço forte.
— Fica com a vó, tá? Cuida dela por mim.
O cachorro lambeu sua bochecha. Biel fechou os olhos, segurando o choro.
Sabia que, ao dar o primeiro passo em direção à cidade, deixaria pra trás a única parte de si que ainda era livre.
E foi então que ele caminhou. Sem olhar pra trás.
Sem saber que, do outro lado da cidade, alguém com olhos frios e sorriso perigoso já caminhava no mesmo destino...
Alguém que nunca acreditou no amor.
***
Enquanto Biel caminhava sozinho entre poeira e promessas, do outro lado da cidade, os holofotes iluminavam outro mundo. Um mundo de música ambiente refinada, taças de cristal tilintando, perfumes caros e sorrisos falsos.
Arthur atravessava o salão como quem atravessa um campo de adoração. Homens, mulheres, alfas, ômegas — todos paravam para vê-lo passar.
Não era apenas sua beleza absurda, nem a roupa de grife impecável...
Era o feromônio.
Um feromônio sobrenatural, que deixava o ar denso, os corpos suados, as mentes atordoadas. Ele era o vício. O desejo proibido.
E ele sabia disso.
Sem nem olhar para os lados, seguiu direto para o elevador privativo. As luzes do bar refletiam nos espelhos do lugar enquanto ele entrava sozinho, apertando o botão que levava ao andar VIP — onde seus amigos o esperavam.
Mas, segundos antes das portas se fecharem, uma mulher entrou.
Alta, elegante, com um vestido justo que valorizava cada curva. Ela não disse nada. Apenas encostou-se no canto do elevador e ficou ali, quieta.
Arthur não gostava de interrupções.
Muito menos de presenças que não se derretiam diante dele.
Irritado com a audácia dela, liberou seus feromônios com intensidade. Uma onda quente, invisível, poderosa. Era o suficiente para fazer até um beta desmaiar de prazer, ou um ômega cair de joelhos.
Mas... ela não se moveu.
Nenhuma reação. Nenhum suspiro. Nenhum arrepio.
A mulher apenas olhou para frente, e quando o elevador chegou ao andar dela, saiu sem dizer uma palavra.
Sumiu nos corredores como uma sombra.
Como se ele fosse... comum.
Arthur ficou parado, completamente em silêncio. A testa franzida. Os olhos fixos na porta do elevador, agora fechada.
"Como assim ela não reagiu aos meus feromônios...? Até um beta teria ficado tonto..."
Foi então que a porta do lounge VIP se abriu com um estalo, e um de seus amigos entrou no elevador com um copo na mão, sorrindo.
— Ei, cara! Tá aí parado por quê? Ficou congelado? — riu, dando um tapa leve no ombro de Arthur. — O que foi?
Arthur piscou devagar, como se estivesse voltando à realidade.
— Acho... que eu encontrei a minha Cinderela.
O amigo gargalhou alto.
— Cinderela?! Você já tá de olho em outra garota? Você mesmo falou que tava cansado das últimas...
Arthur não respondeu de imediato. Apenas olhou para o chão com um meio sorriso.
— Essa é diferente.
O amigo o empurrou de leve com o ombro.
— Diferente? Igual a de ontem? Igual a da semana passada? Todas são "diferentes", Arthur. Você mesmo que disse. Depois larga no dia seguinte...
Arthur olhou para o espelho do elevador. E pela primeira vez... duvidou disso.
— Não... essa é diferente de verdade. Ela me ignorou.
O amigo ergueu uma sobrancelha.
— Ignorou? Quem ignora você?
Arthur sorriu de lado. Um sorriso entre raiva e fascínio.
— Não faço ideia. Mas vou descobrir.
O elevador apitou. As portas se abriram. E eles saíram caminhando em direção à área VIP, onde luzes de neon e garrafas caras os aguardavam.
Mas Arthur não conseguia tirar da mente aquela sensação... aquela mulher.
Aquela... resistência.
***
A casa de dona Zefa era simples, com paredes amareladas e cheiro de café recém-feito. O sofá de couro rachado fazia um barulho engraçado toda vez que Biel se mexia. Ele estava ali, deitado com a cabeça no colo da avó, enquanto ela penteava seus cabelos curtos com uma escova antiga, com cerdas já gastas.
Na televisão, uma novela passava, mas nenhum dos dois prestava realmente atenção. Era só o som de fundo, o conforto de uma rotina que estava prestes a acabar.
— Você cresceu tanto, meu menino... — disse dona Zefa com a voz mansa, acariciando o topo da cabeça dele com os dedos finos e enrugados. — Parece que foi ontem que você caía no terreiro correndo atrás de galinha com o bumbum de fora.
