Fome que ninguém vê

A porta do banheiro se abriu com um estalo seco.

Arthur saiu.

O roupão pendia solto em seus ombros, os cabelos levemente úmidos e a expressão de quem não dorme direito há dias.

Biel o observava em silêncio, sentado na beira da cama com a sacola vazia ao lado. Os olhos ainda vermelhos, as mãos entrelaçadas no colo.

Arthur passou os olhos pelo quarto como se estivesse se preparando para explodir de novo, mas respirou fundo, contendo-se.

— Eu não quero problemas do meu lado — disse, sem rodeios, olhando direto para Biel. — Então é bom você se comportar.

Biel manteve o olhar abaixado.

— Se alimente direito — continuou Arthur. — Meu pai precisa das suas notas. Ele quer você entre os melhores alunos.

A reputação dele tá nas suas mãos.

Deu alguns passos. Parou bem na frente de Biel. O cheiro dele preencheu o ar — amargo, quente, autoritário.

Arthur se abaixou.

Ficou na altura dos olhos de Biel. A voz saiu baixa, seca... cruel.

— E sobre ontem à noite…

Não aconteceu nada entre a gente.

O mundo pareceu parar por um segundo.

— Eu não sou louco de ficar com um ômega... — Arthur continuou, como se as palavras pesassem na própria garganta. — Principalmente um homem.

Biel não reagiu. Nem um tremor. Apenas baixou mais ainda a cabeça.

— Assim que você sentou no meu colo, deitou ali... eu deixei você dormir e saí do quarto. Fui direto pedir ao meu pai pra me mudar de quarto quando descobri que era você — um ômega. — Ele riu. — Mas, infelizmente... isso não é possível.

Arthur se afastou, virou de costas, foi até a escrivaninha e apoiou as mãos ali, respirando fundo. Depois, virou-se novamente, com os olhos cansados.

— E agora, por causa disso, eu tenho que cuidar de você.

E isso me irrita. Me irrita muito.

Por um instante, o silêncio dominou o quarto inteiro.

Biel não disse nada.

Porque... ele já tinha ouvido tudo.

Tudo o que precisava para saber exatamente onde estava:

Num lugar onde ele era uma obrigação.

Não um ser humano.

Muito menos alguém que merecesse afeto.

Arthur voltou para sua cama e deitou com os braços cruzados sobre o peito, olhando o teto.

Biel ficou sentado, parado, olhando as próprias mãos.

E ali, entre dois extremos, o silêncio virou prisão.

***

Minutos depois do silêncio envenenado entre os dois, a campainha do quarto tocou.

Arthur se levantou devagar, como se já soubesse quem era. Abriu a porta e, como esperado, viu os rostos familiares — Logan, Ryan, Derek — seus amigos, todos alfas, todos com aquele brilho nos olhos de quem não se importa com ninguém além de si mesmo.

— Viemos ver como tá seu "palácio particular", Arthur. — disse Logan, rindo.

Eles entraram sem esperar convite. Os perfumes caros invadiram o quarto, junto com o som das risadas altas.

Foi quando os olhos de Ryan — o mais ousado e cruel entre eles — encontraram Biel.

Biel estava deitado na cama, imóvel, o olhar perdido no teto como se estivesse tentando sair do próprio corpo.

— Então... — disse Ryan, com um sorriso torto. — Esse é o ômegazinho que seu pai resolveu adotar.

— Posso tirar um pedacinho dele? — riu. — Ele é um ômega, né?

Biel se sentou, assustado, sentindo os feromônios pesados no ar. O estômago revirou, o coração disparou. A aura opressora dos alfas se espalhava como fumaça.

Ryan deu um passo à frente. Biel recuou, encolhendo-se.

— Ei. — disse Arthur, com uma voz mais baixa, mas firme. Ele se colocou entre Ryan e Biel, bloqueando a aproximação.

— Não toca um dedo nele.

A sala ficou em silêncio.

Ryan arqueou uma sobrancelha, confuso.

— Por quê? — riu, mas havia tensão no tom. — Você odeia ômegas. Ainda mais homem.

Arthur manteve os olhos frios, cravados no rosto do outro.

— Eu disse que ele, não. Entendeu?

Ryan riu, mas havia algo diferente no riso.

— Qual é o problema? — perguntou. — Você sempre deixou a gente... brincar com os bolsistas que o seu pai patrocinava.

— Relaxa. Eu vou usar camisinha.

Arthur o agarrou pela camisa.

A risada morreu no mesmo instante. Os outros dois deram um passo pra trás.

— Acho bom você sair do meu quarto agora. — disse Arthur com os dentes cerrados. — Eu disse que não. Você é surdo?

Ryan ergueu as mãos, com um sorrisinho debochado.

— Tá bom, tá bom. Já entendi. Não precisa surtar.

Se soltou devagar, arrumando a gola da camisa.

— A gente vai pro bar. Você vai?

Arthur hesitou.

— Talvez.

