O Herdeiro do Sul. Livro II

O Herdeiro do Sul. Livro II

Pesadelo ancestral.

Milhares de anos atrás...

— O Coração de Lyzar

Ainda havia ouro nas torres.

Ainda havia música nas cortes.

Mas sob os véus de beleza, o mundo já apodrecia.

Dizem que o Antigo Reino era o mais belo entre os reinos.

Dizem que seus jardins flutuavam sobre lagos puros e que suas muralhas brilhavam ao amanhecer como as escamas de um dragão alado.

Mas o que não dizem — o que todos esqueceram — é que aquele povo, por trás da glória e da arte, era cruel.

O povo de Aerundriel vendia crianças em troca de encantamentos.

Corrompia magos. Punia os justos. E fazia sacrifícios em nome de deuses mortos, enquanto erguia taças com mãos pintadas de sangue.

E mesmo assim, havia uma centelha.

Aerundriel, o rei, era diferente.

Firme, porém justo. Filho de uma linhagem antiga, mas com o coração voltado para o novo. Tentava purificar os salões, desmontar os conselhos corruptos, proteger os fracos. Era amado. E por isso mesmo… odiado.

Ao seu lado, havia duas luzes.

Eliara, sua rainha — uma dama do Véu Flamejante, uma sacerdotisa que havia feito votos eternos para jamais conhecer o toque de um homem. E ainda assim, por ele, quebrou o sagrado e se tornou mãe.

E Lyzar, a invencível — baixa, magra, de feições suaves e olhos como o aço recém-temperado.

Diziam que ela jamais sangrou em combate.

Diziam que era uma mulher sem idade, sem origem, sem sombra.

Mas todos sabiam que onde o rei ia, ela estava.

Eliara a chamava de irmã.

Aerundriel a chamava de lâmina.

As crianças a chamavam de “aquela que caminha no som do trovão”.

Ninguém sabia de onde viera. Mas todos sabiam que ela sempre esteve lá.

Numa noite sem lua, enquanto os magos antigos mediam os astros em silêncio e as flores dos Jardins de Alcarol murchavam sem explicação, um homem atravessou as portas do palácio.

Caleum.

O grande Houler.

Irmão da própria Lyzar.

Servo dos ciclos e arauto do fim.

Veio sozinho.

Coberto por mantos brancos, os olhos de fogo sereno e a voz que fazia os espelhos trincarem.

O rei o recebeu nas câmaras altas.

— Diga-me a verdade, Caleum. — Aerundriel disse, a mão firme sobre a de Eliara. — É o nosso fim?

— O fim de todos. — respondeu o Houler. — O mundo queimará. O céu se abrirá. E apenas um sobreviverá à extinção das eras.

— Nosso filho? — sussurrou Eliara, tocando o ventre já redondo.

Caleum assentiu.

— Entre os cadáveres do mundo antigo, apenas ele florescerá. Entre ruínas e brasas, ele governará o novo ciclo.

Aerundriel cerrou os punhos. Seus olhos, até então plácidos, se encheram de fogo.

— E a rainha? Ela precisa morrer?

Caleum hesitou.

— A ruína não escolhe. A vida de Eliara seria o preço justo para conter as chamas. Mas já é tarde. A profecia está selada.

— E ele… — disse o rei, a voz embargada — …ficará só?

Caleum pousou os olhos sobre Lyzar, que até então guardava silêncio ao lado do trono, a mão no punho da espada.

— Lyzar é uma Saber. É irmã de minha carne e alma. Serve tua linhagem há mais do que os homens podem contar.

— Eu não posso — nem quero — matá-la.

— Então, ele terá alguém. — sussurrou Eliara, com lágrimas silenciosas.

Caleum se virou para os três, como quem entrega uma sentença.

— Assim que o menino respirar pela primeira vez… este mundo será incendiado.

— Como castigo pela corrupção, essa terra será entregue aos Seuls, filhos da carne insaciável.

— Eles herdarão as ruínas até o retorno do herdeiro.

— E quando Ele erguer sua espada, os Seuls cairão como poeira ao vento.

— E um novo mundo nascerá… com fogo nas veias.

Na torre mais alta, Eliara chorava em silêncio.

Lyzar se aproximou e pousou a mão em seu ventre.

— Eu o protegerei — disse ela. — Nem o tempo, nem a morte me afastarão dele.

Eliara sorriu.

— Que ele tenha teu coração, Lyzar.

E ao longe, pela primeira vez em mil anos, um grifo negro cruzou os céus em chamas.

As muralhas tremiam.

Chamas dançavam nos campos.

E, nas profundezas da cidade, a revolta crescia como veneno nas raízes do trono.

Não eram apenas os Seuls que se aproximavam.

Dentro do próprio palácio, uma facção de traidores já havia se formado — magos caídos, nobres que desejavam a coroa, generais que vendiam sua espada por glória ou ouro. O rei Aerundriel lutava em dois mundos ao mesmo tempo: o externo, onde os céus se rasgavam em fogo… e o interno, onde a lealdade se tornava cinza.

Mesmo assim, naquela noite, ele subiu os degraus da Torre de Safira e foi até os aposentos da rainha.

Ela sentia as dores.

A vida empurrava-se para nascer.

E ele sabia — era a última vez que a veria.

Ajoelhou-se diante de Eliara. Beijou-lhe a testa úmida. Tocou com reverência a curva de seu ventre.

— Ele chegará ao mundo cercado de caos… — disse Aerundriel, com a voz baixa. — …mas não ficará sem direção.

De dentro de seu manto dourado, retirou um pequeno objeto de cristal translúcido, forjado em forma de chave.

— Isto é tua herança, meu amor. E a dele.

— A Chave da Biblioteca de Cristal.

Eliara a pegou, maravilhada.