Biel sorriu, tímido.
— Vó... — disse em voz baixa. — Eu ainda nem fui embora e a senhora já tá com saudade?
— Já tô, sim. E não é pouca, não — respondeu ela, beijando a testa dele. — Eu cuidei de você desde que era um feijãozinho. Agora vai pra cidade grande, estudar, viver... virar médico.
Ele riu, meio sem graça.
— Enfermeiro, vó. Primeiro eu quero fazer enfermagem... depois, quem sabe, medicina. Se eu conseguir uma bolsa boa, talvez...
— Vai conseguir, sim — interrompeu ela, firme. — Porque você é o menino mais inteligente que eu já vi. E porque Deus tá com você. Sempre esteve.
Biel mordeu o lábio, tentando segurar a emoção. A avó o conhecia como ninguém. Sabia quando ele sorria de verdade e quando fingia.
— Promete que vai me visitar? — perguntou ela, suavemente. — Que não vai esquecer de mim?
— Nunca, vó... eu vou voltar todos os finais de semana, se puder. Vou trazer remédio, comida boa, tudo o que a senhora quiser. Vou cuidar da senhora igual a senhora cuidou de mim.
Ela sorriu com os olhos cheios d’água.
— Quero só um abraço... e que você seja feliz, Bielzinho.
— Vó... — ele respirou fundo, como quem carregava o mundo. — E se eles descobrirem... o que eu sou?
Ela parou de pentear o cabelo por um segundo.
— Você é um menino bom. Isso é o que você é. O resto... é só rótulo. Não deixa ninguém te diminuir por causa disso.
— Mas eles vão, vó. Lá na cidade, ômega é tratado como lixo. E eu ainda sou... recessivo.
— Olha pra mim — disse dona Zefa, virando o rosto dele delicadamente. — Você é mais forte do que pensa. E mais especial do que todos eles juntos.
Ele assentiu em silêncio, com o peito apertado.
— Quando você estiver se sentindo sozinho, lembra disso aqui — ela colocou a mão sobre o coração dele. — Aqui mora sua força. E aqui — ela tocou na própria testa dele — mora sua sabedoria.
— Vó...
— E aqui — ela apertou a mão dele — mora o amor que eu sinto por você. Isso ninguém tira.
Eles ficaram ali em silêncio por um tempo, enquanto a novela seguia com gritos e traições, contrastando com a paz daquele momento.
Do lado de fora, o cachorro Totó dormia na varanda, como se estivesse em vigília. A noite caía, suave, cobrindo os últimos minutos antes da partida.
Do outro lado da cidade...
No alto do prédio mais caro da zona nobre, dentro de um lounge privativo, riam alto, brindavam e faziam planos.
Arthur estava recostado numa poltrona de couro escuro, com um copo de uísque na mão e um olhar entediado. Os amigos, todos alfas como ele, conversavam animadamente.
— Esse ano, estamos na unidade principal — dizia um dos rapazes, um moreno de olhos verdes chamado Logan. — Agora que você voltou do exterior, finalmente vamos estudar juntos de novo.
— É — disse outro, loiro, com um sorriso convencido. — E com a gente no campus... a universidade vai tremer.
Arthur deu um pequeno sorriso sem graça e levou o copo à boca.
— Não vejo a hora de colocar tudo sob a minha ordem de novo.
Logan gargalhou.
— Ah, o rei voltou pro trono... o diretor até ligou pra mim essa semana. Disse que tá animado por eu estar estudando lá.
— O diretor já tá comendo na nossa mão faz tempo — comentou o outro. — Ele sabe que com a gente no campus, a reputação da universidade vai subir.
Arthur riu baixo, sem entusiasmo.
— Estou muito entediado esse tempo...
— Ah, não começa com essa de novo — disse Logan. — Você vive reclamando. Sabe o que tá faltando? Um desafio de verdade. Algo... inesperado.
Arthur ficou em silêncio. Seu olhar vagava pelas luzes da cidade pela janela enorme atrás deles.
"Desafio..." — pensou.
A lembrança da mulher no elevador voltou. A forma como ela o ignorou. Como o feromônio não fez nem cócegas nela.
"E se... alguém como ela aparecesse de novo?"
Arthur girou o copo em mãos, observando o uísque dançar no fundo. A noite ainda era jovem. E o semestre estava só começando.
Mal sabia ele que seu maior desafio estava a caminho, num ônibus velho, com uma mochila rasgada e um brilho doce nos olhos.
Um garoto chamado Biel.
CONTINUA...
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Atualizado até capítulo 26
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