Logan se meteu:

— Aquela garota que te mordeu no elevador vai estar lá, viu?

Arthur sorriu de canto, como se fosse só isso que precisasse.

— Então eu vou. Mais tarde.

Os garotos saíram rindo, batendo a porta.

O quarto mergulhou em silêncio de novo.

Biel estava com a cabeça baixa, os ombros curvados, a respiração leve. A vergonha e o medo ainda colados na pele.

Ele não conseguia entender por que Arthur o defendeu.

Mas também não conseguia se sentir... seguro.

Afinal, Arthur ainda era aquele que gritou com ele, que o humilhou, que disse que odiava sua existência.

Então por que agora...?

Biel se sentia insuficiente.

Menor.

Um fardo.

E Arthur...

Arthur se jogou na cama de novo. Olhou para o teto. Suspirou.

"Por que eu fiz aquilo?"

Ele também não tinha respostas.

O quarto estava em silêncio.

Mas o ar tinha mudado.

Arthur sentiu antes mesmo de perceber. O cheiro doce, quente, suave — como mel misturado com flor molhada pela manhã — começava a se espalhar.

Ele virou-se rápido.

Biel estava sentado na cama, trêmulo, as mãos apertando o lençol com força. A camisa semiaberta, a respiração falhando, e os olhos vidrados em algum ponto que só ele enxergava.

Arthur parou por um segundo. Depois murmurou, baixo:

— Não... não agora.

Deu um passo à frente. E o cheiro só aumentou.

Feromônios.

Cio.

E nenhum remédio no sistema.

Arthur passou a mão pelo cabelo, tenso.

— Merda... ele tá entrando no cio agora.

Correu até o armário de Biel. Vasculhou entre camisetas dobradas e roupas simples até encontrar o pequeno frasco com os comprimidos de bloqueio. Pegou um copo de água na cozinha, voltou e ajoelhou-se em frente à cama.

— Biel! Me escuta. — disse, com firmeza. — Toma isso agora.

Biel o olhou, meio perdido, os olhos marejados. A pele suada. O rosto quente.

Arthur colocou o comprimido em sua mão, depois entregou o copo.

— Vai. Respira. Eu tô aqui. Só toma.

Com dificuldade, Biel engoliu o remédio. A mão trêmula derrubou parte da água em si mesmo.

Arthur, ainda ajoelhado, fechou os olhos por um segundo e respirou fundo.

— Ok. Agora a gente vai esperar isso passar... — murmurou.

Ele levantou Biel com cuidado, segurando firme pelos braços.

— Vem. Vamos pra água fria. Isso vai ajudar.

Carregou Biel até o banheiro. Ligou o chuveiro e deixou a água cair direto sobre os dois, ainda vestidos. Era como acordar de um pesadelo úmido.

A água fria tocava a pele quente de Biel, que se encolheu, gemendo baixinho.

Arthur manteve a mão em seu ombro, firme, presente.

— Tô aqui. Fica de pé. O remédio já tá começando a fazer efeito.

Minutos se passaram.

A água caía.

A respiração de Biel começou a desacelerar.

O olhar voltou a focar.

O corpo parou de tremer.

Arthur soltou um longo suspiro, tirando o cabelo molhado dos olhos.

— Da próxima vez... — disse ele, sem raiva, apenas exausto — toma o remédio antes. Entendeu?

Biel assentiu, ainda sem força pra falar. A água continuava caindo.

***

A luz do quarto estava suave, a janela aberta deixava o vento brincar com a cortina. Biel acordou devagar, sentindo o corpo mais leve e a mente confusa. Estava com roupas limpas. O travesseiro tinha um cheiro diferente. Um cheiro... dele.

Sentou-se na cama com cuidado. Viu Arthur encostado na escrivaninha, com os fones de ouvido, mexendo no celular, como se nada tivesse acontecido. Como se as horas anteriores — a água fria, o corpo em chamas, a dor, o medo — fossem só um sonho de Biel.

Ele respirou fundo e tentou encontrar a coragem que nunca teve.

— O-obrigado... — murmurou, com a voz baixa, olhando para o chão.

Arthur não reagiu.

Biel engoliu em seco, forçando-se a continuar.

— Por ontem à noite... por ter me ajudado.

Arthur tirou um dos fones, sem virar o rosto.

— Fez o quê?

— Eu só queria dizer... que sei que não precisava fazer nada. Mesmo me odiando...

Arthur riu, sem humor. Virou-se devagar, olhando Biel como quem encara algo irritante demais para ignorar.

— Não se ilude, Biel. Eu não te ajudei por você. Eu te ajudei pra não ter um ômega babando no meu chão e manchando meu colchão.

Biel sentiu o corpo encolher. Mas não desviou os olhos.

— Mesmo assim... obrigado.

Arthur se levantou. O cheiro dele estava mais forte. A raiva, talvez.

— Não precisa agradecer. Não somos amigos. Não somos nada. Você é só um problema que me jogaram no colo.