— A Biblioteca… é real?

Aerundriel assentiu.

— Mais do que real. É o último refúgio do conhecimento verdadeiro.

— No coração dela habita o Erudito, o guardião do Verbo, o Mestre das Palavras.

— Ele lembra o que o mundo esqueceu.

— Ele servirá Tharion. Quando o tempo certo chegar… ele despertará.

Ela levou a chave ao peito, como se já sentisse a presença do filho ali.

O rei se inclinou e beijou a barriga da esposa, com lágrimas nos olhos.

— Meu filho… que teu coração seja firme.

— Que tua chama seja limpa.

— Que tu me encontres… um dia… no silêncio entre os mundos.

Ergueu-se.

Lyzar estava ali, à sombra da janela.

Ele se virou para ela. Pela primeira vez em séculos, havia algo quebrado em seu olhar.

— Cuida deles, irmã.

— Eles são o futuro.

Ela quis ir com ele. Sempre foi sua sombra, sua espada, sua promessa de vitória.

Mas ele balançou a cabeça.

— Não desta vez.

— Esta batalha é apenas minha.

Com um suspiro, o rei caminhou até a sacada. O céu já ardia em vermelho. Tambores ecoavam da cidade baixa.

Então, ergueu suas asas douradas, tão vastas quanto o crepúsculo.

Olhou uma última vez para Lyzar e para Eliara…

…e voou.

---

Horas depois…

O choro de um recém-nascido ecoou pelos salões de mármore.

Eliara sorria com os olhos pesados, o corpo exausto, mas cheio de paz.

— Tharion… — sussurrou. — Nome de trovão. Nome de rei.

Mas logo depois, o som de passos acelerados.

O sussurro cortante dos servos.

O silêncio dos guardas.

Alguém entrou no quarto com o olhar caído.

— O rei… está morto.

Eliara fechou os olhos, deixando uma lágrima escapar.

Mas não chorou.

Ela apenas segurou o filho com mais força.

— Ele nasceu. Isso basta.

E então, o mundo pareceu parar.

Um vento frio atravessou as janelas.

As tochas se apagaram.

Caleum apareceu. Silencioso como um presságio.

— Ele não pode ficar. — disse, com a voz firme.

Lyzar se aproximou, retirando o menino dos braços da rainha com reverência e dor.

— Cuidem dele — sussurrou Eliara. — Cuidem… até que ele retorne.

Caleum tocou a testa da rainha com um gesto ancestral.

— Você será lembrada entre as eternas.

E, sem mais palavras, desapareceram entre véus de luz e poeira.

No coração do mundo antigo, a Biblioteca de Cristal se abriu pela primeira vez em mil anos.

Entre colunas feitas de luz sólida, o Erudito ergueu os olhos de seu tomo eterno.

— Ele chegou. — disse.

— Aquele que carrega o fogo e a memória.

Lyzar entrou, com o bebê nos braços.

— E você cuidará dele?

O Erudito sorriu.

— Até o fim dos tempos… e além.

O mundo antigo ardia.

Torres de cristal ruíam sob um céu incendiado.

Asas douradas caíam entre as nuvens.

E um menino chorava no colo da eternidade.

Tharion observava tudo — como se estivesse lá, e ao mesmo tempo fora.

Sentia o calor, o cheiro do sangue e da cinza.

Sentia o choro de uma mulher de cabelos flamejantes ecoando pela cúpula do templo.

E sentia Lyzar… firme, incansável, segurando-o nos braços.

Então a voz.

A voz que sempre o chamava nos sonhos.

"O fogo esquecerá o que o sangue lembra.

Mas a memória há de arder contigo.

Até que o mundo esteja limpo."

Ele quis gritar.

Quis correr.

Quis impedir tudo.

Mas o tempo explodiu em chamas.

Dias atuais...

Tharion acordou.

Suado. Arfando. Os olhos arregalados.

As cicatrizes no peito ainda doíam, embora a pele estivesse curada.

Fora apenas um sonho, disse a si mesmo.

Mas sabia — não era.

Se passaram seis meses desde a queda de Erizy.

Seis meses desde a última investida dos Darxas no Norte.

Seis meses desde que ele mesmo quase se perdeu.

Olhou ao redor. O céu era cinzento, coberto de nuvens baixas.

Estavam acampados numa clareira da Cordilheira Sul, perto das margens do Rio Velado. Tendas improvisadas, sentinelas silenciosas, guerreiros ainda feridos. Era uma trégua temporária — e Tharion sabia disso.

Levantou-se, o corpo pesado, as botas cobertas de lama seca.

Ao virar-se, viu Lyzar, sentada em silêncio ao lado de uma fogueira apagada.

O braço dela ainda estava enfaixado.

O corte… fora dele.

Num momento de fúria, de escuridão, quando Erizy, mesmo agonizante, o provocou com palavras torpes:

> “Depois que eu te matar, Tharion, vou usar o corpo dela como troféu.

Kátyra gritará teu nome até sangrar."

O grito que saiu de Tharion naquela hora não era humano.

Ele não lembrava o golpe que desferiu.

Só lembrava de Lyzar e Kátyra no chão.

E do olhar de medo.

Não de Erizy — mas delas.

Tharion fechou os olhos.

Sentia o gosto amargo da vergonha.

Caminhou até o centro do acampamento.

Chamou os capitães, os vigias, os batedores.

— Basta de descanso — disse, a voz mais rouca do que pretendia.

— Recolham as tendas. Queimem o que não puderem carregar.

— Partiremos ao nascer do sol.

— Para onde, senhor? — perguntou um dos homens.

Tharion olhou o horizonte, como se procurasse algo além das montanhas.

— Para o Palácio.

— Chegou a hora de enfrentar os vivos.

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