— Eu não pedi pra estar aqui... — Biel respondeu baixinho, mas com dor na voz.

— Não, você não pediu — disse Arthur, com crueldade. — Mas você tá aqui. E agora eu tenho que lidar com um ômega que nem consegue controlar o próprio cio, que se joga no meu colo como um gato carente. Você tem ideia do ridículo que foi?

Biel ficou paralisado.

— Eu... eu não queria...

— Claro que queria. É isso que ômegas fazem, não é? Tentam se aproximar do alfa mais alto da sala pra se sentirem protegidos. Mas deixa eu te lembrar de uma coisa, Biel...

Arthur se aproximou, devagar, os olhos duros, frios, perigosos.

— Eu não sou seu herói. Eu não quero você perto de mim. E se acha que vai me fazer mudar de ideia com esses olhos de bichinho assustado, esquece. Eu não me envolvo com ômegas. Muito menos com... — ele parou, segurando a palavra final.

Biel baixou a cabeça. Os olhos marejaram. Ele não queria chorar. Não na frente dele.

— Eu... eu não tô tentando nada com você. Eu só... eu só quis agradecer...

Arthur se afastou, bufando.

— Agradece de outro jeito. Com notas altas. Com silêncio. E com distância.

Biel apenas assentiu.

Levantou devagar, foi até a janela e ficou ali, de costas, segurando as próprias lágrimas. O vento soprava o cabelo em sua nuca. Ele fechou os olhos.

E Arthur… ficou parado.

Com as mãos nos bolsos, o peito apertado, o gosto amargo na boca.

"Por que ele não grita comigo?"

"Por que só abaixa a cabeça e aceita?"

Mas ele não disse mais nada. Apenas virou-se e saiu do quarto, deixando a porta aberta atrás de si.

E Biel ficou ali.

Quieto.

Ferido.

E ainda assim, tentando entender… por que isso doía tanto.

***

A sala de aula estava silenciosa, exceto pelo som de folhas sendo viradas e vozes baixas discutindo o conteúdo na lousa digital. Biel estava sentado na penúltima fileira, cabeça baixa, escrevendo com foco. Seus dedos ainda tremiam um pouco desde a noite anterior, mas ele tentava parecer normal.

Foi quando uma voz suave e cheia de entusiasmo surgiu do lado.

— Oi! Você é o bolsista, né? Biel, certo?

Biel olhou para o lado. Era um garoto de cabelos loiros platinados, bagunçados de forma quase charmosa, os olhos dourados cintilando de curiosidade. A pele clara, o sorriso largo e a energia pareciam iluminar tudo ao redor. Ele usava o uniforme da universidade meio desabotoado, como se nem as regras conseguissem conter aquele espírito livre.

— M-me chamo Biel… — respondeu, tímido, ajeitando a postura.

— Eu sou Leu! — o garoto disse, jogando o corpo na cadeira ao lado como se já fossem velhos amigos. — E aí, o que você tá achando da universidade? Achei o refeitório meio chique demais… não consegui nem saber por onde pega o suco!

Biel soltou um pequeno sorriso contido.

— Eu ainda não comi lá…

— Sério? Então você precisa de um guia turístico universitário! Que sorte a sua, eu sou ótimo nisso! — Leu apontou pra si mesmo, orgulhoso, e Biel riu baixinho.

Enquanto Leu falava, contava histórias engraçadas sobre o elevador travado, uma professora que errou a própria aula e um garoto que entrou numa sala errada e dormiu a aula inteira, Biel começou a relaxar. O sorriso, antes tímido, agora escapava naturalmente. Pela primeira vez desde que chegara, ele não se sentia um fardo.

Mas no fundo da sala, alguém observava.

Arthur estava sentado com as pernas cruzadas, o olhar fixo em Biel e Leu. A forma como Leu fazia Biel sorrir… aquilo o irritava de um jeito estranho. Inexplicável. Incômodo.

Um dos seus amigos, sentado ao lado, notou o olhar e soltou:

— Ei, Arthur… por que você tá encarando o bolsista e o palhacinho ali da frente?

Arthur não respondeu. Seus olhos escureceram.

— Arthur? — o amigo cutucou de novo, em tom provocativo — Tá afim daquele ômeguinha por acaso?

Arthur se levantou com força.

A cadeira caiu para trás com um estrondo. Todos da sala pararam.

Ele chutou a cadeira contra a parede com raiva. O barulho fez até o professor se calar por um instante. Arthur passou pelos colegas com os olhos cerrados e saiu da sala, batendo a porta com tanta força que as janelas vibraram.

Silêncio.

Biel ficou paralisado. Leu olhou para ele e sussurrou:

— Foi por nossa causa?

Biel não respondeu. Apenas abaixou a cabeça e sentiu o coração acelerar — como se algo dentro dele soubesse que a paz que ele acabara de sentir… não duraria por muito tempo.

CONTINUA...

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!